Enquanto Marcos inicia seus
relatos a partir do batismo de Jesus às margens do rio Jordão; Mateus mergulha
fundo na literatura dos profetas israelitas preservadas no Primeiro Testamento
e Lucas inclui detalhes impressionantes obtidos por testemunhas oculares dos
acontecimentos por ele narrado, distintamente de seus companheiros evangélicos,
João opta por iniciar sua narrativa sobre o nascimento de Jesus – antes
do tempo.
É muito provável que João tenha tido acesso aos relatos de seus companheiros e
contemporâneos. Ao propor uma nova edição dos acontecimentos evangélicos ele
prefere dar uma nova perspectiva da origem de Jesus. Ele transcende o tempo e
espaço e localiza Jesus no princípio da Criação. Marcos enfatiza a divindade de
Jesus no momento do seu batismo, Mateus e Lucas deixam evidente a divindade de
Jesus nos acontecimentos que se relacionam ao seu nascimento e João ratificando
as informações de seus antecessores declara que Jesus sempre existiu desde o
momento iniciante da Criação de todas as coisas. Para ele nunca houve um tempo
em que Jesus não existisse – Ele existe desde sempre!
Vamos resgatar a forma singular com que
João nos apresenta seu relato natalino.
“No princípio era aquele que é a Palavra. Ele
estava com Deus, e era Deus.”[1]
“No princípio era o Verbo, e o
Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.”[2]
“Antes de
ser criado o mundo, aquele que é a Palavra já existia. Ele estava com Deus e
era Deus.”[3]
“Antes de existir qualquer coisa, Cristo já existia, e estava com Deus.”[4]
“No princípio era o Logos e o Logos estava voltado
para Deus (com Deus) e o Logos era Deus”[5]
Os relatos que lhe antecedem localizam a origem de Jesus no
tempo (Lc imperadores romanos) e espaço (Mt cidade de Belém) João abre sua
narrativa evangélica com um enunciado em três partes, onde nos arremete para a
origem atemporal de todas as coisas.
No
princípio era o Verbo [Palavra] - Ele vai buscar na expressão que abre as
páginas da Torá judaica (primeira parte da Bíblica cristã), “No princípio”
para indicar a origem eterna (atemporal) de Jesus. Mas há uma substancial
diferenciação entre a expressão no livro de Gênesis e a expressão utilizada por
João. Em Gênesis a expressão “No princípio”[6] marca
o ponto de partida de onde todas as coisas passaram a existir, pois antes não
existiam; mas o evangelista utiliza a mesma expressão “No princípio”
para localizar a existência de Jesus antes
da existência da própria Criação. Para João quando todas as coisas passaram a
existir, Jesus já existia e se fazia
presente, portanto, não apenas o evangelista conecta o relato evangélico
com o início da história da criação, mas como que indica que o nascimento de
Jesus é um prolongamento da página inicial da Bíblia inteira.
“No
princípio era o Verbo”. Ao utilizar o verbo “era [ser]” no
imperfeito[7] para
completar o sentido de “princípio” João esta indicando a pré-existência de
Jesus; o escritor evangélico esta escrevendo da perspectiva histórica, olhando
para trás a partir da Encarnação do Verbo (nascimento físico de Jesus),
portanto, Jesus não veio a existir no ato da Criação, mas Ele já existia[8] antes
do tempo em que todas as coisas foram trazidas à existência, e no transcorrer
da narrativa joanina (8.58) Jesus demonstra ter plena consciência desta verdade
ao fazer essa declaração contundente: “Antes que Abraão fosse, eu
sou”.
O
Verbo [Palavra] estava com
Deus – Se a expressão anterior revela a pré-existência do Verbo com Deus, a segunda revela a distinção entre eles. A preposição grega
“com – pros (πρός)” indica um movimento em direção a algo ou
alguém, de modo que, aquele que “estava” desde o princípio, nunca esteve
sozinho, mas sempre compartilhou da companhia de Deus (Pai) [9]. Aqui
tem também a ideia de comunhão entre o Logos e o Pai (Théos), de maneira que
fazem todas as coisas em perfeita harmonia (Jo 14.11, 20; 17.5,24).
Era
Deus – e concluindo sua afirmação inicial o evangelista mantém com
toda clareza a distinção entre os dois seres, todavia, afirma sua unidade de essência. Aqui “Théos - Deus” esta sem o artigo,
portanto, faz referencia à qualidade e natureza de Deus e não mais à pessoa do
Pai especificamente. O Logos é distinto
do Pai, todavia, partilha da natureza divina em toda sua plenitude e assim
também é Deus. Aqui João não tem nenhuma pretensão de adentrar nas
especulações do Logos do judaísmo helenista ou das ideias gnósticas tão em voga
nos seus dias. Mas ciente de sua própria incapacidade, o evangelista não tem a
mínima aspiração de explicar os detalhes desta coexistência de Jesus com Deus.
Assim como seu antecessor ao abrir o livro de Gênesis, ele apenas faz uma
declaração simples e direta da divindade de Jesus. Demonstra total ignorância qualquer
ser humano que pensa poder desvendar os mistérios da natureza divina, pois se
fosse possível fazê-lo Deus estaria restrito e limitado ao conhecimento humano.
Para João os fatos são: em primeiro
lugar o Verbo existiu desde o princípio; em seguida, que ele existiu com Deus;
e por último que ele era Deus.
Quando paramos para pensar nessas
palavras iniciais do evangelista João, podemos perceber que o evento que dá origem ao Natal Cristão não
é e jamais será apenas uma “festa”; o Natal Cristão é,
foi e sempre será o momento incomparável quando o Deus Eterno, na Pessoa do
Filho, adentra à nossa História e mais ainda, assume a plenitude de nossa
humanidade, para comunicar pessoalmente a nós a Salvação da qual tanto
necessitamos.
Assim como a partir da “Palavra – Logos” a primeira
Criação veio a existir, semelhantemente a partir de Jesus (Palavra – Logos)
encarnado, a segunda e/ou nova Criação esta
sendo trazida à existência (“Portanto, se
alguém está em Cristo, é nova criação” II Co 5.17,
cf. Gl 6.15).
Do mesmo modo como nos comunicamos através das
palavras, que expressam o nosso conhecimento e a nossa vontade, Deus escolheu
se comunicar conosco através de Jesus (Palavra), manifestando a nós o Seu
conhecimento e a Sua vontade.
Mas assim como utilizamos as palavras para revelar
os nossos sentimentos mais profundos, Deus escolheu manifestar seu mais
profundo sentimento de amor para conosco por meio de Jesus (Palavra). Desta
forma, somente podemos compreender e sentir o imensurável amor de Deus,
quando ouvimos e nos relacionamos com Jesus (Logos).
Da mesma forma que pela Palavra Deus trouxe ordem e
harmonia ao planeta que estava em caos, por meio de Jesus (Palavra) Deus trás
ordem e salvação à toda pessoa que esta vivendo em completo caos.
Portanto, o Natal Cristão é a forma
encontrada por Deus, para falar a cada ser humano, o quanto Ele nos ama!
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[1] NVI - Versão em Português: Nova Versão Internacional
[2] RA - Versão em Português: João Ferreira de Almeida Revista e
Atualizada
[3] BLH - Versão em Português: Nova Tradução na Linguagem de Hoje
[4] BV – Versão em Português: Bíblia Viva [paráfrase]
[5] Tradução de A. Feuillet
[6] Gênesis, [hebraico בראשׁית – Bereshith],
proferida pela palavra grega [εν αρχη]
[7] Diferentemente do verbo no tempo aoristo, que indica um tempo
especifico para a ação, no tempo imperfeito a ação se prolonga indefinidamente
desde o momento iniciante, produzindo a ideia de algo que transcende o tempo. O
verbo “ser” no imperfeito trás a ideia de existência – de algo que existe desde
o princípio, que existe de maneira absoluta, desde sempre.
[8] O Ap. Paulo tem o mesmo entendimento (Col 1.15).
[9] Nos textos do Segundo Testamento, a palavra Théos (θεός), com o
artigo, comumente refere-se à pessoa do Pai, no contexto da Trindade.