quinta-feira, 18 de agosto de 2022

EVANGELHO DE JOÃO: Jesus sempre existiu

              Enquanto Marcos inicia seus relatos a partir do batismo de Jesus às margens do rio Jordão; Mateus mergulha fundo na literatura dos profetas israelitas preservadas no Primeiro Testamento e Lucas inclui detalhes impressionantes obtidos por testemunhas oculares dos acontecimentos por ele narrado, distintamente de seus companheiros evangélicos, João opta por iniciar sua narrativa sobre o nascimento de Jesus – antes do tempo.

                É muito provável que João tenha tido acesso aos relatos de seus companheiros e contemporâneos. Ao propor uma nova edição dos acontecimentos evangélicos ele prefere dar uma nova perspectiva da origem de Jesus. Ele transcende o tempo e espaço e localiza Jesus no princípio da Criação. Marcos enfatiza a divindade de Jesus no momento do seu batismo, Mateus e Lucas deixam evidente a divindade de Jesus nos acontecimentos que se relacionam ao seu nascimento e João ratificando as informações de seus antecessores declara que Jesus sempre existiu desde o momento iniciante da Criação de todas as coisas. Para ele nunca houve um tempo em que Jesus não existisse – Ele existe desde sempre!

               Vamos resgatar a forma singular com que João nos apresenta seu relato natalino.

“No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com Deus, e era Deus.”[1] 

 “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.”[2] 

 “Antes de ser criado o mundo, aquele que é a Palavra já existia. Ele estava com Deus e era Deus.”[3]

“Antes de existir qualquer coisa, Cristo já existia, e estava com Deus.”[4]

“No princípio era o Logos e o Logos estava voltado para Deus (com Deus) e o Logos era Deus”[5]

                Os relatos que lhe antecedem localizam a origem de Jesus no tempo (Lc imperadores romanos) e espaço (Mt cidade de Belém) João abre sua narrativa evangélica com um enunciado em três partes, onde nos arremete para a origem atemporal  de todas as coisas.

No princípio era o Verbo [Palavra] - Ele vai buscar na expressão que abre as páginas da Torá judaica (primeira parte da Bíblica cristã), “No princípio” para indicar a origem eterna (atemporal) de Jesus. Mas há uma substancial diferenciação entre a expressão no livro de Gênesis e a expressão utilizada por João. Em Gênesis a expressão “No princípio[6] marca o ponto de partida de onde todas as coisas passaram a existir, pois antes não existiam; mas o evangelista utiliza a mesma expressão “No princípio” para localizar a existência de Jesus antes da existência da própria Criação. Para João quando todas as coisas passaram a existir, Jesus já existia e se fazia presente, portanto, não apenas o evangelista conecta o relato evangélico com o início da história da criação, mas como que indica que o nascimento de Jesus é um prolongamento da página inicial da Bíblia inteira.

“No princípio era o Verbo”. Ao utilizar o verbo “era [ser]” no imperfeito[7] para completar o sentido de “princípio” João esta indicando a pré-existência de Jesus; o escritor evangélico esta escrevendo da perspectiva histórica, olhando para trás a partir da Encarnação do Verbo (nascimento físico de Jesus), portanto, Jesus não veio a existir no ato da Criação, mas Ele já existia[8] antes do tempo em que todas as coisas foram trazidas à existência, e no transcorrer da narrativa joanina (8.58) Jesus demonstra ter plena consciência desta verdade ao fazer essa declaração contundente: “Antes que Abraão fosse, eu sou”.

 O Verbo [Palavra] estava com Deus – Se a expressão anterior revela a pré-existência do Verbo com Deus, a segunda revela a distinção entre eles. A preposição grega “com – pros (πρός)” indica um movimento em direção a algo ou alguém, de modo que, aquele que “estava” desde o princípio, nunca esteve sozinho, mas sempre compartilhou da companhia de Deus (Pai) [9]. Aqui tem também a ideia de comunhão entre o Logos e o Pai (Théos), de maneira que fazem todas as coisas em perfeita harmonia (Jo 14.11, 20; 17.5,24).

 Era Deus – e concluindo sua afirmação inicial o evangelista mantém com toda clareza a distinção entre os dois seres, todavia, afirma sua unidade de essência. Aqui “Théos - Deus” esta sem o artigo, portanto, faz referencia à qualidade e natureza de Deus e não mais à pessoa do Pai especificamente. O Logos é distinto do Pai, todavia, partilha da natureza divina em toda sua plenitude e assim também é Deus. Aqui João não tem nenhuma pretensão de adentrar nas especulações do Logos do judaísmo helenista ou das ideias gnósticas tão em voga nos seus dias. Mas ciente de sua própria incapacidade, o evangelista não tem a mínima aspiração de explicar os detalhes desta coexistência de Jesus com Deus. Assim como seu antecessor ao abrir o livro de Gênesis, ele apenas faz uma declaração simples e direta da divindade de Jesus. Demonstra total ignorância qualquer ser humano que pensa poder desvendar os mistérios da natureza divina, pois se fosse possível fazê-lo Deus estaria restrito e limitado ao conhecimento humano. Para João os fatos são: em primeiro lugar o Verbo existiu desde o princípio; em seguida, que ele existiu com Deus; e por último que ele era Deus.

            Quando paramos para pensar nessas palavras iniciais do evangelista João, podemos perceber que o evento que dá origem ao Natal Cristão não é e jamais será apenas uma “festa”; o Natal Cristão é, foi e sempre será o momento incomparável quando o Deus Eterno, na Pessoa do Filho, adentra à nossa História e mais ainda, assume a plenitude de nossa humanidade, para comunicar pessoalmente a nós a Salvação da qual tanto necessitamos.

Assim como a partir da “Palavra – Logos” a primeira Criação veio a existir, semelhantemente a partir de Jesus (Palavra – Logos) encarnado, a segunda e/ou nova Criação esta sendo trazida à existência (“Portanto, se alguém está em Cristo, é nova criação” II Co 5.17, cf. Gl 6.15).

Do mesmo modo como nos comunicamos através das palavras, que expressam o nosso conhecimento e a nossa vontade, Deus escolheu se comunicar conosco através de Jesus (Palavra), manifestando a nós o Seu conhecimento e a Sua vontade.

Mas assim como utilizamos as palavras para revelar os nossos sentimentos mais profundos, Deus escolheu manifestar seu mais profundo sentimento de amor para conosco por meio de Jesus (Palavra). Desta forma, somente podemos compreender e sentir o imensurável amor de Deus, quando ouvimos e nos relacionamos com Jesus (Logos).

Da mesma forma que pela Palavra Deus trouxe ordem e harmonia ao planeta que estava em caos, por meio de Jesus (Palavra) Deus trás ordem e salvação à toda pessoa que esta vivendo em completo caos.

Portanto, o Natal Cristão é a forma encontrada por Deus, para falar a cada ser humano, o quanto Ele nos ama!

 

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/

 

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[1] NVI - Versão em Português: Nova Versão Internacional

[2] RA - Versão em Português: João Ferreira de Almeida Revista e Atualizada

[3] BLH - Versão em Português: Nova Tradução na Linguagem de Hoje

[4] BV – Versão em Português: Bíblia Viva [paráfrase]

[5] Tradução de A. Feuillet

[6] Gênesis, [hebraico בראשׁית – Bereshith], proferida pela palavra grega [εν αρχη]

[7] Diferentemente do verbo no tempo aoristo, que indica um tempo especifico para a ação, no tempo imperfeito a ação se prolonga indefinidamente desde o momento iniciante, produzindo a ideia de algo que transcende o tempo. O verbo “ser” no imperfeito trás a ideia de existência – de algo que existe desde o princípio, que existe de maneira absoluta, desde sempre.

[8] O Ap. Paulo tem o mesmo entendimento (Col 1.15).

[9] Nos textos do Segundo Testamento, a palavra Théos (θεός), com o artigo, comumente refere-se à pessoa do Pai, no contexto da Trindade.