sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Os Patriarcas nas Narrativas Evangélicas - Mateus


 As figuras dos patriarcas israelitas Abraão, Isaque e Jacó está amalgamado na consciência histórica dos judeus e como veremos irão fecundar as narrativas evangélicas. A vinda de Cristo e a subsequente iniciação histórica da igreja é uma consequência direta da história iniciada e renovada na vida destas extraordinárias figuras veterotestamentária. Os evangelistas irão interpretar e incorporar o testemunho patriarcal em suas respectivas narrativas evangélicas.
        A figura de Abraão é paradigmática, de maneira que ele será apresentado como a gênesis da tradição judaico-cristã. A vida de Isaque torna-se um protótipo de Cristo e Jacó torna-se o portador da própria nação israelita prenha de toda profecia messiânica.
Os Patriarcas no Antigo Testamento
        Evidente que as promessas de Deus em relação a Adão e Eva, bem como Noé, continham aspectos universais. Mas há um diferencial nas promessas feitas a Abraão (Gênesis 12-25), pois aqui se introduz a figura de uma nação em particular e uma linha genealógica especifica, sem, entretanto, jamais perder sua dimensão universal (Gn 12,3; 17,4-6.16; 18,18; 22,18]).
        A partir de Abraão, a linhagem passa pelo seu filho Isaque e o neto Jacó, que após uma experiência pessoal com Deus tem seu nome modificado para Israel e cujos filhos haverão de constituir as doze tribos embrião da nação israelita/judaica.
        No contexto veterotestamentário os patriarcas são as pontes estabelecidas por Deus na relação com a dinastia/nação em formação e continuará sendo após seu estabelecimento definitivo em Canaã/Palestina.  Esta aliança forjada na bigorna do tempo de Deus (kairós) será continuamente trazida à memória do povo israelita/judaica através do Calendário Festivo/Religioso pelos sacerdotes, bem como pela boca dos profetas e salmistas e finalmente nas páginas da Torah. 
Abrão no Contexto Evangélico de Mateus
        O evangelista abre sua narrativa evocando a figura do primeiro patriarca Abraão 1.2 deixando claro aos leitores primários (provavelmente judeus convertidos) que Jesus é o cumprimento literal das promessas Abraâmica. Para o evangelista Jesus é o novo Abraão em sua obediência a Deus. Mateus revela preocupação com a verdadeira descendência Abraâmica, estabelece uma tipologia de Isaque e apresenta a tríade patriarcal dentro de uma moldura escatológica. Para ele a história da salvação, objeto de toda sua narrativa, começa com Abraão e culmina em Jesus 1.17, o descendente de Abraão e o herdeiro definitivo de todas as promessas contidas na Aliança por Deus estabelecida com Abraão e renovada em Isaque e Jacó e no transcorrer da história do povo israelita/judaica.
        Utilizando o bojo da aliança Abraâmica o evangelista inclui o conceito universal nas figuras representativa dos gentios 1.17 na inclusão das mulheres 1.5,6, raríssimo se não inédito em genealogias judaicas, constituindo a abrangência universal da obra de Jesus na cruz Is 9.1-2 em Mt 4.12-16; Is 42.1-4 em Mt 12.17-21, e conclui sua narrativa reafirmando claramente o propósito universalista das promessas germinais em Abraão 28.16-20.
        Infelizmente os judeus não entenderam e continuam não entendo que eles eram apenas o canal das promessas dadas a Abraão e que elas se cumprem literalmente somente na vida daqueles que professam a fé em Jesus Cristo. Em suas narrativas evangélicas os escritores deixam claro que o simples fato de ser portador da descendência Abraâmica é insuficiente, como deixa bem claro a pregação de João Batista às margens do emblemático rio Jordão (porta de entrada à Canaã/terra prometida) 3.11,12.
Isaque no Contexto Evangélico de Mateus
        A figura de Isaque não se revela de explicita, como a de Abraão, mas implícita. Mateus apresenta o segundo patriarca apenas através do mecanismo da alusão, todavia, lendo com a devida atenção os textos bíblicos veterotestamentários, em seu contexto do século I, podemos ver que em Mateus evidencia-se uma tipologia significante de Isaque que se harmoniza bem com os temas mateanos de Jesus como novo templo e último sacrifício (HUIZENGA, 2009, p. xii). Jesus bem como Isaque são filhos da promessa e gerados de forma sobrenatural; filhos amados que vão obedientemente à morte sacrificial às mãos dos seus respectivos pais no tempo da Páscoa.
        Mateus faz ao menos três alusões a Isaque em sua narrativa: primeiro, "Filho de Abraão" 1.1 e ouve-se aqui ecos de uma tipologia que complementa a tipologia messiânica estabelecida por "Filho de Davi"; o anúncio do nascimento do anjo a José 1.20-21 alude ao texto de Génesis 17.19, no texto evangélico o anjo do Senhor diz a José: "Não temas receber Maria como tua esposa. . . Ela dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus”, enquanto em Gênesis Deus diz a Abraão: "Sara, tua mulher, te dará à luz um filho, e chamarás o seu nome Isaque". Por fim, uma alusão retórica[3] reforça a possibilidade da conceção virginal: se Deus produziu vida no ventre da idosa estéril Sara, Deus também é capaz de fecundar o ventre da jovem e saudável Maria.
        Por duas vezes Mateus registra as vozes celestes, no momento do batismo 3.17 e na transfiguração 17.5 ambas remetendo o leitor a Gn 22.2,12,16. Na narrativa evangélica Jesus é chamado de "meu filho amado".
        As duas alusões tipológicas apontam para a vocação sacrificial e posterior glorificação de Jesus Cristo. No caso de Isaque um carneiro foi provido, no caso de Jesus ele próprio era o cordeiro. Mas como diz o escritor de Hebreus 11.17-19, Abraão creu que mesmo que Isaque fosse morto, Deus o ressuscitaria dentre os mortos, e Jesus ressuscitou ao terceiro dia!
Quando se chega na narrativa da paixão elaborada por Mateus a tónica está na obediência de Jesus Mateus 26,.6-56. Jesus diz aos discípulos que estão com ele: "Sentai-vos aqui enquanto eu vou além orar... 26.36, enquanto em Génesis 22.5 Abraão diz aos seus servos para "esperem aqui" (na Septuaginta - kathisate autou – parar para sentar-se) enquanto ele e Isaque vão adiante para adorar.
        A cena alusiva fica mais evidente na sequência da composição narrativa do evangelista. Uma multidão "com espadas e paus" (meta machairōn kai xylōn Mt 26.47,55) vem e colocam as mãos sobre Jesus, provocando a reação imediata de um dos Doze estendendo a mão para pegar na sua espada (ekteinas tēn cheira . . . tēn machairan Mt 26.51), mas imediatamente Jesus intervém e faz a declaração sobre o destino daqueles que pegam na espada (hoi labontes machairan Mt 26.52). No texto de Génesis 22, Abraão empunha uma "faca" (machairan – LXX Gn 22. 6.10) e "madeira" (xyla - LXX Gn 22.3,6,7,9) como instrumentos de sacrifício, e estende a mão (exeteinen Abraão tēn cheira - LXX Gn 22.10) para pegar na sua espada (labein tēn machairan - LXX Gn 22.10) para matar Isaque, mas é impedido por um anjo que lhe diz não ponha as mãos no seu filho (mē epibalēs tēn cheira sou epi to paidarion  - LXX Gn 22.12). A relação está em que Abraão, o pai, empunhava a faca e a madeira para para realizar o sacrifício do seu filho amado, Deus Pai empunhou a multidão com as suas espadas e paus para para levar a cabo o sacrifício do seu Filho amado.
        Abraão, Isaque e Jacó são mencionados conjuntamente apenas duas vezes na narrativa mateana, sendo a primeira no relato da cura do servo do centurião romano Mt 8.5-13 e depois na controvérsia com os saduceus sobre a ressurreição Mt 22.23-33. Ambos os casos dizem respeito ao eschaton (escatologia).
        Na primeira narrativa, a demonstração de fé do centurião suscita as palavras de Jesus sobre muitos que vêm "do Oriente e do Ocidente e se sentam à mesa com Abraão, Isaac e Jacob no reino dos céus" Mt 22.11, enquanto "os filhos do reino" são excluídos; aqui o leitor primário (e nós) depara-se com os temas de inclusão e de inversão dos gentios, referido desde a abertura da narrativa na genealogia Mt 1.2-17 e na história dos sábios do Oriente que vem para adorar Jesus, enquanto Herodes e "toda a Jerusalém" com ele rejeitam Jesus Mt 2.         E o próprio Jesus recorre ao facto de que Deus fala a Moisés sobre a sua relação com Abraão, Isaque e Jacó Ex 3.15, para enfatizar aos saduceus que estes três permanecem (são testemunhas vivas/eternas) e, portanto, a ressurreição é uma realidade. A colocação de Jesus implica que a "ressurreição" é equivalente à vida eterna vida eterna imediatamente após a morte, uma vez que Deus disse estas palavras muito antes do eschaton; de maneira que Jesus interpreta estas palavras num sentido futuro, antecipando uma ressurreição no fim dos tempos.
        Quando paramos e contemplamos cada um e a totalidade destes detalhes narrativos é impossível não sermos tomados por um temor e tremor diante da ação redentora de Deus em nosso favor.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Historiologia Protestante
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Referências Bibliográficas

GIBSON, John Monro. The gospel of St. Matthew. London: Hodder and Stoughton, 1935. [The Expositor’s Bible].

HENDRIKSEN, William. Mateus, v.1 São Paulo: Cultura Cristã, 2001. [Comentário do Novo Testamento].

HUIZENGA, Leroy A. The New Isaac Tradition and Intertextuality in the Gospel of Matthew. BRILL, Leiden, Boston, 2009. [Supplements to Novum Testamentum ; v. 131].

MOUNCE, Robert H. Novo comentário bíblico contemporâneo – Mateus. São Paulo: Editora Vida, 1996.

RIENECKER, Fritz. Evangelho de Mateus – comentário esperança. Tradução Werner Fuchs. Curitiba-PR: Editora Evangélica Esperança, 1998.

SADLER, M. F. The Gospel According to St. Matthew, 3ª ed. Nova York: James Pott & Cia., 1887.



[1] Diferença marcante é que Jesus é gerado sem a participação de José.

[2] Diferença marcante é que Isaque não foi imolado, mas Jesus padeceu na cruz.

[3] A alusão é uma figura de linguagem caracterizada pelo uso de uma referência ou citação a um fato ou pessoa (real ou fictícia), necessariamente conhecido pelo interlocutor, no nosso caso leitor. Faz parte da intertextualidade, só que na alusão, não se aponta diretamente o fato em questão; apenas o sugere através de características secundárias ou metafóricas.[4]




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