Vimos
no texto anterior o nosso roteiro como preparação para nossa viagem pela
narrativa evangélica escrita por João Marcos. Hoje iniciaremos nossa jornada
examinando a primeira Perícope[2]
que se constitui em uma espécie de prólogo[3] do texto narrativo.[4]
A perícope é composta por três pequenas unidades
literárias estreitamente unidas onde o evangelista registra os eventos que precedem
imediatamente o início do ministério público de Jesus e ao mesmo tempo serve
como uma introdução a toda narrativa evangélica por ele elaborada, fornecendo
ao leitor pistas essenciais para a compreensão do que vira a seguir.
Na primeira unidade (v. 1-8) o
evangelista apresenta a figura João Batista, sublinhando seu papel profético à
semelhança do profeta Elias como o precursor do Messias; a segunda unidade
(v. 9-11) apresenta Jesus de Nazaré como aquele a quem João havia apontado,
registrando sua autenticação divina no momento em que se submete ao batismo
efetuado por João Batista; e na terceira e última unidade (v. 14-15)
Jesus é impelido pelo Espírito Santo para o deserto onde vai se preparar
espiritualmente e ao final terá a primeira vitória sobre Satanás – onde Adão
falhou, Jesus venceu. No último capítulo (16) Jesus terá assegurado
definitivamente a Vitória sobre Satanás e a morte, para todos os que
nele vierem a crer.
Primeira
Unidade Literária (1.1-8)
João Marcos escolheu cuidadosamente as seis
primeiras palavras de sua narrativa:[5] “Princípio do
Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (v.1):[6]
Princípio
(ἀρχή, archē):[7] não
apenas no sentido cronológico, mas no sentido de origem, causa ativa – de
maneira que Jesus Cristo é a nova gêneses (cf. Gn 1.1). No Evangelho
de Jesus está a semente (a origem, o princípio) de um novo mundo, uma Nova
Criação (2 Co 5.17).
Evangelho:[8] “boas
novas; boas notícias” Jesus não apenas anunciara o evangelho, mas Ele mesmo é
as Boas Novas. Marcos está comunicando aos seus leitores de que em Jesus ocorre
um evento histórico que haverá de proporcionar salvação para toda humanidade.
Temos aqui um contexto profético veterotestamentário
= Isaias (61.1s) fala das boas novas que o Messias trará; o primeiro
texto que Jesus leu na sinagoga falava da libertação dos oprimidos (cf. Lc
4.17s); Deus está presente (Is 40.9) e no controle (Is
52.7) de tudo que estará sendo narrado, ou seja, Deus no começo, no meio
e no fim.
Jesus
Cristo:[9] O
nome composto = Jesus[10] (o Senhor salva) e Cristo[11] (messias, ungido – a
esperança de Israel); quando Marcos compõe sua narrativa está combinação
nominal já havia se convertido em nome próprio. Jesus Cristo é o cumprimento de
toda Esperança contida nas Escrituras do Primeiro Testamento. As palavras
pronunciadas pelo velho sacerdote Simeão, quando toma o bebê Jesus em suas mãos
resume toda a expectativa dos crentes israelitas em todos os tempos: “Ele,
então, o tomou em seus braços, e louvou a Deus, e disse: Agora,
Senhor, despedes em paz o teu servo, Segundo a tua palavra; pois já os meus
olhos viram a tua salvação, a qual tu preparaste perante a face de todos os
povos; luz para iluminar as nações, e para glória de teu povo Israel” (Lc
2.25-32).
Filho
de Deus:[12] O
evangelista eleva o tom e declara com todas as letras que Jesus não é um homem
comum. Ele está escrevendo sobre aquele que sendo Deus assumiu a nossa
humanidade (1.1,14). Ele é mais do que qualquer um dos profetas,
como Elias ou o próprio Batista, pois Jesus é o próprio Filho de Deus e o
evangelista irá concluir sua narrativa com está mesma declaração, agora
pronunciadas pela boca de um centurião romano: “verdadeiramente, este homem
era Filho de Deus” (15.39).[13]
Então,
este título declara quatro verdades importantes em relação a Jesus:
1. Ele é verdadeiramente humano – Ele tem
um nome humano – Jesus.
2. Ele é verdadeiramente divino – Ele é o
Messias prometido. Ele é o Filho de Deus.
3. Ele é verdadeiramente único – Ele é
tanto a humanidade quanto a deidade em uma Pessoa.
4. Ele é a verdadeira fonte de Boas Notícias –
Só Jesus é a fonte da salvação!
João Batista e seu
ministério (1.2-8)
Voz
Profética (v.2-3): a sua vinda não fora acidental, mas amplamente
preparada em cada um de seus detalhes, como tão bem as narrativas iniciais de Mateus
e Lucas esclarecem; Marcos em suas palavras iniciais não deixa qualquer dúvida
sobre essa preparação declarando que João Batista é o cumprimento das profecias
(Malaquias 3.1 e Isaías 40.3); a primeira frase é de
Malaquias (400 anos antes) “Eis que envio o meu mensageiro diante da tua
face, que preparará o teu caminho diante de ti” – a segunda proferida 700
anos antes pelo profeta Isaías o mais evangélico dos profetas: “A voz de
quem clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas”.[14] Ambos os profetas olham
para frente – “Deus está para agir” – e o Batista irá apontar para Jesus
e dirá = “Deus já está agindo” a promessa está sendo cumprida.
João
Batista e sua Mensagem: Ele surge do deserto – trazendo à memória
judaica o Êxodo efetuado por meio de Moisés – agora Deus inicia um Novo
Êxodo por meio de seu Filho Jesus Cristo. Se no primeiro os israelitas estavam
escravos dos egípcios; agora eles estavam escravos de um sistema legalista
religioso – representado no Templo e seus Sacerdotes. Os que querem OUVIR a voz
de Deus tem que SAIR e ir para o Deserto (deixa meu povo ir falou Moises à
Faraó).
João Batista rompe um silêncio de 400 anos
(Malaquias a Marcos) – o povo espera que Deus torne a falar por meio da voz
profética (Malaquias predisse que um novo Elias será levantado por Deus Malaquias
4.5-6) e João Batista é esse novo Elias; e curiosamente em toda sua
narrativa Marcos não faz qualquer retrato falado de Jesus – nada ficamos
sabendo da pessoa de Jesus; todavia, o evangelista faz uma descrição minuciosa
do Batista. Por que?
Justamente porque Marcos deseja fazer a ligação
direta entre João Batista e o profeta Elias. A mensagem do
Batista é o cumprimento da Profecia – “Preparai o Caminho do Senhor
(Messias); endireitai suas veredas”. Assim como a mensagem de Elias era
para toda a nação israelita e conclamava todos ao arrependimento e a
reconciliação com Deus, a mensagem do Batista é radical para todos: pobres,
ricos; sacerdotes, levitas: arrependei-vos! Assim como Elias denuncia os
pecados do rei Acabe e Jezabel (1 Reis 19-22), o Batista vai
denunciar a relação irregular de Herodes Antipas e seu relacionamento imoral
com Herodias (Salomé), esposa de seu irmão Herodes Filipe I, sendo está a causa
de sua decapitação (Mc 6.14-29; cf. Mt 14.1-12; Lc 9.7-9).
Arrependimento (metanoia) é uma mudança deliberada
do coração e da mente; confessando os pecados (reconhecendo que está vivendo
longe da vontade de Deus) e se submetendo ao batismo (representação
externa/visível do arrependimento interno/invisível). A genuína tristeza pelo
pecado conduz à uma conversão e que envolve uma completa mudança de vida (novo nascimento).
O arrependimento implica em perdão – que estará disponível plenamente em Jesus
Cristo.
E João Batista tem plena consciência disso: ele
declara que está para surgir, ainda naqueles dias, alguém que é MAIOR do que
ele; pois, ainda que João seja um grande profeta, Jesus é de uma ordem de
grandeza diferente – Jesus é o Filho de Deus e plenamente cheio do Espírito
Santo e Poder – o batismo efetuado por Jesus, segundo as próprias palavras do
Batista, não é com água, mas com fogo purificador.
As palavras de João Batista em relação a Jesus
demonstram o caráter e a humildade dele: “não sou digno nem mesmo de
desamarrar os cordões de suas sandálias” – que era a função do menor
escravo em uma casa. Esta humildade faltará aos próprios discípulos no Cenáculo
– assim, como falta a nós hoje.
Essa primeira referência ao Espírito Santo tem
como objetivo linkar Jesus com a Salvação prometida nas Escrituras do Primeiro
Testamento e que implicava no derramar do Espírito Santo (Joel 2.28s;
Ezequiel 36.26s) que haverá de se cumprir após sua ascensão, no
transcorrer da festa do Pentecostes.
Conclusão
desta primeira unidade (1.2-8): o evangelista declara que a
vinda do Batista inicia o cumprimento das antigas promessas de Salvação
(Messiânicas); ele prepara o caminho do Senhor (Messias), onde o povo por meio
de seu arrependimento e batismo são preparados para receber a Salvação. O
cenário está pronto – então no verso 9 diz Marcos: JESUS CRISTO VEIO!
Vamos Orar! Espírito Santo capacita-nos a compreendermos a tua palavra e que
possamos te louvar continuamente por tão grande salvação que nos foi dada
graciosamente por meio de Jesus Cristo. Que possamos seguir o modelo de João
Batista e sermos também porta-vozes desta preciosa mensagem de arrependimento e
perdão efetuada por meio de Cristo. Amém!
Questões Para Reflexão
1)
Que outros livros da Bíblia começam com a palavra começo?
2) O
que significa a palavra “Evangelho”?
3)
O que é significativo sobre os
títulos dados ao assunto deste evangelho?
Cristo:
Filho de Deus:
4) Quais
os dois profetas que Marcos cita em relação ao ministério de João Batista?
5)
Quem formava o auditório de João Batista e de onde vinham?
6) Quais
eram os temas centrais da pregação de João Batista?
7)
Por que Marcos se preocupa em descrever a pessoas de João Batista? Qual a
relação disso com a sua missão?
8) Qual
a diferença fundamental entre o batismo de João Batista e o batismo de Jesus
Cristo.
[1] Este material foi preparado para
pequenas devocionais matinais as quais estou acrescentando algum material novo
e principalmente as notas de rodapé. Deste modo você pode ler somente o corpo
do texto ou se aprofundar um pouco mais examinando as notas.
[2] Perícope: do grego
"recortar" refere-se a uma seção (parágrafo) de texto delimitado a
partir de seu conteúdo. A divisão do texto bíblico em versículos, com raras
exceções, não respeita as perícopes do texto hebraico e grego e em alguns casos
acaba por descaracterizar o texto e dificultar sua análise hermenêutica.
[3] Uma seção introdutória explicando o que
acontece antes da ação principal.
[4] Alguns defendem a opinião de que a
primeira perícope de Marcos consiste em 1.1-15.
[5] “O primeiro versículo não é
meramente um título. Ê uma nota-chave para o livro, como um todo” (ALLEN,
1986, p. 326).
[6] Austin Farrer chama essas palavras
iniciais de “uma semente, da qual crescerão as sentenças seguintes” (FARRER,
1952, apud ALLEN, 1986, p. 326).
[7]Aqui é usado sem o artigo definido indicação
de que funciona como um título. Arche é usado 4x em Marcos (1.1; 10.6;
13.8 e 13.19 – cf. Gn 1.1; Jo 1.1,2ss; 1Jo 1.1ss). Cranfield cita dez possíveis
pontos de vista sobre a relação de 1.1 com o livro como um todo (1959, p.
34-35).
[8] O termo vai sofrendo uma evolução em
sua abrangência: Primariamente, como aqui em Marcos, significava
especificamente a vida e obra de Jesus Cristo; posteriormente passou a
identificar está e as demais literaturas produzidas pelos evangelistas e depois
passou a abranger todas as literaturas neotestamentária.
[9]“Este evangelho é chamado de Evangelho
de Jesus Cristo, porque Cristo, como Deus, é o Autor deste evangelho, e também
o principal sujeito e assunto dele. Ainda que São João Batista seja o precursor
da mensagem evangélica, mas o próprio Cristo foi o primeiro e principal autor,
e da mesma forma o principal assunto dela; pois tudo o que é ensinado no
evangelho diz respeito à pessoa e aos escritórios de Cristo, ou aos benefícios
recebidos por ele, ou aos meios de usufruir desses benefícios dele”. (BURKITT,
1844).
[10]O nome "Jesus" é a
transliteração grega do nome hebraico "Josué". Significa "Jeová
é Salvação". Jesus é um nome humano e revela a razão pela qual Jesus veio
a este mundo. Jesus veio a este mundo para salvar pecadores perdidos, e seu
nome "Jesus" declara sua pessoa e sua missão.
[11] Isso identifica Jesus como o
"Messias judeu", ou "o Ungido". O nome "Cristo"
declara sua posição. Jesus é retratado como aquele que salvará seu povo de seus
inimigos.
[12] Alguns manuscritos não trazem essa
declaração, mas em uma ampla maioria ela é parte integrante do texto. E está em
perfeita harmonia com toda a narrativa marcana.
[13] Contudo, são singularmente apropriadas dentro
da narrativa marcana: os demônios o declaram (3.11; 5.7) e em duas ocasiões o
Pai faz a declaração forma da filiação divina dele (1.11 batismo;
9.7 transfiguração).
[14]
Era uma prática hermenêutica dos escritores bíblicos moldarem a citação de dois
textos bíblicos mantendo a nomenclatura de apenas um deles, demonstrando a qual
dos dois colocava sua ênfase teológica. No caso especifico de Marcos ele quer
enfatizar as palavras dos profetas Isaías, o mais antigo, e a reforça com o eco
destas palavras em Malaquias, que quase trezentos anos depois faz referência à
mesma promessa. Pensar que Marcos não se utilizou desta prática e que as
palavras de Malaquias foram inseridas posteriormente por copistas é uma
pressuposição altamente questionável. A opção pela tradução “no profeta
Isaías” (NIV), em vez de “nos profetas” (FIEL)
demonstra o equivoco da primeira e a coerência da segunda tradução.