quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Viajando no Evangelho Segundo Mateus (2.13-23)


A Crueldade Humana e a Providência de Deus
            Até aqui nossa viagem tem sido agradável. Jesus nasceu e foi honrado por sábios que percorreram milhares de quilômetros até encontra-lo. O primeiro contato com o rei Herodes foi positivo, mas orientados por Deus os visitantes fazem um novo caminho para sair dos domínios do rei dissimulado e implacável.
            Mas nuvens carregadas indicam que vem uma forte tempestade – a ira neurótica de Herodes será manifesta de forma implacável sobre os inocentes de Belém. Mas como Deus sempre esteve uma eternidade à frente do esquizofrênico rei da Palestina judaica, José, Maria e o menino Jesus já estão refugiados em território egípcio quando a ordem hedionda de Herodes foi executada.

Prossigamos com nossa viagem!

Evangelho Segundo Mateus (NVI)
Capítulo 2.13-23
Comentários
Síntese da Perícope: A Crueldade Humana e a Providência de Deus
Alertados por Deus em sonho os visitantes orientais retornam à sua terra por um caminho diferente, evitando qualquer novo contato com o rei Herodes, que dissimuladamente havia manifestado desejo de homenagear o recém-nascido.
Simultaneamente Deus uma vez mais orienta José através de sonho para que conduza Maria e o menino Jesus para o Egito. Imediatamente partiram e ali permaneceram até a morte de Herodes (que aconteceu nos primeiros três ou quatro anos da vida de Jesus).
Percebendo que os sábios do Oriente não retornariam para lhe informar Herodes tem um surto neurótico e ordena a chacina dos meninos de Belém de dois anos para baixo, com base na conversa que teve com os visitantes e o tempo que esperou o retorno deles.
Tendo morrido Herodes, uma vez mais Deus orienta José através de um sonho onde um anjo ordena que eles retornem para a terra de Israel, o que ele faz e sendo guiado vai morar na região da Galileia (Jesus será chamado de galileu).
Arquelau, filho de Herodes, o Grande inicia seu reinado na Judéia, e apesar de curto é suficiente para aterrorizar judeus e samaritanos que solicitam sua deposição (6 d.C.).
José estabelece sua família na cidade de Nazaré (Jesus será chamado de nazareno).  
13. Depois que partiram, um anjo do Senhor apareceu a José em sonho e disse-lhe: "Levante-se, tome o menino e sua mãe, e fuja para o Egito. Fique lá até que eu lhe diga, pois Herodes vai procurar o menino para matá-lo".
14. Então ele se levantou, tomou o menino e sua mãe durante a noite, e partiu para o Egito,
15. onde ficou até a morte de Herodes. E assim se cumpriu o que o Senhor tinha dito pelo profeta: "Do Egito chamei o meu filho".
16. Quando Herodes percebeu que havia sido enganado pelos magos, ficou furioso e ordenou que matassem todos os meninos de dois anos para baixo, em Belém e nas proximidades, de acordo com a informação que havia obtido dos magos.
17. Então se cumpriu o que fora dito pelo profeta Jeremias:
18. "Ouviu-se uma voz em Ramá, choro e grande lamentação; é Raquel que chora por seus filhos e recusa ser consolada, porque já não existem".
19. Depois que Herodes morreu, um anjo do Senhor apareceu em sonho a José, no Egito,
20. e disse: "Levante-se, tome o menino e sua mãe, e vá para a terra de Israel, pois estão mortos os que procuravam tirar a vida do menino".
21. Ele se levantou, tomou o menino e sua mãe, e foi para a terra de Israel.
22. Mas, ao ouvir que Arquelau estava reinando na Judéia em lugar de seu pai Herodes, teve medo de ir para lá. Tendo sido avisado em sonho, retirou-se para a região da Galiléia
23. e foi viver numa cidade chamada Nazaré. Assim cumpriu-se o que fora dito pelos profetas: Ele será chamado Nazareno.
Depois que os visitantes orientais retornaram para seu país, e sabendo Deus o que se passava nos bastidores do palácio de Herodes, uma segunda vez José recebe a mensagem angelical através de um sonho.
Desta vez orienta-o para que fuja rapidamente para o Egito “até que te avise”. É possível que Mateus, tendo em mente os seus leitores cristão-judaicos desejasse relembra-los do evento maior de sua história – o Êxodo – que era rememorado todos os anos na festa da Páscoa o ponto máximo do calendário religioso judaico. No transcorrer de sua narrativa Mateus vai apresentar Jesus como o novo Moisés (sobe ao monte para ensinar capto. 5-7); Jesus vem inaugurar a era messiânica. O paralelo entre Moisés e Jesus é evidenciado em relação ao Egito – ambos saíram do Egito para serem libertador/salvador de seu povo. Através de um José a família de Jacó/Israel foi levada e preservada no Egito; agora outro José leva o “menino-messias” para ser preservado de morte prematura nas mãos de Herodes.
Além desse paralelo o Egito desde há muito tempo acolhia a maior comunidade judaica fora da Palestina, principalmente em Alexandria, onde foi produzida a primeira tradução do cânon hebraico (Septuaginta), duzentos anos antes de Cristo.
Do Egito chamei meu Filho” o evangelista faz um link direto entre a estadia do menino Jesus no Egito e o cumprimento da profecia proferida por Oséias (11.1). Na simples leitura das palavras do profeta não se percebe alguma referência ao Messias, todavia à luz de Êxodo (4.23), da qual Oséias faz referência, há muito era aplicado pelos exegetas judeus ao Messias. Assim, o propósito de Deus que jamais foi plenamente realizado nos descendentes de Jacó/Israel, será plenamente realizado em Cristo; a vontade divina tantas vezes abandonada pela sistemática desobedecida dos israelita/judeus, será cumprido na perfeita obediência do Filho, no qual o Pai tem todo o seu prazer.
Enquanto José, Maria e o menino Jesus se refugiam no Egito, o rei Herodes percebe que os estrangeiros orientais lhe enganaram. Tomado pela fúria descontrolada que lhe era peculiar não pensa duas vezes e ordena que todos os meninos de dois anos para baixo sejam assassinados, em Belém e nas proximidades (fazendo os leitores se lembrarem da ordem de Faraó), conforme lhe haviam sido informado. E aqui Mateus uma vez mais interpreta como cumprimento da profecia de Jeremias (31.15). Raquel chora seus filhos em Ramá, pois foi aqui que após os exércitos babilônicos destruírem Jerusalém, os que haveriam de ser levados cativos ficaram aprisionados, até que iniciassem sua longa e dolorida viagem de seiscentos quilômetros até o exílio (Jr 40.1). O profeta Jeremias utiliza a figura maternal de Raquel, amada por Jacó e mãe de José e Benjamim, para representar toda a dor de contemplar seus descendentes sendo levados como escravos. A figura de Raquel chorando seus filhos sendo levados cativos é dramática e serve perfeitamente para ilustrar a dor e sofrimento das mães de Belém e adjacências que irão ver seus pequenos e amados filhos serem mortos cruelmente pelos soldados de Herodes (calculam-se que o número de meninos mortos por ordem de Herodes em Belém e arredores poderia ser de uns 20, outros sugerem 30 a 40 crianças). Mas assim como Raquel deve enxugar suas lágrimas, pois lhe é anunciada a esperança do retorno do cativeiro (Jr 40.15-22), as mães de Belém haverão de ser consoladas pela salvação provida por meio de Jesus.
Assim que Herodes morre, pela terceira vez José é comunicado através de sonho onde um anjo lhe ordena que retorne à sua terra. Evidente que a morte do terrível tirano rapidamente chegaria ao conhecimento dos judeus que moravam no Egito. Todavia, José ficaria com diversas interrogações: Quem assumiria o trono? Seria seguro ou sábio retornar à Palestina?  As ansiedades do dia se refletem no sono da noite, desta forma a mensagem angélica vem acalmar e sossegar o coração de José, dando-lhe a certeza de que Deus está no controle da situação.
Em obediência (ele se levantou) José mais uma vez empreende sua longa viagem, agora de volta a terra de Israel. O genuíno crente é aquele que tomando conhecimento da vontade de Deus, através da Palavra, obedece imediatamente. Um evangelicalismo desassociado da obediência à Palavra de Deus é estéril e produz somente a morte.
Mas a obediência não implica ausência de prudência. Ao chegar à Palestina José toma conhecimento de que Arquelau, filho de Herodes, reina na Judeia (Iduméia e Samaria) e fica temeroso. Arquelau demonstrou ser tão cruel e traiçoeiro quanto o seu pai e logo após assumir o governo desta região promove uma matança de três mil pessoas (cf. Josefo, Ant., 17: 11.2). Após nove anos de opressão e violência judeus e samaritanos se uniram, coisa rara, e solicitaram ao imperador romano que Arquelau fosse deposto e banido para a Gália. Portanto, os receios de José estavam bem fundamentados.
Estando com o coração novamente angustiado, pela quarta e última vez Deus vem ao encontro dele através de sonho, onde um anjo lhe indica a região da Galileia, governada por Antipas (Galileia e Peréia), menos violento do que seu irmão e seu pai.
Ali José fixa novamente residência na cidade de Nazaré, onde o evangelista relaciona mais um cumprimento profético – “Ele será chamado Nazareno” (v. 23). O profeta Isaías se refere à região como sendo “Galileia dos gentios” (4.15; 9.1), pois após a invasão dos assírios os judeus foram levados cativos e outros povos foram implantados na região (2Rs 17.23-24). Somenta após o retorno dos exilados da Babilônia no século II a.C. os reis hasmoneus conseguiram repovoar a região. Assim, a Galileia era menosprezada pelos moradores da Judeia (Jo 7.52), ainda que Isaías tenha anunciado que nesta região se manifestaria uma grande luz e que Mateus irá declarar que Jesus será o cumprimento dessa profecia (4.16; cf. Is 9.1-7).
Mas aqui (capto 2) Mateus não reflete alguma profecia especifica, mas por outro lado os profetas afirmam que o Messias seria desprezado e sofreria intenso opróbrio o que se harmoniza com sua “alcunha” de nazareno (por ex. Is 53.3; Sl 22.6).
Por outro lado, a região da Galileia sempre fora palco de focos de revoltas contra os romanos e a cidade de Nazaré provavelmente era a base desses revoltosos (pode vir alguma coisa boa de Nazaré). Jesus será crucificado sob a falsa acusação, da parte das lideranças judaicas, de ser um “nazareno” e líder de um movimento revolucionário contra o Império.
Qualquer relação com o voto de nazireu (nazareno) é equivocado, pois as duas palavras tem grafias distintas, tanto em grego como em hebraico, e a vida de Jesus expressa uma consagração (santidade) estando no mundo e interagindo com as pessoas (pecadores) para lhes comunicar a vontade e salvação graciosa de Deus (Pai não os tire do mundo, mas livre-os do mal).
Assim como aconteceu em seu nascimento, o “Rei-Messias” não crescerá na capital Jerusalém e nem no Palácio real, mas na região mais pobre e carente da Palestina. Nesses dias de um evangelicalismo comprometido com ascensão social e prosperidade, viver na região da Galileia não é uma opção. Mas é aqui que Jesus viveu e iniciou seu ministério; raramente sobe a Jerusalém e na derradeira vez será traído, humilhado e crucificado – ressurgindo no terceiro dia.

Aplicação Geral da Perícope 2.13-23
Há diversas e preciosas verdades que podem ser extraídas desta pequena, porém rica perícope e aplicadas nos dias atuais. Destacarei apenas uma.
v  Refugiados: Nenhum tema esta tão em voga hoje do que a questão dos refugiados e a narrativa evangélica coloca Jesus nessa condição, quando é obrigado a sair de seu país e se refugiar no Egito por causa da questão politico-religiosa representada na figura despiedado e sanguinário de Herodes. Ninguém se identifica melhor com aqueles que sofrem perseguição religiosa e são obrigados a viverem em circunstâncias desfavoráveis do que Jesus. Infelizmente os cristãos temerosos de perderem suas comodidades e terem suas zonas de conforto invadidas, optam pela indiferença e até mesmo se opõem abertamente contra todos os refugiados. Mas a Bíblia tem muitos exemplos de personagens que experimentaram na própria pele esta alcunha: Abraão, José e toda a família de seu pai Jacó/Israel; Moisés que foi acolhido pelo clã de seu sogro; os próprios judeus que passaram a viver na Babilônia (Daniel e seus amigos; o profeta Ezequiel); Susã, capital da Persia, onde viveu Neemias (Esdras, Zorobabel) e que não apenas o acolheu como seu rei Artaxerxes financiou sua viagem e todo necessário para reconstrução dos muros de Jerusalém; no Egito, onde se formou a maior comunidade judaica fora da Palestina e na própria capital Roma, onde milhares de judeus viveram. No dia de pentecostes Lucas nos apresenta um leque de nações que acolheram judeus. E quando falamos em acolher implica em que estes judeus estavam plenamente inseridos no contexto social destes países. Deus em suas leis e posteriormente por boca de seus profetas corrige continuamente os israelitas/judeus quando eles se recusam ou tratam mal os estrangeiros entre eles; exige que eles não apenas acolham tais pessoas, como os trate com toda presteza possível. Mas além dos imigrantes há também a questão dos desvalidos e párias sociais que vivem à margem da sociedade – homens, mulheres e crianças deixados à própria sorte. Ninguém os acolheu, valorizou e supriu suas necessidades como Jesus de Nazaré, que sentiu na própria pele o que significa ser descriminado, pois Ele cresceu em meio à região mais pobre e miserável da Palestina. Jesus em perfeita harmonia com toda revelação bíblica agiu em favor dos órfãos, as viúvas, os doentes, os que nada tinham e os que nada eram. Onde estão seus discípulos hoje?
v   



Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
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Referência Bibliográfica
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento Interpretado. São Paulo: ed. Milenium, 1985. [v. 1].
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JEREMIAS, Joachim. Jerusalém no Tempo de Jesus: pesquisa de história econômico-social no período neotestamentário. 4 ed. São Paulo: Paulus, 1983.
JOHNSON, Paul. História dos Judeus. 2ª Ed. Rio de Janeiro, Imago,1995.
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The Israel Museum, Jerusalem. Tesouros da Terra Santa. Israel, 2008.

RIENECKER, Fritz. Evangelho de Mateus – comentário esperança. Tradução Werner Fuchs. Curitiba-PR: Editora Evangélica Esperança, 1998. 

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

NT - Os Livros Questionados e/ou Antilegomena


Os livros que compõem o Segundo Mandamento (Novo Testamento) foram escritos ao longo da segunda parte do primeiro século cristão. Mas não somente estes livros como também um número expressivo de outras literaturas que no processo de canonização foram descartados.
O reconhecimento do cânon do Novo Testamento não foi um acontecimento, mas um processo, mas nem todos os livros neotestamentário foram aceitos imediatamente, alguns permaneceram com reservas por parte das igrejas até o século IV quando finalmente foram aceito por todos como parte integrante das escrituras bíblicas.
Esse pequeno grupo de literatura que foram questionadas recebem a nomenclatura de antilegomena  (em grego: αντιλεγομένα), literalmente, os escritos em que há alguém que "falou contra". Este grupo é distinto dos “espúrios” ou "rejeitados" e dos "Homologoumena" aqueles escritos que foram aceitos por todas as igrejas, como os quatro Evangelhos canônicos.
De acordo com o historiador Eusébio, houve sete livros cuja autenticidade foi questionada por alguns dos pais da igreja, e por isso ainda não haviam obtido reconhecimento universal por volta do século IV. Os livros objeto de controvérsia foram Hebreus, Tiago, 2 Pedro, 2 e 3 João, Judas e Apocalipse.
A Razão Para o Questionamento
O fato desses livros não ter obtido reconhecimento universal até o início do século IV não significa que não haviam tido aceitação inicial por parte das comunidades apostólicas e pós-apostólicas. Ao contrário, esses livros foram citados como inspirados por vários estudiosos primitivos. Tampouco, o fato de terem sido questionados, em certa época, por alguns estudiosos, não é indício de que sua presença no cânon atual seja menos firme do que a dos demais livros. Ao contrário, o problema básico a respeito da aceitação da maioria desses livros não era sua inspiração, ou falta de inspiração, mas a falta de comunicação entre o Oriente e o Ocidente a respeito de sua autoridade divina. A partir do momento em que os fatos se tornaram conhecidos por parte dos pais da igreja, a aceitação final, total, dos 27 livros do Novo Testamento foi imediata.
Vejamos de forma breve uma exposição sobre os motivos das objeções que cercaram cada livro e sua aceitação definitiva.
Hebreus. Neste caso o problema estava na autoria e estilo. A tradição dizia ser de Paulo, mas não há o nome do autor, como é costume de Paulo. O estilo também não é exatamente o mesmo, embora haja muita semelhança. Por esta razão o livro permaneceu sob suspeição entre os cristãos do Oriente, que não sabiam que os crentes do Ocidente o haviam aceitado como autorizado e dotado de inspiração. Além disso, o fato dos montanistas heréticos terem recorrido a Hebreus em apoio a algumas de suas concepções errôneas acabou por postergar sua aceitação nos círculos ortodoxos. Ao redor do século IV, no entanto, sob a influência de Jerônimo e de Agostinho, a carta aos Hebreus encontrou seu lugar permanente no cânon.
Uma vez que o Ocidente estava convencido do cunho apostólico desse livro, nenhum obstáculo permaneceu no caminho de sua aceitação plena e irrevogável no cânon. O teor do livro é plenamente confiável, tanto quanto sua reivindicação de deter autoridade divina.
Tiago. A veracidade do livro de Tiago foi desafiada, tanto quanto sua autoria. Como no caso da carta aos Hebreus, o autor da carta atribuída a Tiago não afirma ser apóstolo. Os primeiros leitores e os que se lhes seguiram puderam atestar que esse era o Tiago do círculo apostólico, o irmão de Jesus (cf. At 15 e Gl 1). Todavia, a igreja ocidental não teve acesso a essa informação original. No entanto, em decorrência dos esforços de Orígenes, de Eusébio (que pessoalmente recomendava a aceitação de Tiago), de Jerônimo e de Agostinho, a veracidade e a apostolicidade dessa carta vieram a ser reconhecidas pela igreja ocidental. Dessa época até o presente, Tiago vem ocupando sua posição canônica no cristianismo. É claro que sua aceitação baseia-se na compreensão de sua compatibilidade essencial com os ensinos paulinos a respeito da justificação do crente pela fé. O aparente conflito entre seu ensino e o de Paulo, sobre a justificação pela fé, levou Martinho Lutero a chamar Tiago de ''carta de palha'', colocando-a no fim do Novo Testamento, mas em momento algum Lutero a retirou do cânon e ele mesmo em várias oportunidades a recomenda: “Eu não impediria ninguém de incluir ou exaltar [Tiago] como lhe agradasse, pois por outro lado existem [em Tiago] muitas coisas boas que ele disse”. O grande reformador em seu afã contra qualquer esforço humana para a salvação, não se apercebeu da perfeita harmonia do ensino de Tiago com o ensino de Paulo.
Segunda carta de Pedro. Nenhum outro documento do Novo Testamento ocasionou maiores dúvidas quanto à sua autenticidade do que 2 Pedro. Parece que Jerônimo entendeu o problema; ele afirmou que a hesitação em aceitá-la como obra autêntica do apóstolo Pedro deveu-se à dessemelhança de estilo com a primeira carta do apóstolo. Há algumas diferenças notáveis de estilo entre as duas cartas de Pedro, mas, não obstante os problemas linguísticos e históricos, há mais do que amplas razões para que aceitemos 2 Pedro como livro canônico.
Sua aceitação é primeiramente no Oriente, onde aparece na antiga versão cóptica (200 d.C.) e no manuscrito p72 (inicio do século III), revelando que 2 Pedro estava sendo usada com grande respeito pelos cristãos coptas, em época bem primitiva. Clemente de Roma, bem como a obra Pseudo-Barnabé, dos séculos I II respectivamente, citam 2 Pedro. Temos, além disso, os testemunhos de Orígenes, de Eusébio, de Jerônimo e de Agostinho, do século III ao V. Aliás, há mais comprovações de 2 Pedro que de alguns clássicos do mundo antigo, como as obras de Heródoto e de Tucídides. Finalmente, há evidências internas a favor da confiabilidade de 2 Pedro. Há na carta características e interesses doutrinários notadamente petrinos. As diferenças de estilo são explicadas pelos conservadores com o fato de Pedro ter utilizado secretários (escribas) diferentes ou de ele mesmo ter escrito esta segunda carta.
2 e 3 João. As duas cartas mais curtas de João também foram alvo de questionamento quanto à autenticidade. O escritor se identifica apenas como "o presbítero"; por causa dessa questão autoral e de sua circulação limitada, as cartas não gozaram de ampla aceitação, ainda que fossem mais amplamente aceitas do que 2 Pedro. Policarpo Ireneu haviam aceitado 2 João como confiável. O Cânon de Muratório e a Antiga Latina continham ambas. Todas as três epístolas joaninas aparecem na lista que Atanásio elaborou de 27 livros do Novo Testamento (367 d.C.) e nas listas ratificadas nos Concílios de Hipona (393) e Cartago (397). A semelhança em estilo e em mensagem com 1 João, que havia sido amplamente aceita, mostrou ser óbvio que as outras duas vieram do apóstolo João também (cf. 1Jo 1.1-4). Quem mais seria tão íntimo dos primitivos crentes asiáticos, de tal modo que pudesse escrever com autoridade sob o título afetuoso de "o presbítero"? O termo presbítero (ancião) era usado como título pelos demais apóstolos (v. 1Pe 5.1), pelo fato de denotar o cargo que ocupavam (v. At 1.20), enquanto apostolado designava o dom que haviam recebido (cf. Ef 4.11).
Judas. A confiabilidade desse livro foi questionada por alguns. A maioria da contestação centrava-se nas referências ao livro pseudepigráfico de Enoque (Jd 14,15) e numa possível referência ao livro da Assunção de Moisés (Jd 9). Orígenes faz ligeira menção desse problema em seu comentário de Mateus (18,30) e Jerônimo declara especificamente ser esse o problema, em seu livro “Vidas de Homens Ilustres” (cap. 4). No entanto, Judas foi suficientemente reconhecido pelos primeiros pais da igreja. Ireneu, Clemente de Alexandria Tertuliano aceitaram a confiabilidade desse livro, como o fez o Cânon Muratório. As citações pseudopigráficas têm uma explicação, a qual se valoriza muito pelo fato de tais citações não serem essencialmente diferentes das citações feitas por Paulo de poetas não-cristãos (cf. At 17.28; ICo 15.33; Tt 1.12). Em nenhum momento os autores bíblicos estão autenticando a divindade destes escritos, tampouco as citações representam aprovação integral de tudo que tais livros ensinam; os autores das cartas bíblicas meramente citam um fragmento de verdade encravado naqueles livros. O Papiro Bodmer (p72), recentemente descoberto, confirma o uso de Judas, ao lado de 2Pedro, na igreja copta do século III.
 Apocalipse. Ainda que inicialmente este livro tivesse aceitação generalizada até o segundo século (Didaquê, Pastor de Hermas, Papias, Ireneu, bem como pelo Cânon Muratório), teve sua canonicidade posteriormente disputada, provavelmente pela dúvida lançada por Dionísio de Alexandria, seguido por Eusébio de Cesaréia, quanto à origem apostólica do livro, devido ao que consideravam diferenças de estilo entre ele e o Evangelho de João; o que o levou a atribuir o livro a outro João. Outro fator foi a utilização do Apocalipse por parte dos heréticos montanistas e outras seitas que enfatizavam a profecia e a proximidade da consumação. Mas essa influência se desvaneceu quando Atanásio, Jerônimo e Agostinho ergueram-se em defesa do Apocalipse. Evidentemente que até os dias atuais há muitas controvérsias quanto a interpretação de seu conteúdo escatológico, mas nem antes e nem hoje se questiona a canonicidade deste precioso livro que fecha o Cânon do Novo Testamento e a própria Bíblia.     

 O cânon do Novo Testamento
Evangelhos
Actos
Epístolas
Apocalipse
Mateus
Marcos
Lucas
João
Actos dos Apóstolos
De Paulo
Romanos
1 Coríntios
2 Coríntios 
Gálatas
Efésios
Filipenses
Colossenses
1 Tessalonicenses
2 Tessalonicenses
1 Timóteo
2 Timóteo
Tito
Filemom
Católicas
Hebreus
Tiago
1 Pedro
2 Pedro
1 João
2 João
3 João
Judas
Apocalipse de João


Alguns apócrifos do Novo Testamento
Evangelhos
Actos
Epístolas
Apocalipses
Do século II
    Dos Hebreus 
    Dos Ebionitas
    Pedro
    Proto-evangelho de Tiago
    Papiro Egerton 2 (sem nome)

De Nag-Hammadi (gnósticos)
    De João (apócrifo)
    Da verdade (Valentim)
    De Tomé
    De Felipe
    De Maria Madalena

Tardios (séculos IV ao VI)
    História de José o carpinteiro
    Trânsito de Maria
    Segundo Tomé (maniqueu)
    De Mateus (apócrifo)
  
De João 
De Paulo 
De Pedro 
De Tomé 
De André 
De Pilatos
  
    Dos Apóstolos 
   (Epistula apostolorum)
De Paulo
    3 Coríntios
    Laodicenses
    Correspondência entre
    Paulo e Séneca

De Pedro
     Pregação de Pedro
    
  
De Pedro
De Paulo
De Tomé
De João
De Estêvão
Da Virgem
  



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Guedes, Ivan Pereira
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Referências Bibliográficas
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CESAREA, Eusebio de. Historia Eclesiástica (2 Vol.). Versão, introdução e notas de Argimiro Velasco Delgado. Madrid: BAC, 1973.
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GEISLER, Normam e NIX, William. Introdução Bíblica – Como a Bíblia Chegou Até Nós.  São Paulo: Ed. Vida, 1997.
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