quarta-feira, 23 de junho de 2021

Os Dez Mandamentos & As Bens Aventuranças



            Houve um tempo, creio que poucos evangélicos atuais se lembram, de que a vida cristã refletia um compromisso moral-ético estritamente bíblico. Um tempo em que havia somente dois Caminhos – o ético e moralmente certo e o ético e moralmente errado. Mas então chegou o chamado pós-modernismo, que até hoje não se encontra dois filósofos que o definam igualmente, e as novas gerações – mas também uma grande parcela da antiga – desesperados para saírem do armário ético-moral em que estavam escondidos – abraçaram com avidez a “adaptação” evangélica desta nova modalidade de moralidade “evangélica” em que o “sim, sim e o não, não” e o que passa disso “é do diabo”, foi completamente exonerado e entrou o “não é bem assim” que tem prevalecido em setores cada vez amplo do evangelicalismo brasileiro e mundial.

            Os Dez Mandamentos e as Bem Aventuranças, que estão inseridas na Bíblia Cristã desde suas origens e que serviram de bússola ético-moral para a uma vida cristã genuína por dois mil anos ainda continuam ocupando seus espaços nas páginas da Bíblia (não sei por quanto mais tempo), mas não mais como única diretriz para o vivencial evangélico.

Enquanto nos primórdios da Igreja Cristã os “catecúmenos ou neófitos na fé cristã” tinham que antes de serem inseridos na comunidade memorizarem estes dois conjuntos de diretrizes e recitá-los em público, como testemunho de seu compromissos em vivencia-los em todas as esferas de suas vidas, esses dois parâmetros ético-moral foram sendo paulatinamente “esquecidos” pelas lideranças, pregadores e professores evangélicos, de maneira que as gerações mais recentes de “evangélicos” pouco ou quase nada sabem a respeito deles e por consequência não possuem nenhum compromisso de vivencia-los, como não tem compromisso algum de vivenciar o próprio Evangelho.

Todavia, ambos os conjuntos normativos continuam valendo, pois fazem parte de “toda Escritura” que são inspiradas por Deus e, portanto, continuam sendo úteis para deixar claro o que é verdadeiro, para confrontar o mal (maldade), para corrigir os que vivem nas práticas erradas e para ensinar a maneira certa de viver (2Tm. 3.16-17). E se há uma maneira certa para se viver, existe também uma forma errada de se viver. De maneira que tanto os Dez Mandamentos, quanto as Bem Aventuranças constituem a forma certa de se viver e os que os rejeitam ou alienam de suas práticas vivenciais estão optando pela forma errada de viver.

Abaixo temos em paralelo os dois conjuntos de normas que devem nortear a vivência cristã-evangélica. Isso nos possibilitara não uma comparação, mas uma visão mais ampla destes dois preciosos textos bíblicos. A partir desta leitura simples, sem uma análise mais detalhada de cada ponto deles, poderemos desenvolvermos uma prática bíblica saudável espiritual e correta em suas dimensões ético-moral. Isso não é pouca coisa, visto que vivemos em um mundo influenciado pelo maligno que instiga a natureza humana pecaminosa para proliferar toda sorte de pensamentos impuros; ansiedade pelo prazer carnal; idolatria, feitiçaria, (isto é, incentivo à atividade dos demônios); ódio e luta; ciúme e ira; esforço constante para viver em função de si próprio; queixas e críticas; o sentimento de que todo mundo está errado, menos aqueles que são do seu próprio grupinho; e falsa doutrina, inveja, assassinato, embriaguez, divisões ferozes e toda essa espécie de coisas (Gl 5.19-21).

 

Dez Mandamentos

(Êxodo 20.1-17; Deuteronômio 5.6-21)

Bem Aventuranças

(Mateus 5.1-12)

Eu Sou Javé, o SENHOR, teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão!

Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus.

 

Não terás outros deuses além de mim.

Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados.

"Não farás para ti nenhum ídolo, nenhuma imagem esculpida, nada que se assemelhe ao que existe lá em cima, nos céus, ou embaixo na terra, ou mesmo nas águas que estão debaixo da terra. Não te prostrarás diante desses deuses e não os servirás, porquanto Eu, o SENHOR teu Deus, sou um Deus ciumento, que puno a iniquidade dos pais sobre os filhos até a terceira e quarta geração dos que me odeiam, mas que também ajo com amor até a milésima geração para aqueles que me amam e guardam os meus mandamentos.

Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra.

Não pronunciarás em vão o Nome de Javé, o SENHOR teu Deus, porque Javé não deixará impune qualquer pessoa que pronunciar em vão o Seu Nome.

Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque eles serão fartos.

 

Lembra-te do dia do sábado, para santificá-lo.

Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia.

Honra teu pai e tua mãe.

Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus.

Não matarás

Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus.

Não adulterarás

Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.

Não furtarás

Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguiram e, mentindo, disserem todo mal contra vós por minha causa.

Não darás falso testemunho contra o teu próximo

Alegrai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; porque assim perseguiram aos profetas que foram antes de vós.

Não cobiçarás a casa do teu próximo, nem a mulher de teu próximo; nem seus servos, animais ou coisa alguma que lhe pertença.

 

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Guedes, Ivan Pereira

Mestre em Ciências da Religião.

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Referências Bibliográficas

Os Dez Mandamentos

ALTER, Robert e KERMODE, Alter (Orgs.). Guia Literário da Bíblia. Tradução Raul Fiker tradução; Revisão de tradução Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997. - (Prismas).

COELHO FILHO, Isaltino Gomes. A Atualidade dos Dez Mandamentos. São Paulo: Êxodus, 1997.

DeYOUNG, Kevin. Os Dez Mandamentos: significado, importância e motivos para obedecer. tradução de Abner Arrais e Ubevaldo G. Sampaio. São Paulo: Vida Nova, 2020.

SILVADO, Luiz Roberto Soares. A Ética Cristã nos Dez Mandamentos. Curitiba: A.D. Santos Editora, 2017.

SOARES, Esequias. Os Dez Mandamentos: valores divinos para uma Sociedade em Constante Mudança. Rio de Janeiro: CPAD.

WADE, Loron. Os Dez Mandamentos: Princípios divinos para melhorar seus relacionamentos. Tradução Eunice Scheffel do Prado. 2ª ed. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2010.

As Bem-Aventuranças

CARSON, D. A. Carson. O Sermão do Monte: Exposição de Mateus 5—7. São Paulo: Vida Nova, 2020.

CARVALHO, César Moisés. O Sermão do Monte: A Justiça Sob a Ótica de Jesus. Rio de Janeiro: CPAD, 2017.

FERGUSON, Sinclair B. Sermão do Monte. Tradução Elmer Pires. São Paulo: Editora Trinitas, 2019.

LLOYD-JONES, D. Martin. Estudos no Sermão do Monte. Tradução de João Bentes. São José dos Campos: em português 1984. Ed. Fiel. (Reimpressões 1989 a 2012).

MAYFIELD, James L. The Sermon on the Mount: A Personal Encounter with the Wisdom of Jesus. Eugene, OR: Wipf & Stock Publishers, 2011. [O Sermão da Montanha: Um Encontro Pessoal com a Sabedoria de Jesus].

OLIVEIRA, Nelci Silvério de. O sermão da montanha. Goiânia: AB, 2001.

STASSEN, Glen Harold. A Thicker Jesus: Incarnational Discipleship in a Secular Age. Westminster John Knox Press, 2012 [Um Jesus Mais Grosso: Discipulado Encarnacional em uma Era Secular].

STOTT, John R. A mensagem do Sermão do Monte. Tradução: Yolanda M. Krievin. São Paulo: ABU Editora, 1989, 2ª ed. Série: A Bíblia Fala Hoje. [Título anterior: Contracultura Cristã]. 

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sexta-feira, 18 de junho de 2021

Filemom: Características Peculiares da Epístola

 


1. Foi escrito pelo apóstolo Paulo. Timóteo é nomeado coemitente.

2. Foi escrito em Roma durante a primeira prisão de Paulo, por volta de 62 d.C.

3. É uma carta de tom estritamente particular, ainda que Paulo estenda sua saudação à pequena comunidade que funcionava na casa de Filemom. As epístolas a Timóteo e Tito, embora dirigidas a uma pessoa, tratavam de assuntos envolvendo toda a igreja.

4. A carta é principalmente uma solicitação a um cristão chamado Filemom para receber de volta um escravo fugitivo chamado Onésimo. O escravo havia fugido de seu dono, e chegando em Roma, acaba encontrando o apóstolo Paulo que o evangeliza e o leva a professar a fé Cristo. Então Paulo o mandou de volta a Filemom com esta carta.

5. A carta é uma joia de beleza literária. Este fato é quase universalmente admitido. A epístola às vezes foi comparada a uma carta de Plínio, o jovem (um governador romano por volta de 90 d.C.), que escreveu a um amigo instando-o a não condenar de volta à escravidão um ex-escravo que o havia ofendido. A carta de Plínio também é cheia de graça e beleza, mas não tem os fundamentos espirituais nem a fervorosa seriedade da carta a Filemom.

6. O próprio Onésimo é um dos portadores da carta a Filemom. Ele viajou com Tíquico, que entregou as cartas aos Efésios e aos Colossenses. Observe que os mesmos homens entregaram Colossenses e Filemom (Cl 1.1; Fm 1); que Paulo se autodenomina prisioneiro em ambas as epístolas (Cl 4.10; Fm 1); que as mesmas pessoas enviam saudações em ambas as epístolas (Cl 4.12-14; Fm 23-24) e que em Colossenses 4.7-9 Onésimo é chamado de "um de vocês '' e que Tíquico deve dar-lhes notícias pessoais.

7. Embora Filemom seja uma carta particular, ela foi considerada uma escritura inspirada pela igreja desde o início. Até Marcião, um dissidente herético do final do século II, que rejeita muitos documentos neotestamentário, incluiu esta pequena carta em sua lista resumida de epístolas paulinas autênticas. Orígenes, um dos líderes cristãos no início do século III cita os versos 9 e 14 como Escritura.

8. Muitos líderes cristãos do quarto século desaprovaram a epístola e pensaram que tratava de um assunto muito insignificante para ser parte das Escrituras. Eles estavam interessados ​​apenas em controvérsias de credibilidade e autoridade eclesiástica. Todavia, muito antes deles Tertuliano e Eusébio (em sua História Eclesiástica), de igual forma, a colocam entre as cartas evidentemente paulinas: verdadeira, genuína e reconhecida e além desses, também Jerônimo Crisóstomo e Teodoro de Mopsuéstia (ou Teodoro de Antioquia) defenderam esse precioso documento habilmente.

9. É difícil para nós acharmos que o assunto em discussão em Filemom é de pouco valor. Paulo está tratando da vida de um convertido (Onésimo), portanto, irmão em Cristo. Onésimo é, portanto, um representativo de todos os cristãos que se encontravam e ainda hoje se encontram em situações semelhantes. Nos dias do apóstolo Paulo, talvez a metade da população de Roma — centenas de milhares de pessoas — era composta de escravos. Muitos historiadores afirmam que o Império Romano precisava de meio milhão de escravos todo ano para construir monumentos, trabalhar nas minas, lavrar os campos e suprir servos para as enormes vilas dos abastados. Essa pequena carta de Paulo é um oásis pois mostra que os princípios do Evangelho trazem o bem para nós em todas as situações da vida, pequenas e grandes.

10. A carta apresenta o conceito de DEVER de forma muito vívida. Onésimo deviria cumprir seu dever, apesar de sua mudança de condição espiritual em Cristo. O apóstolo faz um jogo de palavras com o nome “Onésimo” que significa “útil” no verso 11 quando escreve: “antes [Onésimo] não foi útil para você, mas agora é útil para você e para mim”.

 

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Guedes, Ivan Pereira
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Paulo: Informações Biográficas

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Referências Bibliográficas

BARCLAY, William. El Nuevo Testamento comentado. Buenos Aires (Argentina), Asociación Editorial la Aurora, 1974.

BROWN, Raymond. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2004 (Coleção Bíblia e história Série Maior).

BERKHOF, Louis. New Testament Introduction. Eerdmans, 1915, Scanned and Edited Mike Randall.

BRUCE, F. F. Merece Confiança o Novo Testamento? São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1965.

GARDNER, Paul (Editor). Quem é quem na Bíblia Sagrada. Tradução Josué Ribeiro. São Paulo: Vida, 1999.

HALE, Broadus David. Introdução ao estudo do Novo Testamento. Trad. Cláudio Vital de Souza. Rio de Janeiro: JUERP, 1983.

HAWTHORNE, G. F., MARTIN, R. P., & REID, D. G. Dictionary of Paul and his letters. Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1993. [p. 706].

HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento - 1 e 2 Tessalonicenses, Colossenses e Filemom. São Paulo: Tradutores Ezia C. Mullins, Hope Gordon Silva, Valter G. Martins. São Paulo: Cultura Cristã, 2007.

KUMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 1982.

TENNEY, Merrill C. (Org.). Enciclopédia da Bíblia, v. 2. Tradução da Equipe de colaboradores da Cultura Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2008.

 

quarta-feira, 16 de junho de 2021

Comentários Bíblicos: O que são e qual sua função?

 


        Para aqueles leitores bíblicos que não frequentam o meio acadêmico o termo “comentário bíblico” pode soar de forma intrigante ou até mesmo desconhecido. Para o estudante mais acadêmico o comentário bíblico é uma ferramenta útil para o estudo da Bíblia.

            A Bíblia é a única fonte primária, de maneira que seja qual for o tipo de comentário bíblico será sempre fontes secundárias, cujo objetivo deve ser sempre o de esclarecer e facilitar a compreensão das Escrituras. Infelizmente um número expressivo de comentaristas mais ofuscam e desvirtuam o sentido primário dos textos bíblicos, do que ajudam os leitores a compreende-los adequada e corretamente. Por esta razão é necessário que se tenha um conhecimento sobre quais são os tipos e utilidade deles, bem como desenvolver um senso de discernimento para se distinguir  neste mar de comentários que foram e continuam sendo produzidos nestes mais de dois mil anos de cristianismo.

Tipos de comentários

Há uma grande variedade de comentários e algumas perguntas nos ajudam: quão inclusivos eles são; que nível de especialização acadêmica eles pressupõem; qual a metodologia interpretativa o comentarista utiliza; o que está incluído em seu plano ou esquema geral; e por fim, mas o mais importante é identificar com muita clareza quais são os pressupostos teológicos do autor.

        Um esboço para se compor uma boa biblioteca: (1) a Bíblia nas línguas originais, bem como uma ou mais traduções de boa qualidade; (2) uma ou mais  Bíblias de estudo; um comentário em volume único de toda a Bíblia; bem como comentário de um volume do Antigo e do Novo Testamento, visto que seus autores se aprofundaram ainda mais as temáticas de cada livro; os tratamentos mais detalhados das escrituras são as séries de comentários ou, possivelmente, comentários separados sobre livros individuais da Bíblia. Em cada nível, o estudante da Bíblia ganha acesso a informações cada vez mais detalhadas a respeito de passagens individuais e/ou perícopes especificas de cada livro bíblico.

Comentários de Volume Único: Pode ser um comentário que engloba todos os livros da bíblia em um único volume, ou que abordam separadamente todos os livros do Antigo Testamento e outro volume que abordam todos os livros do Novo Testamento. O aspecto positivo é que você terá em mãos um comentário geral de toda a bíblia. Todavia, por mais que se esforcem os comentaristas, não será possível, pela delimitação de espaço, uma abordagem mais ampla das discussões textuais e interpretativa. Mormente se utiliza a seção introdutória de cada livro para se apresentar as controvérsias e dificuldades que serão encontradas no transcorrer do estudo daquele livro especifico.   Para isso o comentarista segue um esboço contendo resumos de parágrafos ou seções maiores do conteúdo dos livros bíblicos individuais e vai tecendo seus comentários a partir deste esboço.

Comentário em Série: A série pode ser comentários sobre (1) cada livro de toda a Bíblia, ou (2) cada livro do Antigo Testamento ou do Novo Testamento. Dependendo da proposta editorial a série pode conter de apenas três ou quatro volumes a mais de cem volumes. Esse tipo de comentário em série com muitos volumes remonta ao início da escrita de comentários na era moderna. Um aspecto técnico positivo deste tipo de comentários é que cada volume produzido segue um formato pré-estabelecido pelo(s) editor(es) de maneira que se mantém um padrão de qualidade para cada volume. Nestas últimas décadas os comentários em série estão cada vez mais exigentes em relação à metodologia exegética de seus autores melhorando substancialmente o padrão de qualidade do conjunto da obra.

Comentário Individual: Outro tipo de comentário é o comentário individual de cada livro da bíblia, podendo ser de um único comentarista ou mais autores. Ao longo de sua carreira, vários estudiosos desenvolvem conhecimentos de alto nível em áreas específicas dos estudos bíblicos. Mormente este tipo de comentário é resultante de uma pesquisa mais profunda por parte do comentarista, possibilitando ao leitor uma visão excepcional do significado daquele livro bíblico.        
        Os comentários individuais oferecem uma ampla diversidade de perspectiva que refletem as opiniões e conclusões dos seus autores. O que exige por parte do leitor um cuidado mais apurado. Também a produção individual varia muito em seu padrão de qualidade, diferente dos produzidos em série, o que pode resultar em uma interpretação superficial ou até mesmo distorcida do sentido do texto bíblico analisado.

            Os comentários podem ser classificados também em relação ao seu aspecto técnico acadêmico:

 Comentário Devocional: Normalmente este tipo de comentário visa o leitor leigo e faz uma abordagem mais simples em relação ao texto bíblico, o que não implica necessariamente em análise superficial, mas em que não se dará muito espaço para as discussões mais acadêmicas como por exemplo as variantes textuais ou as opiniões divergentes de outros autores. Concentra-se mais especificamente no significado primário do texto abordado, com ênfase nas aplicações práticas da vivência cotidiana do público a ser alcançado. O propósito é mais inspirar do que informar o leitor contemporâneo. De maneira que, muitos comentários devocionais acabam ficando defasados, visto que, suas aplicações não trazem o mesmo impacto na vida do leitor, uma vez que o contexto vivencial é completamente diferente. Um cuidado a mais é quanto a metodologia interpretativa do comentarista. Muitas vezes, por se tratar de um comentário devocional e não exegético, o autor não trata com acuidade necessário os aspectos hermenêuticos exegéticos do texto. Essa negligência certamente comprometera o resultado final do trabalho apresentado. Prolifera nesses comentários devocionais toda sorte de “opiniões” e “pensamentos” pessoais dos seus respectivos autores, que em vez de extrair o conceito do texto (exegese) , acabam por imporem suas próprias opiniões ao texto analisado (eisegesis), o que fere de morte qualquer comentário bíblico. Mas como afirmei acima, há excelentes e bons comentários devocionais.

Comentário Expositivo: Nesse tipo de comentários há uma preocupação maior com os aspectos técnicos. Procura-se o significado histórico do texto e normalmente faz-se um estudo a partir dos textos originais hebraico e grego. Mas os comentaristas tem em mente o fato de que seus leitores não dominam estas questões linguísticas e exegéticas, de maneira que se faz um esforço em explicar tais questões e não apenas apresenta-las. Muitos comentários em série trazem esse perfil, bem como os comentários individuais. Eles se concentram no significado do texto sem entrar em tecnicismos tipicamente acadêmicos, evitando uma leitura cansativa, mas sem ser superficial nas abordagens textuais. Também não são homiléticos e nem devocionais.

Eles procuraram evitar os extremos de serem excessivamente técnicos ou inutilmente breves. Eles são escritos para auxiliar os leitores não acadêmicos a entenderem melhor o sentido do texto bíblico.            Também trazem um resumo das alternativas interpretativas das perícopes e/ou parágrafos dos textos bíblicos, possibilitando um melhor entendimento por parte dos leitores. Para os leitores que desejam se aprofundar mais no estudo bíblico esse tipo de comentário é o mais qualificado.

Comentário Exegético: Esse tipo de comentário é o mais acadêmico. Aqui o comentarista vai enfatizar todas as ferramentas de que dispõe para explorar o texto em todos os seus aspectos linguístico e gramaticais. A leitura desses comentários é mais pesada e cansativa, pois discute-se os mínimos detalhes do livro abordado e também são volumes extensos chegando a mais de oitocentas páginas. Para facilitar a vida do leitor os comentaristas utilizam uma metodologia, que varia de comentarista para comentarista, mas que via de regra contém: (1) Tradução, (2) Notas, (3) Interpretação e (4) Referências e Estudos Adicionais. O objetivo é fornecer uma análise sólida e crítica, sem qualquer perda de sensibilidade ao significado espiritual dos textos bíblicos.  Para o leitor mais exigente e que necessita de um aprofundamento das questões exegéticas e hermenêuticas para prepararem suas exposições ou preleções esse tipo de comentário é essencial.  

Comentário Homilético: Esse tipo de comentário visa um público mais especifico que são os pastores ou pregadores. Além das questões exegéticas os comentaristas oferecem opções para uma exposição ou predica mais adequada aos textos.

Pressupostos Teológicos: Todo comentarista bíblico elabora seu trabalho tendo como pano de fundo sua herança teológica. Um comentarista bíblico calvinista acabara em algum momento enfatizando suas convicções teológicas, o mesmo ocorrendo com um comentarista cuja os pressupostos teológicos seja arminianos; se o autor é católico ou reformado eles haverão de expor suas convicções eclesiásticas. No meio evangélico há comentaristas conservadores e liberais e entre os conservadores há aqueles que são fundamentalistas. De maneira que o leitor ou estudante deve estar atento às origens de cada autor e exercer seu senso crítico para que não venha endossar conclusões que possam trazer contrariedades para ele e para seus ouvintes ou alunos. Jamais menospreze as informações biográficas dos comentaristas e nem os Prefácios editoriais, pois neles se encontram os pressupostos daquelas obras. Isto não significa que se deva ignorar toda e quaisquer obra que não se ajusta ao seu pensamento teológico doutrinário ou que não se possa ler tais obras, mas que se tenha consciência e discernimento quanto ao que se está lendo.

 

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Guedes, Ivan Pereira

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Referências Bibliográficas        

ALTER, Robert; KERMODE, Frank. Guia Literário da Bíblia. São Paulo: Fundação editora da UNESP, 1997.

BRUGGEN, Jacob Van. Para ler a Bíblia: uma introdução à leitura da Bíblia. Traduzido por Theodoro J. Havinga. São Paulo: Cultura Cristã, 1998.  

DOCKERY, S. David. Hermenêutica Contemporânea à luz da Igreja Primitiva. Traduzido por Álvaro Hattnher. São Paulo: Vida, 2005.

FEE, Gordon D. & Douglas Stuart. Entendes o que lês? Traduzido por Gordon Chown. São Paulo: Vida Nova, 2002.

SIFOLELI, Israel. Manual de Hermenêutica bíblica. São Paulo, Fonte Editorial, 2016.

BEEKMAN, John e CALLOW, John. A Arte de Interpretar e Comunicar a Palavra Escrita - Técnicas de Tradução da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 1992.

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Viajando no Evangelho de Marcos: Estabelecendo o Roteiro





A partir de hoje estaremos viajando por toda a Palestina judaica seguindo os passos de Jesus, no roteiro elaborado por João Marcos. Você pode fazer dois tipos de leitura deste material: a primeira é a leitura devocional, ficando apenas no corpo do texto; a segunda leitura é mais acadêmica e para isso você terá que ler as notas de rodapé, onde serão colocadas as informações, discussões e opiniões até mesmo conflitantes, mas que proporcionaram ao leitor uma profundidade maior do texto comentado. Ao final de cada texto colocaremos dois tipos de referência bibliográfica: primeiramente os autores que foram utilizados diretamente na elaboração do texto e em seguida as referências de obras que podem contribuir para uma pesquisa mais ampla dos textos expostos.

Será uma viajem empolgante e dinâmica, pois na narrativa marcana o ministério terreno de Jesus é intenso e plenamente itinerante, pois ele está em movimento continuo por toda a região, entrando e saindo das diversas cidades e vilarejos, atendendo a toda sorte de pessoas e situações, não sem razão um dos termos mais utilizado por Marcos é “imediatamente”.

Diante de nós está um Mapa da região da Palestina judaica e de acordo com Marcos o ministério de Jesus se desenvolve em três eixos principais:

O primeiro eixo geográfico é fornecido pelo movimento de Jesus entre cidades judias e gentias. Na primeira parte da história, as aldeias judaicas perto do mar da Galileia - como Cafarnaum e a região rural ao redor - (1.14-8. 26). Mas Jesus faz algumas raras excursões pelo território predominantemente gentio, incluindo suas viagens à região dos Gadarenos (5.1), Tiro (7.24), Sidon e Decápolis[1] (7.31).

O segundo grande eixo geográfico é fornecido pela longa viagem de Jesus com seus discípulos. Ele começa em Cesareia de Felipe​, então continua direto para o sul através da Galileia e avança para Jerusalém na Judéia (8.27-10.52).

O terceiro grande eixo geográfico é todo ele centrado na cidade de Jerusalém, onde ele permanece por uma semana até sua crucificação. Aqui, Jesus viaja diariamente entre o centro de Jerusalém (principalmente o recinto do templo) e a vila suburbana de Betânia (localize isso em 11.1, 11-12, 15, 19, 27; 13.1; 14.3).

Diferentemente de Mateus e Lucas, o evangelista Marcos opta por iniciar sua narrativa às margens do rio Jordão

O Roteiro da Viagem

1 Jesus e o Reino vindouro                                                    1.1-45

2 Conflito com os líderes religiosos                                           2.1-28

3 O Reino que Vem Traz Divisões                                          3.1-35

4 Parábolas do reino                                                                 4.1-41

5 O poder de Jesus para dar vida                                          5.1-43

6 O Messias incompreendido e o martírio de João Batista       6.1-56

7 O desafio de Jesus às falsas visões de santidade            7.1-37

8 Abrindo os olhos para reconhecer o Messias                          8.1-38

9 Seguindo um Messias Glorificado, mas Sofredor              9.1-50

10 condições para entrar no reino                                             10.1-52

11 A entrada de Jesus em Jerusalém                                     11.1-33

12 Debatendo com as Autoridades no Templo                           12.1-44

13 A Destruição de Jerusalém a Vinda do Filho do Homem 13.1-37

14 Preparativos para a morte de Jesus                                       14.1-72

15 A Crucificação de Jesus                                                       15.1-47

16 A Ressurreição de Jesus                                                          16.1-8

 

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Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
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Referências Bibliográficas
Utilizadas nesse Artigo
CULPEPPER, R. Alan. Mark. Macon, Georgia: Smyth & Helwys Publishing, 2007. [Smyth & Helwys Bible Commentary, v. 20].
MULHOLLAND, Dewey M. Marcos – Introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1999.  [Série Cultura Bíblica, v. 2].
SOARES, Sebastião Armando Gameleira & JUNIOR, João Luiz Correia. Evangelho de Marcos, v.1, ed. Vozes, Petrópolis, 2002.
Ampliar a Pesquisa
BRATCHER, Roberto G. e SCHOLZ, Vilson. Comentários SBB para exegese e tradução - Marcos versículo a versículo. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013
ANDERSON, Hugh. The Gospel of Mark. London: Marshall, Morgan & Scott, 1976.
BETTENCOURT, Estevão. Para Entender os Evangelhos.  Rio de Janeiro: Agir, 1960.
CARSON D. A., DOUGLAS, J. Moo & MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo:  ed. Vida Nova, 1997.
CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. São Paulo: Hagnos, 2006, 8ª ed.
CRANFIELD, C. E. B. The Gospel According to St. Mark. Cambridge: Cambridge University Press, 1966. 
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento – Marcos. São Paulo: Cultura Cristã, 2003.
TENNEY, Merrill C. (Org.). Enciclopédia da Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2008.


[1] do grego: deka (dez) + polis (cidade), uma região geográfica da Palestina formada por dez cidades cuja população era predominantemente grega, e que se estendiam por uma área que abrangia ambos os lados do Jordão, ao sul do mar da Galiléia (onde Jesus inicia seu ministério) e na direção do norte. Depois do ano 63 a.C. recebiam de Roma certos privilégios. Alguns doentes, que habitavam este território, foram curados por Jesus Cristo (Mc 5.20; 7.31; cf. Mt 4.25.). As dez cidades, segundo Plínio, eram Damasco, Filadélfia, Rafana, Citópolis (Bete-Seã), Gadara, Hipos, Diom, Pela, Gerasa e Canata. Nos tempos de Jesus Cristo continham estas cidades grandes populações, na sua maior parte gregas, vivendo em prosperidade. 
[2] CULPEPPER, 2007, p. 


quarta-feira, 2 de junho de 2021

As Dez Palavras de Deus – Introdução

E Deus falou todas essas palavras, dizendo:”
(Êxodo 20.1)
            Estamos no século XXI porque devemos estudar um código de leis que foi criado a milênios de anos atrás? É possível que tenha alguma utilidade nos dias atuis, em um mundo em que as pessoas não querem sim ou não, mas vivem uma vida no mais ou menos? O mundo dos dias de Moises era menos complicado do que o nosso mundo? As pessoas e as sociedades daquela época eram mais obtusas do que as do século XXI? Como afirma Kevin DeYoung: “Estudar os Dez Mandamentos revela exatamente o que está no cerne da rebelião humana: não gostamos que Deus nos diga o que podemos e o que não podemos fazer”. Creio que a pergunta mais relevante seja: A quem Deus falou estas palavras e que deveriam se constituir em regra de fé e prática?
            Inicialmente creio ser necessário lembrarmos a tríplice divisão do conjunto das Dez Palavras dadas por Deus para reger as diversas instâncias da vida dos israelitas. [1] As leis civis se referiam às questões legais, como por exemplo as relacionadas à questão dos impostos; as leis cerimoniais estavam focadas nas questões religiosas, quer fossem individuais, familiares ou coletivas; e a lei moral, cuja a síntese está nesse Decálogo,[2] implicava na responsabilidade individual de cada israelense.
Deste modo, podemos resumir da seguinte forma: os requisitos civis podem ser utilizados pelos governos modernos, as atividades cerimoniais foram cumpridas na cruz e, portanto, não devem ser adotadas pela igreja, e a lei moral é permanente.[3] Mas ainda resta uma pergunta: "Para quem a lei moral é permanente?" A Bíblia faz referências a pelo menos quatro grupos diferentes a quem as Dez Palavras se relacionam:
As Dez Palavras se Relaciona a Todas as Pessoas
            O apostolo Paulo tratando sobre esta questão com os cristãos estabelecidos em Roma (Rm 2.14-16) ele diz que mesmo aqueles que vivem fora das normativas divinas, vivem debaixo das leis que eles mesmo criam, pois segundo Paulo essas leis estão estabelecidas em seus próprios corações e o palco são suas próprias consciências que se lhes tornam seus próprios promotores de acusação.
            É preciso deixar bem claro que embora esses princípios ressoem na consciência humana (individual e coletivamente), eles certamente não são a única influência sobre nosso pensamento e comportamento. Precisamos saber que existe um Deus que espera certo comportamento moral e que há consequências de obedecer ou desobedecer a esses comandos.
            Para o velho apostolo todas as pessoas sabem a diferença entre o certo e o errado; essa característica foi forjada em sua criação de maneira que Adão e todos os seus descendentes, mesmo depois da Queda, estabeleceram e viveram por leis, mesmo antes das proferidas no Monte Sinai e transmitidas por meio de Moisés;[4] a sociedade por mais primitiva que seja não vive sem lei; dentro da perspectiva da Nova Aliança a Lei é um instrumento de evangelização, pois demonstra na prática a incapacidade do ser humano viver em harmonia com Deus, por si mesmos, de maneira que carece de um Mediador que é Jesus Cristo. E por fim Paulo deixa bem claro que os que vivem sem a justiça de Cristo, serão julgadas pela Lei no Dia do Juízo Final.
As Dez Palavras e Israel
A Lei foi promulgada a todas as pessoas, mas especificamente aos israelitas a partir do Monte Sinai. Eles agora são um Povo, posteriormente serão uma Nação, e torna-se indispensável que eles tenham um conjunto de leis que possam regê-los, por esta razão os Dez Mandamentos são elaborados dentro da linguagem pactual: em primeiro lugar, o Soberano declara quem ele é e o que ele fez por seus súditos e, em segundo lugar, ele lista suas exigências em relação a eles.
O tempo vai demonstrar a incapacidade dos israelitas em responder positivamente às expectativas de Deus. Os profetas de forma geral traziam à memória de seus ouvintes, israelitas e judeus, que eles estavam vivendo em transgressão às leis dadas por Deus dentro da Aliança estabelecida a partir do Sinai. Diante da permanente rebeldia e displicência deles, o profeta Jeremias declara que Deus fará um Novo Pacto, mas esse será distinto, pois será de dentro para fora: “colocarei minha lei dentro deles, e escreverei em seus corações. E eu serei o Deus deles, e eles serão o meu povo. E não mais cada um ensinará seu vizinho e cada seu irmão, dizendo: ‘Conheça o SENHOR’, pois todos me conhecerão, desde os menores até os maiores, declara o SENHOR. Pois perdoarei sua iniquidade, e não me lembrarei mais do pecado deles” (Jr 31.31-34). De acordo com o escritor de Hebreus esse é a Nova Aliança em que todos aqueles que creem no Senhor Jesus estão inseridos hoje (Hb 8.1-13).
            O apostolo Paulo traz mais um esclarecimento sobre essa questão, pois em sua correspondência com os crentes da Galácia, que estavam sendo perturbados por judaizantes que pressionavam para que retornasse à prática ritualística do judaísmo, Paulo relembra que Abraão[5] foi feito justo pela fé, pois viveu antes da Lei mosaica e de que a função da Lei, até Cristo, foi de guardiã, preservando do juízo divino, todos aqueles que viviam genuinamente comprometido com os termos da Aliança, pois tinham a Lei escrita em seus corações e muitas vezes essa é a oração dos Salmista, cujo Salmo 119 é o maior e mais extraordinário exemplo de amor pela Lei de Deus. Infelizmente esses israelitas que amavam a Lei do Senhor nunca foram a maioria e por esta razão a Lei tornou-lhes guardiã de uma obediência pela fé.
            Onde os israelitas falharam é exatamente onde nós também falhamos, todavia, mediante a manifestação da graça de Deus, somos mantidos obedientes em decorrência da obediência de Cristo e pela ação continua do Espírito Santo que nos capacita a vivenciar a vontade de Deus (Rm 8.1-4).
As Dez Palavras Revelam o Nosso Pecado
Conforme o apostolo Paulo explica uma função importante da lei é que ela convence o ser humano de seus pecados: “Assim é que a condenação de Deus cai pesadamente sobre aqueles que vivem debaixo da lei, visto eles serem responsáveis pela guarda das leis divinas, em vez de fazerem todas essas coisas más. Nenhum deles tem desculpa; de fato, o mundo inteiro sente-se culpado e fica mudo diante do Deus Todo-poderoso.Vocês podem ver agora? Ninguém pode jamais ser declarado justo aos olhos de Deus por fazer o que a lei ordena. Quanto mais conhecemos as leis de Deus, mais claro fica que não as obedecemos, pois que suas leis nos fazem ver que somos pecadores(Rm3.19-20). Uma vez que a lei de Deus é o padrão perfeito, convence-nos do nosso fracasso em mantê-la. Esta convicção irá variar em grau de intensidade em diferentes pessoas.
O fato de uma pessoa reconhecer seu pecado é um passo, mas ainda não é uma conversão. O remorso carrega uma dose forte de consciência do pecado e tristeza pelas consequências advindas, mas diferentemente da verdadeira conversão ela não motiva a pessoa a depositar sua confiança em Jesus. Somente no e pelo Evangelho é possível experimentar uma conversão total e plena da nossa vida, pois o Evangelho não apenas nos revela que somos pecadores (transgressores da Lei), mas nos fornece o remédio - o sacrifício de Jesus Cristo.
As Dez Palavras e os Cristãos
Se estamos dentro da Nova Aliança, porque nos preocuparmos com a Lei? Simples, o que Jesus fez por nós na cruz foi não apenas nos salvar da condenação da Lei, mas nos capacitar a vivencia-la na nossa vida cotidiana. A Lei é a expressão da vontade de Deus para as nossas vidas. Em nenhum momento Jesus cancelou a validade da Lei, ao contrário, ele aprofunda a aplicação e o sentido da Lei.
Uma vez que a Lei está escrita em nossos corações, ela deve produzir os efeitos para o qual foi estabelecida. O Evangelho não transforma a Lei em legalismo, ao contrário, nos torna livres não apenas para obedecermos voluntariamente aos preceitos divinos, mas para amar a Lei de todo o nosso coração, mente e forças, pois em Cristo recebemos um novo coração do Pai, coração regenerado, transformado, inspirado por Jesus.[6]
Ao resumir os Mandamentos em dois: amor a Deus e amor ao próximo – Jesus deixou claro que toda a Lei é uma expressão de amor: amamos Deus adorando-o e usando seu nome corretamente; amamos nossos pais honrando-os; amamos nossos cônjuges sendo fiéis; amamos nossos vizinhos protegendo suas vidas, respeitando suas propriedades, e dizendo-lhes a verdade. Estas Palavras foram pronunciadas por um Deus que é amor, que espera que seu povo que o ame e que compartilhe esse amor com os outros. Como Jesus disse: "Quem tem meus mandamentos e os obedece, é esse quem me ama" (Jo 14.21; 1 Jo 5.3). Desta forma, é totalmente impossível separamos a Lei de Deus do amor de Deus. E todos aqueles que tentam fazer isso tornam-se loucos. Disse Jesus: “Eu vim para cumprir a Lei e não para revoga-la”.
A relação da Trindade com as Dez Palavras
Primeiro, eles nos possibilitam apreciarmos a inteligência e amabilidade do Legislador. A Lei aponta o holofote sobre o caráter de Deus. Não apenas estas Dez Palavras, mas toda Palavra de Deus não só mostra o que Ele quer; ela nos revela o que Deus é.  A Lei é elaborada pelo Legislador para proporcionar segurança, não apenas para mim, mas para toda a comunidade (sociedade) em que estou inserido. Cada uma das Dez Palavras nos diz algo sobre o caráter de Deus, e nós os consideraremos no devido tempo.
Segundo, igualmente poderemos apreciar as qualidades do caráter de Jesus Cristo. Jesus na sua humanidade é o nosso exemplo e ele cresceu obedecendo a Palavra de Deus, pois ela estava em seu coração e ele sempre fez as coisas que agradavam ao Pai. Em nenhum momento ele torna-se transgressor da Palavra, como o fez Adão e fazemos nós, mas ele a cumpre integralmente. Quando ele resume toda a Palavra em dois pontos fundamentais é porque em todo o tempo ele amou a Deus e ao próximo.
Terceiro, a nossa obediência à toda Palavra de Deus é a obra iniciada pelo Espírito Santo, a partir da nossa conversão. Ele sempre vai querer que eu mantenha a Palavra de Deus, o que significa que ele nunca vai me levar a ignorar uma só das Palavras ou desobedecer a uma delas. O objetivo do Espírito Santo será me conformar com os requisitos da Palavra de Deus.
Essa Palavra de Deus continua sendo as balizas pelas quais devemos vivenciar a nossa fé cristã. Elas indicam a maneira pela qual Deus deseja que vivamos em relação à comunidade cristã, mas também em relação à Sociedade de forma geral. As Palavras estabelecidas por Deus transcendem o espaço e o tempo e continuam tão vividas hoje como foram nos dias de Moisés e dos israelitas.
Conclusão
Assistimos diariamente a triste realidade de uma Sociedade que ignora por completo os Mandamentos de Deus, tendo a total cumplicidade de um evangelicalismo morno e insonso que produz ânsia de vômito em Jesus Cristo (Ap 3.15,16).  As ondas crescentes e destruidoras da violência, da promiscuidade; da corrupção e da mortalidade tem devastado e continuará devastando milhões de vidas em todo o mundo.
            Nestes dias de tensas trevas o estudo cuidadoso destas Dez Palavras de Deus sintetizadas e inseridas no contexto geral das Escrituras, torna-se indispensável para mantermos não apenas a integridade de nossa fé e vida cristã, mas da nossa própria sanidade mental em meio a uma Sociedade transloucada e a beira da esquizofrenia.
Perguntas para Reflexão
1.    As Dez Palavras são importantes para você? Porquê?
2.    Você poderia citar de memória as Dez Palavras?
3.    Você tem ensinado seus filhos ou netos as Dez Palavras?
4.    As Dez Palavras fazem parte do seu conjunto de fé e prática?
 
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Referências Bibliográficas
ALLEN, J. C. (Ed.). Gênesis-Êxodo. Rio de Janeiro: Junta de Educação religiosa e Publicações, 1986. (Comentário Bíblico Broadmann).
ALTER, Robert e KERMODE, Alter (Orgs.). Guia Literário da Bíblia. Tradução Raul Fiker tradução; Revisão de tradução Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997. - (Prismas).
COELHO FILHO, Isaltino Gomes. A Atualidade dos Dez Mandamentos. São Paulo: Êxodus, 1997.
COLE, R. Alan. Êxodo: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão, 1990.
COX, Leo G. O livro de Êxodo. Tradução Luís Aron de Macedo. Rio de Janeiro: CPAD, 2005. [Comentário Bíblico Beacon, v. 1].
DeYOUNG, Kevin. Os Dez Mandamentos: significado, importância e motivos para obedecer. tradução de Abner Arrais e Ubevaldo G. Sampaio. São Paulo: Vida Nova, 2020.
DREHER, C. “As tradições do Êxodo e do Sinai”. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 16, p. 52-68, 1988.
FILHO, João Coimbra e COIMBRA, Deise Peres. Um estudo exegético em Êxodo 20.1-6. Monografia (Bacharel em Teologia). Faculdade de Educação Teológica da Amazônia – FAETAM. Belém, Pará: 2009. [Orientadora: Profª. Ana Patrícia Araújo Campos da Rocha].
SILVADO, Luiz Roberto Soares. A Ética Cristã nos Dez Mandamentos. Curitiba: A.D. Santos Editora, 2017.
SOARES, Esequias. Os Dez Mandamentos: valores divinos para uma Sociedade em Constante Mudança. Rio de Janeiro: CPAD.
THIEL, Bob. The Ten Commandments - The Decalogue, Christianity, and The Beast. Grand Avenue, Grover Beach, California: Nazarene Books, 2019.
WADE, Loron. Os Dez Mandamentos: Princípios divinos para melhorar seus relacionamentos. Tradução Eunice Scheffel do Prado. 2ª ed. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2010.
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[1] O Código de Hammurabi é outro conjunto bem conhecido de leis e princípios deste mesmo período aproximado. Há algumas semelhanças entre a Lei dos Dez Mandamentos/Mosaico e o Código de Hammurabi, mas as diferenças são ainda mais profundas. Enquanto Hammurabi menciona os deuses da Babilônia, a ênfase está claramente nele como o rei e o legislador (com autoridade divina, é claro). O Código de Hammurabi começa com página após página de quão maravilhoso Hammurabi é e o quanto ele conseguiu. Hammurabi está claramente acima de sua própria lei desde que ele era a personificação da lei. Não é assim com Moisés; a ênfase é clara: Deus falou todas essas palavras, Ele é o próprio Legislador e nenhuma pessoa está acima da lei. O próprio Moisés, assim como todo o povo, deve se submeter às Palavras estabelecidas por Deus.
[2] Curiosamente, eles nunca são chamados de Dez Mandamentos, pois a expressão hebraica, que ocorre três vezes no Primeiro Testamento (Ex 34.28; Dt 4.13; 10;4), literalmente significa "dez palavras". É por isso que Êxodo 20 é frequentemente referido como o Decálogo, deka sendo a palavra grega para "dez" e logos que significam "palavra". Estas são as Dez Palavras que Deus deu aos israelitas no Monte Sinai — as Dez Palavras que Deus quer que todos nós obedeçamos (cf. DeYOUNG, 2020).
[3] João Calvino entendia a função da parte moral da lei mosaica como sendo tríplice: convencer as pessoas de sua injustiça, restringir as pessoas pelo medo do castigo, e educar o povo a respeito da vontade de Deus para eles.
[4] Em seu livro The Abolition of Man, C.S. Lewis explicou como certamente há uma moralidade universal entre os homens. Ele deu exemplos concretos de como todas as culturas no passado foram capazes de concordar com o básico da moralidade porque esses princípios são implantados no coração e na mente da humanidade.
[5] Abraão tinha conhecimento, ainda que em forma oral, dos princípios que deveriam reger sua vida e o seu relacionamento com Deus: “porque Abraão me obedeceu e guardou meus preceitos, meus mandamentos, meus decretos e minhas leis” (Gn 26.5). De maneira que Deus não estava dando a Moisés uma nova lei no Monte Sinai. Ele estava apenas dando uma versão codificada, ou formal, de Sua lei para que pudesse ser usada para governar a nação emergente de Israel. Outra razão pela qual sabemos que estes princípios eram conhecidos, ainda que em forma oral, antes de Moisés e do Monte Sinai é que há diversas referências ao pecado (Gênesis 4:7; 13:13; 18:20; 39:9; 42:22; 50:17; etc.), de maneira que havia normas religiosas e morais preestabelecidas. No livro de Jó que se passa nos dias dos patriarcas israelitas, havia o conhecimento da necessidade de sacrifício, para remissão de pecados (Jó 1.5).
[6] Historicamente a Igreja Cristã colocou os Dez Mandamentos no centro de seu ministério de ensino, especialmente para crianças e novos crentes. Por séculos, a instrução dos catecúmenos esteve fundamentada em três conteúdos: o Credo dos Apóstolos, o Pai Nosso e os Dez Mandamentos. Os primeiros reformadores mantiveram esta ênfase e elaboraram catecismos onde abordavam cada um dos mandamentos. A situação mundana e hedonista do evangelicalismo do século XXI tem sua origem no abandono destas práticas. Temos gerações de jovens que nunca memorizaram um único Mandamento e milhares de novos membros que não tem o mínimo conhecimento do Decálogo.