Na nossa bíblia, seguindo a organização da versão grega (Septuaginta e/ou LXX) os livros a partir de Josué até Ester são classificados como históricos. De fato, estes livros narram a história de Israel desde quando adentram à Canaã até o retorno judaico do cativeiro babilônico.
Na Bíblia Hebraica os dois livros dos reis se
constituem em um único volume, eles foram desmembrados pela primeira vez pelos
tradutores da Septuaginta (século III a.C.); a nossa versão segue esse arranjo
editorial. Inicia-se de forma festiva com a ascensão de Salomão e fecham com uma
marcha fúnebre com a destruição da amada capital Jerusalém. No início, vemos o
templo construído e ao final, temos a terrível cena do templo queimado.
Os dois livros juntos cobrem um período de
cerca de quatrocentos anos de história. Logo após o reinado de Salomão temos a
cisão política da unidade nacional – os dois reinos passaram a ser conhecidos
respectivamente como Israel, compreendendo dez das tribos e denominado de Reino
do Norte (as tribos ficavam ao norte do território); enquanto o reino de Judá, restrito
apenas a duas tribos - Judá e Benjamim, torna-se o Reino do Sul, todavia
manteve a cidade de Jerusalém e o Templo.
Os primeiros onze capítulos, ainda
como um único reino, são dedicados a Salomão e seu reinado de quarenta anos,
com expansão de território, prosperidade material, mas também o princípio do
fim, pois ele escancarou a nação à idolatria e posterior luxuria, que levara à
divisão do reino e aos cativeiros pela Assíria e depois pela Babilônia. Os onze
capítulos restantes, do primeiro volume, cobrem aproximadamente os primeiros oitenta
anos dos reinos separados de Israel e Judá.
O tema dominante nestes dois volumes
é: a estabilidade e o bem-estar da nação dependia, em última análise, de sua
fidelidade à aliança estabelecida por Deus/Yahweh, e a medida para todos os
governantes era e continuava a ser a obediência à Torah. Por esta razão o
escritor (ou redator) não tinha a intenção de exaltar os reis de Israel e/ou
Judá, a razão por que omite algumas façanhas que encantam tanto os olhos
humanos, como o reinado de Omri. Sua proposta, como veremos, era mostrar
como cada governante sucessivamente se relacionava com Deus/Yahweh em suas
responsabilidades de aliança.
Por isso, os livros dos Reis tornam-se
livros didáticos de Deus para o seu povo em todas as épocas (o apostolo Paulo
entendeu perfeitamente isso Rm 15.4; 1 Cor. 10.11. São verdadeiras
aulas ilustrativas de como se deve viver ou não viver neste mundo. Cada rei é
apenas um espelho onde podemos nos autoanalisarmos, de como estamos vivendo em
relação a Deus e a Sua Palavra. Como dirá o profeta Elias nos seus dias, não é
possível servir a Yahweh e a Baal simultaneamente, é preciso tomar uma posição
e ao fazê-lo definiremos o que somos e para onde estamos indo. Jesus endossa as
palavras do profeta declarou: Eu Sou o Caminho, a Verdade e a Vida – não
um entre outros, mas ÚNICO.
É possível destacarmos alguns temas pedagógicos
que fluem dessas literaturas históricas:
ü A
primeira é muito simples, Deus é realmente Deus. Ele não deve ser confundido ou
incluído em quaisquer panteões de deuses construídos ao longo dos séculos 1
Reis 12.25–30; 2 Reis 17.16; 19.14–19. Tais deuses são frutos dos
desvarios das mentes decaídas e, portanto, são impotentes e fúteis 1 Re. 11.5;
16.13; 18.22–40; 2 Reis 17.15; 18.33–35). Yahweh (Senhor), ao contrário,
é o único Criador de todas as coisas 1 Reis 8.23; 2 Reis 19.15,
totalmente distinto da criação 1 Reis 8.9, 14–21, 27–30; 18.26–38,
mas permanece interagindo e conduzindo a história humana, que por meio da
própria Natureza 1 Reis 17–19; 2 Reis 1.2–17; 4.8–37; 5.1–18; 6.1–7, 27),
quer por meio da própria História 1 Reis 11.14, 23; 14.1–18; 22.1–38; 2
Reis 5.1–18; 10.32–33; 18.17–19.37. Este é o verdadeiro papel pedagógico
dos profetas bíblicos interpretando e indicando os movimentos históricos 1
Reis 11.29–39; 13.1–32; 16.1–4; 20.13–34; 2 Reis 19.6–7, 20–34. Ainda que
Yahweh dê liberdade para que o ser humano possa exercer sua vontade própria –
Ele nunca abriu mão de conduzir todas as coisas para a realização de Seu
propósito eterno 1 Reis 18.15; 2 Reis 5.15.
ü Em
segundo lugar, consequentemente Yahweh não divide sua glória com nada e ninguém
– exige adoração exclusiva, e aqui está a pedra em que todos os
israelitas/judeus tropeçaram e caíram (é nós continuamos tropeçando e caindo). Essa
adoração exclusiva não é apenas para os israelitas/judeus, mas para todos os
povos e nações da Terra 1 Reis 8,41–43, 60; 2 Reis 5,15–18; 17.24–41.
No livro dos Reis (e toda a bíblia e nitidamente evidenciado no livro do
Apocalipse) o fiel da balança está na questão cúltica/adoração 1 Reis
11.1–40; 12.25–13.34; 14.22–24; 16.29–33; 2 Reis 16,1–4; 17.7–23; 21.1–9).
A questão da
centralidade do culto/adoração no Templo é para confrontar os chamados "lugares
altos" locais de idolatria 1 Reis 3.2; 5.1–9.9; 15.14; 22.43; 2 Reis
18.4; 23.1–20. Outro aspecto relacionado é a ênfase nos erros morais,
pois a genuina adoração implica em uma vida moral elevada e em harmonia com os princípios
estabelecidos na Torah 1 Reis 21; 2 Reis 16.1–4; 21.1–16, assim
como, a verdadeira sabedoria é amalgamada com genuína adoração e obediência de
todo o coração – são os dois lados da mesma moeda 1 Reis 1–11. A
sabedoria de Salomão se torna ineficaz/inútil na mesma proporção em que sua adoração
começou a ser contaminada com a idolatria de suas mulheres estrangeiras.
ü A Torah
torna-se o padrão de justiça pelo qual todos devem ser medidos, seja rei 1
Reis 11.9-13; 14.1–18), profeta 1 Reis 13.7–25; 20.35–36 ou súdito
comum 2 Reis 5.19–27; 7.17–20. Nem sempre a sentença é imediata,
ainda que todos sejam igualmente informados de que a bênção/aprovação de Deus
vem somente sobre aqueles que obedecem 1 Reis 2.1–4; 11.38. Isso se
deve ao caráter misericordioso e longânimo do justo Juiz, que não tem prazer
nem mesmo na morte do ímpio e está sempre pronto para encontrar motivo pela qual
a sentença deva ser adiada ou atenuada 2 Reis 13.23; 14.27; 1 Reis
21.25–29; 2 Reis 22.15–20. A graça de Deus encontra-se em toda parte no
livro de Reis (como permeia todas as Escrituras), confundindo as expectativas que
o leitor formou com base na letra da Lei 1 Reis 11.9-13; 15.1-5; 2 Reis
8.19. Mas que ninguém se engane, o pecado pode, no entanto, acumulam-se a
tal ponto que o julgamento recaia não apenas sobre os indivíduos, mas sobre
culturas inteiras 2 Reis 17.1–23; 23.29–25.26 – cf. ilustradas no diluvio
e o juízo sobre Sodoma e Gomorra e os próprios povos canaanitas.
ü As
Promessas de Deus fundamentadas no bojo da Aliança se constituem no coração do
comportamento gracioso de Yahweh para com Seu povo. A mais extraordinária das
promessas em Reis é a da dinastia eterna davídica. O seu aspecto paradoxal
(como ocorre em outras partes das Escrituras) desnorteiam os leitores
desatentos (os sábios deste mundo ficam horrorizados e frustrados cf. 1
Coríntios 1.22-24.
Em grande parte da narrativa, tomamos conhecimento do porquê
da dinastia davídica sobreviver, quando outras dinastias não o fazem, apesar da
desobediência dos sucessores de Davi 1 Reis 11.36; 15.4; 2 Reis 8.19.
A promessa é vista, em outras palavras, como incondicional (alguma semelhança
com a nossa salvação?). Em outros, é possível vermos uma obediência positiva
destes descendentes de Davi 1 Reis 2,4; 8,25; 9,4–5. Com a queda do
reino do Norte as atenções voltam-se para o pequeno reino do Sul, entretanto, no
final, as recorrentes desobediência traz o julgamento de Deus sobre Judá tão
severamente quanto sobre Israel 2 Reis. 16.1–4; 21.1–15; 23.31–25.26.
E, no entanto, Jeoaquim vive 2 Reis 25.27–30 em meio a um desastre
quase total, assim como aconteceu com Joás antes dele 2 Reis 11.
Esses detalhes históricos indicam que a promessa feita por Yahweh transcende o
pecado do próprio Davi e seus descendentes de maneira que a graça triunfara na
história do futuro de Israel/Judá.
Uma promessa anterior está vinculada aos eventos de Reis - a
promessa a Abraão, Isaque e Jacó de descendentes e a eterna posse da
terra de Canaã. Esta promessa explica o tratamento dado por Deus aos seus descentes
na história 2 Reis 13.23, e implicitamente em 1 Reis 4.20–21,
24; 18.36, esta promessa é o contexto da oração de Salomão em 1 Reis
8.22–53. A graça é real pois esta fundamenta no caráter e nas promessas
de Deus.
Esta é a razão pela qual os judeus se referem a estas
literaturas como “narrativas proféticas”. Nelas encontramos os temas
teológicos, como aliança, pecado, castigo e renovação, tão centrais nas
pregações dos profetas. Por sua vez, quando ouvimos/lemos os profetas
percebemos suas pregações estão fundamentadas no tempo/espaço histórico. Em
suas mensagens podemos encontrar características históricas:
v Diferentemente
do imaginário popular os profetas olham mais para o passado histórico do que
para o futuro escatológico.
v Toda
pregação dos profetas falando do futuro relaciona-se com as promessas que Deus
fez quer a indivíduos ou à nação como um todo 2 Samuel 7.7–17.
v O
contexto de suas mensagens enfatiza eventos que cumprem uma visão profética do
passado no presente e/ou futuro.
v Os personagens
são avaliados com base em em seus respectivos comprometimentos com a Torah.
v Na
narrativa histórica ressoa a exortação ao arrependimento como caminho para a
restauração e bênção. Única forma de
evitar o juízo eminente ou futuro é voltar-se para Deus e submeter-se aos
termos da Aliança estabelecida e estabelecida na Torah. Essas características
são evidentes em Josué-Reis e em Isaías, Jeremias, Ezequiel e os profetas
menores.
O fascinante de examinar pacientemente as
narrativas históricas que perfazem os livros de Reis e correlatos históricos é
o de percebermos que Deus nunca, nem mesmo nos períodos mais tenebrosos, deixou
de interagir na História de Seu povo.
Utilização livre desde que citando a fonteGuedes, Ivan PereiraMestre em Ciências da Religião.Universidade Presbiteriana Mackenzieme.ivanguedes@gmail.comOutro BlogHistoriologia Protestante
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