segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

SÍNTESE BÍBLICA – Rute

            Este pequeno e singelo livro é de uma beleza encantadora. É impossível para qualquer leitor não se envolver nesta história de duas mulheres, sogra e nora, que privadas de tudo que lhes pudesse dar algum conforto, aprendem a viver dia a dia na dependência dos recursos de Deus. O testemunho de fé de Rute, uma moabita, é um raio de sol na escuridão da incredulidade dos israelitas, chamados de povo de Deus.
O escritor constrói a história de forma delicada e discreta. É possível encontrar ao menos quatro cenas centrais, com suas respectivas interligações, de maneira que não seria difícil transformar a história em um drama (peça) em quatro atos.
O autor recria uma atmosfera de vila interiorana, onde todos se conhecem e compartilham da vida uns dos outros. O tempo é medido pelas atividades agrícolas, e termina com o ápice da fecundidade humana. Nesse ambiente se desenvolve o processo de profunda tristeza [doença/morte] para a extrema felicidade [nascimento/vida], da perda à plenitude.
            O livro recebeu o título do personagem central da narrativa – Rute. O cenário histórico é determinado no primeiro verso: “Nos dias em que julgavam os juízes”, ou seja, em um dos períodos mais decadentes da fé israelita, destaca-se a fé de uma mulher estrangeira, que apesar de todos os infortúnios que a vida lhe reservou, em nenhum momento barganha com Deus ou se põe a lamentar contra Deus, ao contrário, em todo o tempo ela mantém-se firme em sua convicção de que o único Deus verdadeiro e no qual pode esperar auxílio é o Deus de Israel (Noemi).
            Enquanto na Bíblia Cristã esse pequeno livro vem logo após o de Juízes, na Bíblia Hebraica ele é deslocado para a terceira e última parte do cânon, denominado de Escritos, juntamente com outras literaturas produzidas em um período posterior. Esse pequeno livro era lido no transcorrer da festa de Pentecostes, uma das mais importantes do calendário religioso israelita.
            A história de Rute não é apenas um registro histórico do povo israelita durante o período dos juízes, mas contém alguns princípios relevantes da teologia bíblica do Antigo Testamento. Começa por inserir a figura de outras nacionalidades, no caso especifico os cidadãos de Moabe, na Aliança inicialmente estabelecida por Deus com a nação de Israel. E mais ainda, Rute não apenas entra na Aliança, como vai ser inserida na linhagem direta do Messias, pois seu filho com Boaz será o avó do rei Davi, cujo o trono será estabelecido para sempre, conforme promessa divina e do qual haverá de vir (veio) o Messias que reinará para sempre sobre todas as nações. E por fim, a figura de Boaz (gaal) “parente próximo” que detinha o direito de resgatar a dívida e assim restituir à Noemi/Rute o direito de sua propriedade, tipifica a pessoa e obra de Jesus, que como nosso “parente próximo” (quando de sua encarnação – assumindo a plenitude de nossa humanidade) resgata as nossas dívidas e nos dá o direito de usufruirmos das bênçãos eternas.
            Nestes dias de tanta tensão e violência em relação à religião, esse pequeno livro torna-se um oásis de amor em meio ao deserto do ódio e violência. O amor sincero de Rute (moabita) por sua sogra Noemi (israelita) e a decisão de permanecerem juntas e professarem uma mesma fé, é algo extremamente significativo. Por mais de uma vez Noemi tenta dissuadir Rute de sua resolução, argumentando inclusive que ao retornarem para Belém a jovem viúva não deveria esperar mais do que repúdio e desconfiança em relação à sociedade israelita, pelo simples fato dela ser uma estrangeira. Entretanto, Rute permanece resoluta em sua decisão e reiterada vezes professa sua fé no Deus de Israel.
            Por fim, nesses últimos tempos, em que a “fé cristã” tornou-se um balcão de negócios; em que poucas pessoas demonstram genuína convicção naquilo que professam crer; em que se busca a todo custo a autossatisfação e o prazer hedonista é o deus principal no panteão vigente da sociedade brasileira, ler a história de uma jovem mulher que está disposta a crer contra todas expectativas é algo que deveria nos fazer refletir e reavaliar que tipo ou qual a qualidade da nossa fé.

Esboço Básico
I. Mudança da família de Noemi para Moabe (1.1-5)
Morte do marido e dos filhos de Noemi
II. Decisão de Noemi em retornar para Belém (1.6-17)
            Decisão de Rute e Orfa em ir com ela (1.8-10)
            Orfa decide retornar à casa de seus pais (1.11-14)
            Rute ratifica sua fé e permanece com Noemi (1.15-17)
III. A chegada e dificuldades para sobreviverem (capto 2)
            A bondade de Boaz para com Noemi e Rute
IV. A decisão de Rute em buscar ajuda de Boaz (capto 3)
            Boaz aceita reivindicar o direito de “parente próximo”
V. Boaz torna-se o resgatador de Noemi e Rute
            Casamento de Boaz e Rute (4.13)
            Nascimento de Obede [avó de Davi] (4.17)

Estatísticas: 8º livro da bíblia; 4 capítulos; 85 versos; não contém nenhuma mensagem específica de Deus.

Cronologia História
            A elaboração de uma cronologia dos fatos históricos da bíblia é sempre um exercício difícil, pois nem sempre os acontecimentos são demarcados com indiscutível exatidão. Mesmo com o avanço expressivo da ciência arqueológica há muito que ignoramos da época Patriarcal (Genesis), dos primórdios de Israel e seu estabelecimento em Canaã (Êxodo-Rute). A partir da Monarquia (Davi) a cronologia começa a ter maior grau de exatidão e conciliação com a História geral da época.
Cronologia Histórica
História de Israel
Historia Geral
Egito-Palestina na época do Bronze Antigo

Império Antigo (2600-2500)

Império Médio (2100-1730)

Mesopotâmia
3ª dinastia de Ur (2100-2000)

Código de Hammurabi
rei de Babilônia
(1800)

Patriarcas
Época do Bronze Médio
Chegada de Abraão em Canaã
(próximo de 1850)

Jacó e sua família sobem para o Egito
(próximo 1700)
Opressão dos israelitas no Egito
Moisés e Josué


Egito – Ramsés II

(1304-1238)
Batalha em Cades (1286)

Saída dos israelitas do Egito
A Promulgação da Lei – Monte Sinai
(próximo de 1250)

Me. ipg

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sábado, 27 de fevereiro de 2016

CONTEXTO POLITICO-SOCIAL DA JUDEIA

Para uma compreensão mais ampla dos acontecimentos, registrados nos evangelhos e mais particularmente aqueles ocorridos na última semana do ministério de Jesus, que culmina com a sua morte por crucificação, é importante termos uma visão do contexto social e político daquele momento histórico.
Naqueles dias a Judeia era uma província romana[1] e no ano 06 d.C. ocorre uma mudança significativa, pois o imperador Augusto depõe Arquelau[2], filho de Herodes Magno[3], que até então exercia poder sobre as três principais regiões da Palestina – Judeia, Samaria e Iduméia. Estas regiões passaram a ter uma administração vinculada diretamente a Roma, tornando-se uma procuradoria imperial. O primeiro governador desta nova província foi Carpônio[4], membro da ordem equestre[5].
O governador não vai morar em Jerusalém, com suas vielas apertadas e no meio de pessoas que professavam uma fé totalmente estranha. Opta por permanecer em Cesaréia, que havia sido reconstruída por Herodes Magno em estilo helenístico-romano. Seu magnífico templo dedicado a Augusto (imperador) e à deusa Roma era a primeira visão daqueles que chegavam pelo porto. Os moradores de Cesaréia falavam fluentemente o grego, de maneira que, um cidadão ou autoridade romana haveria de se sentir totalmente à vontade morando ali. O palácio erigido por Herodes se constituía numa excelente moradia para qualquer governante, muito bem protegida tanto pelas guarnições de soldados, quanto pela própria topografia.
O Procurador recebe por parte do império autoridade máxima, incluindo o “poder de vida e morte”. Mas originalmente este poder se relacionada diretamente aos seus soldados. Na prática, porém, não podia se mover qualquer ação civil capital sem o Praefectus Judaeae (o preposto da Judeia), de maneira que, não se podia promulgar ou executar nenhuma sentença de morte sem a chancela do Governador.
Paralelamente temos a figura de Quiríno[6], que surge na narrativa lucana da infância: “Naqueles dias surgiu um edito de César Augusto, ordenando o recenseamento de todos os habitantes. Este recenseamento foi o primeiro, e se realizou enquanto Quirínio era governador da Síria” (Lc 2.1-1). Seu status é de Legatus Augusti pro praetore (Legado Propretor de Augusto)[7] e o próprio recenseamento tinha como objetivo verificar o número da população e a capacidade financeira de cada morador da recém criada Província da Judeia. Ele organiza o serviço de cobrança dos impostos de circulação de mercadorias nas fronteiras e nos mercados internos, à maneira romana: o dinheiro recolhido passa pelas mãos do Procurador, por intermédio dos cobradores de impostos e somente depois é remetido à Roma.
Estes cobradores de impostos inicialmente eram funcionários romanos (publicani), mas posteriormente passaram a ser terceirizados, normalmente cidadãos judeus (publicanos), os quais, por sua vez, formam uma equipe (de fiscais) de acordo com a demanda, para o recolhimento das taxas. Portanto, estes cobradores e seus “fiscais” à serviço do império tornam-se para-raios do ódio e aversão dos nacionalistas, que o diga Zaqueu e seus amigos.
Um dos segmentos judaicos que mais colaboravam com a administração romana era os saduceus. O imperador, seus oficiais e funcionários sempre podiam contar com total cooperação deste grupo intimamente relacionado com o Templo e com o Sumo Sacerdote. O processo envolvendo Jesus demonstra o quanto este grupo tinha influência junto às autoridades romanas.
Apesar de toda esta autoridade romana, no interior da Província a administração judaica permanecia com ampla autonomia. Ela está debaixo da autoridade do Sinédrio, chamado também de o Grande Conselho, uma espécie de Senado (e como os nossos, voltados para seus próprios interesses). Os documentos oficiais romanos são endereçados entre outros ao Sinédrio. As autoridades romanas têm um cuidado especial para com o presidente do Grande Conselho que era sempre o sumo sacerdote em exercício. Neste momento quem nomeia e depõe o sumo sacerdote são as autoridades romanas e não a sucessão hereditária dos descendentes de Arão. As vestimentas sacerdotais ficam sob a guarda dos romanos na Fortaleza Antônia.
Em um primeiro momento há uma sensibilidade maior por parte das autoridades romanas quanto à questão religiosa dos judeus. Em Jerusalém não se encontra qualquer insígnia com a efígie do Imperador (o que constituiria idolatria). Tanto a religião judaica quanto o Templo e suas atividades estão sob a proteção direta do Imperador. O único desejo do Imperador é que os sacerdotes ofereçam sacrifícios em seu favor no Templo de Jerusalém.
Mas tudo isto está para mudar radicalmente com a ascensão de um inimigo declaro dos judeus, Sejano,[8] prefeito da guarda pretoriana[9] e que está exercendo um domínio de terror em Roma. Será este inimigo dos judeus quem nomeara o quarto e quinto procuradores da Judéia, Samaria e Iduméia, respectivamente Valério Grato e Pôncio Pilatos. Estes haverão fazer com que estas populações sintam claramente quem é que manda na região. É debaixo deste mandatário romano e seu nomeado Pilatos, responsáveis por uma política insensível e desumana, que se passam os acontecimentos da última páscoa de Jesus.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/

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[1] Uma província romana era a maior divisão administrativa das possessões estrangeiras (fora da Península Itálica) da Roma Antiga. As províncias eram atribuídas por períodos de um ano a governadores originários da classe senatorial, no caso de ser uma província senatorial, ou da classe eqüestre, no caso de ser uma província imperial, normalmente ex-cônsules ou ex-pretores. No início do ano romano (em março, até às reformas de Júlio César), as províncias eram atribuídas aos governadores por sorteio, na época da República, ou nomeação, no Império. http://pt.wikipedia.org/wiki/Província_romana
[2] Herodes Arquelau (4 a.C. - 6 d.C.) governou a Judéia. O menos estimado dos filhos de Herodes, foi cruel e despótico. As queixas dos judeus contra ele finalmente o levaram ao exílio. Como renovava em parte a crueldade do seu pai, seus irmãos e súditos o acusaram diante do imperador, que o destituiu e o exilou para Viena, na Gália, onde morreu. A Judéia e a Samaria foram anexas ao império romano, governadas por um procurador, ou governador, sediado em Cesaréia, nas margens do Mediterrâneo, comandando uma tropa de ocupação considerável. Em Jerusalém foi sediado um destacamento militar sob o comando de um tribuno, aquartelado na Torre Antônia, no ângulo nordeste do Templo de Jerusalém. http://pt.wikipedia.org/wiki/Herodes_Arquelau
[3] A maior parte do que conhecemos sobre sua vida nos é narrada pelo historiador judeu Flávio Josefo, que nos diz que, por ser um idumeu, a legitimidade de seu reinado era contestada pelos judeus. Numa tentativa de obter essa legitimidade, ele casou-se com Mariana, uma hasmoniana filha do alto sacerdote do Templo. Ainda assim, ele vivia temeroso de uma revolta popular, razão pela qual teria construído, como refúgio, a fortaleza de Massada. sua corte era helenizada e culta. Ele fundou as cidades gregas de Sebaste (Samaria)e Cesareia,com o seu belo porto. Construiu fortalezas e palácios, incluindo Massada e o magnífico Templo,o Herodium.Presidiu aos Jogos Olímpicos. Ao morrer, em 4 a.C., Herodes deixou disposto, em testamento, a partilha do reino entre três de seus filhos sobreviventes: Herodes Arquelau, Herodes Antipas e Filipe. No Evangelho de Mateus, ele é acusado pela "Matança dos Inocentes", em Belém, episódio não confirmado na obra de Josefo, onde são descritos, minuciosamente, os inúmeros crimes do rei.
[4] Copônio (português brasileiro) ou Copónio (português europeu) (em latim: Coponius) foi um político romano, primeiro governador (praefectus) da província romana da Judéia, por volta de 6 d.C. Inicialmente o governador da Judéia tinha o título de 'prefeito'; apenas depois da morte de Agripa (em 44) que procurador tornou-se a denominação oficial. http://pt.wikipedia.org/wiki/Copônio#cite_note-0
[5] A Ordem Equestre Romana (ordo equester) formava a mais baixa das duas classes aristocráticas da Roma antiga, estando abaixo da Ordem Senatorial (ordo senatorius). Um membro desta ordem era conhecido como um eques (plural: equites), que em latim significa qualquer pessoa a cavalo (equus), mas neste contexto tem o significado específico de "cavaleiro". Os cavaleiros proviam os oficiais veteranos e muita da cavalaria das legiões manipulares até 88 a.C., quando a cavalaria legionária foi abolida. No período tardio da República, os Senadores e os seus filhos tornaram-se numa elite não-oficial dentro da ordem dos cavaleiros. Sob o fundador do Império Romano, Augusto, a elite senatorial foi constituída como uma ordem separada e com estatuto e privilégios superiores aos cavaleiros. As duas ordens aristocráticas, compostas principalmente por Italianos, dominavam os postos administrativos e militares mais altos no governo imperial até ao século III. Nesse século, o poder mudou para uma secção dos cavaleiros que incluía oficiais com carreira militar e que tomaram o lugar dos aristocratas Italianos. http://pt.wikipedia.org/wiki/Ordem_Equestre
[6] Publio Sulpicio Quirinio, a veces llamado también Publio Sulpicio Quirino o Cirenio (en griego Κυρήνιος, c. 51 a. C. - 21) fue un aristócrata del Imperio romano, miembro del Senado y cónsul. Su periodo como gobernador de Siria es uno de los anclajes cronológicos del nacimiento de Jesús de Nazaret. http://es.wikipedia.org/wiki/Publio_Sulpicio_Quirinio    
[7] Na origem, os cargos procuratórios romanos (procônsul, propretor e proquestor) foram uma inovação da República Romana, criados para fornecer generais e governadores provinciais sem a necessidade de eleger mais magistrados a cada ano. Assim, em vez de estabelecer novos cargos de magistratura ordinária para aqueles fins, os romanos preferiam designar cidadãos para agir em nome (pro) de um magistrado eleito. O procônsul agia, portanto, em nome ou no lugar (pro) do cônsul (consul).
[8] Lúcio Élio Sejano (em latim Lucius Aelius Sejanus, 20 a.C. - 18 de outubro de 31 d.C) foi prefeito da guarda pretoriana e em dada altura o homem mais influente na Roma Antiga, durante o reinado do imperador Tibério. http://pt.wikipedia.org/wiki/Sejano
[9] Guarda pretoriana era o grupo de legionários exprientes encarregados da proteção do praetorium, parte central do acampamento de uma legião romana, onde ficavam instalados os oficiais. Com a tomada do poder por Otávio (Caio Júlio César Octaviano Augusto), transformou-se em guarda pessoal do imperador, as chamadas Coortes. http://pt.wikipedia.org/wiki/Guarda_Pretoriana .  O Ap. Paulo enquanto preso em Roma era vigiado por soldados da Guarda Pretoriana e evangelizou a muitos deles.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

SÍNTESE BÍBLICA – Juízes

            Uma das características mais fascinantes das narrativas bíblicas é que nelas seus personagens são plenamente humanos, com suas virtudes e defeitos. Seja um grande líder ou uma pessoa comum ou mesmo o povo em sua maioria, são retratados de forma nua e crua. Por isso podemos ler e nos identificar com esses milhares de personagens, que são verdadeiros espelhos de nós mesmos.
            O livro de Juízes é a sequência histórica natural do seu antecessor, o livro de Josué. Sob a liderança forte e carismática de Josué os israelitas foram tomando parte por parte o território dos povos canaanitas. Evidentemente que nem tudo foram flores, pois inumeráveis espinhos dificultaram tão extraordinária campanha bélica. Grande parte das dificuldades foram criadas pelos próprios israelitas, que para variar, nunca entenderam e atenderam para as orientações de Deus, e na maioria das vezes, metiam os pés pelas mãos (evidentemente nós nunca fazemos isso).
            Agora, Josué já foi sepultado, bem como seu grande companheiro de batalhas e fé, Calebe. Uma nova geração de israelitas está usufruindo as conquistas de seus pais. Mas como tudo que vem fácil, vai fácil, esta nova geração se “esqueceu” de tudo quanto Deus havia falado e feito e se sentiram desobrigados a viverem uma fé e religião que lhes privava das coisas prazerosas que Canaã oferecia. Tudo isso está sintetizado na frase que se constitui um refrão do livro de Juízes: “fizeram o que parecia mal aos olhos do Senhor”.
            Infelizmente o livro é uma ode triste e dramática de um povo e seus líderes que reiteradamente optam por se afastarem de seu Deus, que os havia libertado da escravidão, sustentado no deserto e lhes havia capacitado a tomarem posse de uma terra que lhes havia sido prometida ainda nos remotos dias de Abraão, Isaque, Jacó e Moisés.
            Mas por outro lado, podemos encontrar nas páginas deste livro, a manifestação extraordinária da graça [favor não merecido] de Deus. Em poucas partes da bíblia podemos visualizar de forma tão concreta a longânime paciência de Deus, para com um povo ingrato e determinado a fazer o que desagrada a Deus.
            Há um ciclo pernicioso que se repete durante toda a narrativa deste livro (2.16-23): reincidência na desobediência (pecado); disciplina (invasão de povos inimigos); arrependimento (reconhece o pecado); livramento (providência de Deus) e período de paz (graça de Deus). Há pelo menos oito ciclos registrado neste livro, conforme nomeados abaixo.
            Mas esses ciclos não são apenas meras repetições, mas há uma terrível espiral descendente, onde a cada um desses ciclos os israelitas paulatinamente vão se afastando cada vez mais da vontade de Deus, claramente estabelecida na Aliança, cujos os termos foram registrados no Pentateuco. Desta forma, quanto mais se afastam do padrão de Deus, mais afundam na decadência e depravação das religiões e costumes dos povos canaanitas. Qualquer semelhança com o evangelicalismo brasileiro não é mera coincidência.
            No livro de Juízes os israelitas vivem continuamente no fio da navalha. A cada novo ciclo de desobediência aos termos da Aliança, mais se aproximam da decadência total. As conclusões do livro, com os registros de acontecimentos sórdidos, foram colocadas (alguns comentaristas dizem deslocadas) como um epitáfio de um período deprimente e degenerado do “povo de Deus”. Essa geração evangélica brasileira narcisista/hedonista está muito próxima de seu epitáfio.
            O título do livro “Juízes” (Shophetim) é decorrente dos diversos líderes que Deus levantou para liderar, libertar e governar as tribos. Esses líderes são tribais e nenhum deles de fato julgou todas as tribos. Não houve sucessores entre os juízes, como acontecem com os reis, e em alguns momentos mais de um juiz exerceu essa função simultaneamente. Entre eles destaca-se uma mulher, Débora, que diante da negativa de Baraque em assumir a liderança para a batalha, assumiu o papel de juíza, liderando e vencendo a batalha contra os inimigos que lhes oprimia.
            É preciso entender que os ciclos cronológicos citados na narrativa, 40 anos (uma geração), ou de seu múltiplo 80, ou ainda seus submúltiplos 20, 10, são simbólicos e não exatos, visto que o escritor certamente não possuía em mãos os dados exatos. Desta forma estabelecer uma cronologia do período de Juízes é muito complicado, pois a somatória simples do tempo que cada juiz exerceu sua função e as invasões somam 410 anos, de maneira que fica além da cronológica histórica da época.
            A escolha de cada juiz é feita por Deus, não necessariamente fundamentada no caráter dos escolhidos. Se houve juiz como Débora de caráter ilibado, houve também Gideão titubeante, Sansão inconsequente e Jefté que em um rompante idolatra acaba por condenar sua própria filha à morte. Evidentemente, que cada um deles foi chamado e cumpriu seus objetivos, unicamente por que Deus os capacitou, e não por causa de suas habilidades ou capacidades pessoais. Na verdade, nenhum deles, ou de nós, está apto por si mesmo a servir a Deus, pois como dizia acertadamente o poeta/rei Davi – “o meu pecado está sempre diante de mim”. Nas páginas da Bíblia não há super homem ou super mulher, apenas e tão somente, pecadores nas mãos de um Deus gracioso, que os capacita e sustenta, quando chamados a fazerem sua vontade e cumprir seus desígnios.
            O livro de Juízes (9.8) registra a primeira alegoria encontrada na Bíblia, provavelmente a primeira parábola. Uma alegoria é uma história na qual um significado é transmitido diferentemente do que está no texto ou sendo dito; serve para ilustrar uma verdade, que no caso as árvores representam pessoas que haverão de eleger ou escolher um rei para eles. Enquanto pessoas dignas (carvalhos) se omitirem os maus caráter (espinheiros) sempre governaram sobre o povo.  

Esboço Básico
I. Uma Retrospectiva (1 a 2.10)
II. Modelo do Ciclo de Apostasia (2.11 a 3.6)
1. Desobediência (2.11-13, 17, 19.
2. Consequência (2.14,15)
3. Arrependimento (2.18)
4. Libertação e Descanso (2.16)
            Esse ciclo se repete no transcorrer e todo o livro.
III. Autoexame (3.7 a Rute)
1. De forma geral (3.7 – 16) Ciclo de 12 Juízes
ü  Otniel (3.7-11) – Mesopotâmia
ü  Eúde (3.12-30) – Moabe
ü  Sangar (3.31) – Filistéia
ü  Débora e Baraque (4.1-5.31) Canaã (Hazor)
ü  Gideão (6.1-8.35) – Midiã
ü  Abimeleque, Tola e Jair (9.1-10.5) [sem inimigos externos]
ü  Jefté (10.6-12.7) – Amom
ü  Ibsã, Elom e Abdom (12.8-15) [sem inimigos externos]
ü  Sansão (13.1-16.31 – último dos juízes) - Filistéia
2. Especifico (17 – Rute) 02 episódios negativos e um positivo
ü  Mica e sua idolatria (17-18)
ü  Gibeá e Benjamim – atrocidade e guerra civil (19 – 21)
ü  Noemi e Rute – uma moabita é modelo de fé (livro de Rute)

Link com o Novo Testamento
            Há poucas referências deste livro no NT: Atos (13.20) faz referências a fatos ocorridos nos dias dos juízes; o livro de Hebreus (11.32) menciona literalmente alguns dos personagens de Juízes: Baraque (4); Gideão (6-8); Jefté (11-12) e Sansão (14-16); todos eles, apesar de suas fraquezas e imperfeições, são incluídos na “Galeria da Fé”.

Estatísticas: 7º livro da Bíblia; 21 capítulos; 618 versos; 23 vezes Deus comunica sua vontade; 15 povos lutam contra os israelitas (Filisteus – 3.31; Cananeus – 1.1-33; Sidônios – 3.3; Heveus – 3.5; Heteus – 3.5; Amorreus 1.34-36, 3.5; Ferezeus 1.4,5, 3.5; Jebuseus – 1.21, 3.5; Babilônios – 3.8-11; Moabitas 3.12-30; Amonitas – 3.13; Amalequitas – 3.13; Midianitas – 6.1-33; Ismaelitas – 8.24; Maonitas – 10.12).  

Cronologia História
            A elaboração de uma cronologia dos fatos históricos da bíblia é sempre um exercício difícil, pois nem sempre os acontecimentos são demarcados com indiscutível exatidão. Mesmo com o avanço expressivo da ciência arqueológica há muito que ignoramos da época Patriarcal (Genesis), dos primórdios de Israel e seu estabelecimento em Canaã (Êxodo-Rute). A partir da Monarquia (Davi) a cronologia começa a ter maior grau de exatidão e conciliação com a História geral da época.
Cronologia Histórica
História de Israel
Historia Geral
Egito-Palestina na época do Bronze Antigo

Império Antigo (2600-2500)

Império Médio (2100-1730)

Mesopotâmia
3ª dinastia de Ur (2100-2000)

Código de Hammurabi
rei de Babilônia
(1800)

Patriarcas
Época do Bronze Médio
Chegada de Abraão em Canaã
(próximo de 1850)

Jacó e sua família sobem para o Egito
(próximo 1700)
Opressão dos israelitas no Egito
Moisés e Josué


Egito – Ramsés II

(1304-1238)
Batalha em Cades (1286)

Saída dos israelitas do Egito
A Promulgação da Lei – Monte Sinai
(próximo de 1250)

Me. ipg

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quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

BETÂNIA: Um Lugar de Refrigério e Vida

Jesus havia preparado seus discípulos para esta última caminhada que fará à cidade de Jerusalém. Ele sabe que havia chegado a hora, quando cumpriria em todos os detalhes a vontade do Pai, incluindo a cruz.
Ele vem caminhando desde Jericó, pela estrada pedregosa construída pelos romanos, com sua poeira fina, que somado ao ar muito quente que vem do Deserto da Judéia, torna a jornada ainda mais penosa e cansativa. Mas ao levantar os olhos Jesus e seus discípulos consegue avistarem, ainda longe, a pequena Vila de Betânia, o que lhes proporciona antecipadamente um alívio e uma motivação a mais para acelerarem os passos.
Betânia era uma pequena vila, porém muito tranquila e aconchegante, um verdadeiro Oasis para viajantes cansados. Suas poucas moradias estavam escondidas nas escarpas do Monte das Oliveiras, o que proporcionava um ambiente de quietude reparadora. Ali do alto, olhando para o leste e para o sul Jesus podia contemplar o Deserto da Judéia com sua vastidão seca e despovoada a não ser as poucas tendas dos nômades. Ao amanhecer é possível Ele ver o sol nascendo sobre as montanhas da Transjordânia, na parte ocidental do Mar Morto, e acompanhar a iluminação paulatina do Vale do Jordão, 900 metros abaixo, bem como o reflexo da luz solar nas águas do Mar Morto a 20 km do lado leste. A pouco mais de 20 km Herodes, o Grande, havia construído sua fortaleza, chamada de Herodium, no qual ele se refugiava – apenas trinta anos antes - não muito distante de Belém.
A brisa refrescante advinda na maioria das vezes do Mediterrâneo combatia eficazmente o calor seco que poderia vir do deserto. A cidade de Jerusalém está apenas 3 km adiante, mas aqui em Betânia o barulho e a agitação da Capital não chegam. Assim, este pequeno e tranquilo vilarejo é o lugar perfeito para quem precisa refazer as forças – o lugar perfeito para Jesus se preparar para a última semana. Desde segunda feira Jesus faz este percurso de 45 minutos a pé, de Betânia para Jerusalém, com seus discípulos. À tarde, depois de embates duríssimos com seus adversários, que tramam continuamente sua morte, Jesus retornar para descansar em Betânia.
Na somatória dos relatos evangélicos é possível concluir sem erro que está Vila era o lugar preferido de Jesus, todas as vezes que subia a Jerusalém. Aqui estabelecera uma amizade profunda com Lázaro e suas duas irmãs Marta e Maria, e com eles Jesus sentia-se em casa.
Portanto, não é por acaso, que após sua ressurreição, chegado a hora de sua ascensão, quando retornar ao Pai para reassumir sua glória, Jesus se despede de seus discípulos nas proximidades desta pequena, mas acolhedora Vila de Betânia.
É provável que fosse à casa de Lazaro que os discípulos, assustados com a prisão de Jesus, foram se refugiar. Ali ficariam agrupados aguardando o desenrolar dos acontecimentos fatídicos. Ficaria mais fácil e lógico imaginar as mulheres saindo de Betânia para acompanhar toda a paixão de Jesus, e após sua crucificação e morte elas acompanham a retirada do corpo dele para ser levado ao tumulo, o qual elas pretendem retornar logo nas primeiras horas do domingo, para o embalsamarem. Então, elas retornam, consolando o coração multifacetado de Maria.
Foi aqui na tranquila Betânia que outros dois acontecimentos extraordinários, que antecedem a paixão de Jesus, mas que estão vinculados diretamente a este último momento dele.
O primeiro é a ressurreição de Lazaro, que mesmo depois de morto e sepultado e estando já no terceiro dia é trazido à vida pelo poder vivificador de Jesus. Este acontecimento está carregado de sentimentos humanos – dor e emoção. Aqui Jesus desnuda toda sua humanidade, quando chora a morte de seu amigo e também a incredulidade daqueles que mesmo vendo o que Ele vai fazer, escolheram permanecer na incredulidade. Muitos anos depois, João em sua narrativa evangélica não tem dúvida de que a mensagem de Betânia não é de morte, mas de vida: Jesus é aquele que detém o poder único sobre a morte; Ele é “a ressurreição e a vida” (Jo 11.25). 
O segundo acontece na casa de um homem chamado Simão, o leproso, onde uma mulher, que Marcos não identifica pelo nome, mas que João vai posteriormente nomina-la de Maria, derrama um vidro inteiro de perfume caríssimo sobre Jesus, o que deixa horrorizado os discípulos, principalmente Judas Iscariotes, mas que produz em Jesus emoções profundas e ele interpreta como um gesto simbólico e intuitivo, pois aquela mulher sentiu o que nenhum dos seus discípulos, nem o trio mais achegado, sentiram – e de fato o que as mulheres pensaram em fazer como homenagem ao Jesus morto, no domingo de manhã, mas não o fizeram porque Jesus havia ressuscitado – aquela mulher pode fazer enquanto Jesus ainda está vivo, e ela foi honrada pelo Mestre, pois Ele declarou que esta atitude amorosa e silenciosa dela, na pequena e singela Vila de Betânia, seria propagada “pelo mundo ... em sua memória” (Mc 14.9) e aqui estamos nós atestando esta verdade.
Por tudo isso, Betânia torna-se uma caixa de ressonância para Jerusalém. Ela não se constitui apenas de um lugar de refúgio e refrigério de Jesus e seus discípulos, mas um lugar da manifestação plena da humanidade e da divindade de Jesus. Aqui Ele é visto em todo o seu envolvimento com a raça humana; Betânia não é apenas o local de preparação para os inomináveis acontecimentos do Domingo de Ramos ou do Domingo da Ressurreição, mas esta singela Vila de Betânia é o testemunho incontestável do poder de Jesus em dar a Vida.


Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
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