As figuras dos patriarcas israelitas Abraão,
Isaque e Jacó está amalgamado na consciência histórica dos judeus e como
veremos irão fecundar as narrativas evangélicas. A vinda de Cristo e a
subsequente iniciação histórica da igreja é uma consequência direta da história
iniciada e renovada na vida destas extraordinárias figuras veterotestamentária.
Os evangelistas irão interpretar e incorporar o testemunho patriarcal em suas
respectivas narrativas evangélicas.
A figura de Abraão é paradigmática, de maneira
que ele será apresentado como a gênesis da tradição judaico-cristã. A vida de
Isaque torna-se um protótipo de Cristo e Jacó torna-se o portador da própria
nação israelita prenha de toda profecia messiânica.
Os Patriarcas no
Antigo Testamento
Evidente que as promessas de Deus em relação a
Adão e Eva, bem como Noé, continham aspectos universais. Mas há um diferencial
nas promessas feitas a Abraão (Gênesis 12-25), pois aqui se introduz a figura
de uma nação em particular e uma linha genealógica especifica, sem, entretanto,
jamais perder sua dimensão universal (Gn 12,3; 17,4-6.16; 18,18; 22,18]).
A partir de Abraão, a linhagem passa pelo seu
filho Isaque e o neto Jacó, que após uma experiência pessoal com Deus tem seu
nome modificado para Israel e cujos filhos haverão de constituir as doze tribos
embrião da nação israelita/judaica.
No
contexto veterotestamentário os patriarcas são as pontes estabelecidas por Deus
na relação com a dinastia/nação em formação e continuará sendo após seu
estabelecimento definitivo em Canaã/Palestina. Esta aliança forjada na bigorna do tempo de
Deus (kairós) será continuamente trazida à memória do povo israelita/judaica
através do Calendário Festivo/Religioso pelos sacerdotes, bem como pela boca
dos profetas e salmistas e finalmente nas páginas da Torah.
Abrão no Contexto
Evangélico de Mateus
O evangelista abre sua narrativa evocando a
figura do primeiro patriarca Abraão 1.2 deixando claro aos leitores
primários (provavelmente judeus convertidos) que Jesus é o cumprimento literal
das promessas Abraâmica. Para o evangelista Jesus é o novo Abraão em sua
obediência a Deus. Mateus revela preocupação com a verdadeira descendência Abraâmica,
estabelece uma tipologia de Isaque e apresenta a tríade patriarcal dentro de
uma moldura escatológica. Para ele a história da salvação, objeto de toda sua
narrativa, começa com Abraão e culmina em Jesus 1.17, o descendente
de Abraão e o herdeiro definitivo de todas as promessas contidas na Aliança por
Deus estabelecida com Abraão e renovada em Isaque e Jacó e no transcorrer da
história do povo israelita/judaica.
Utilizando o bojo da aliança Abraâmica o
evangelista inclui o conceito universal nas figuras representativa dos gentios 1.17
na inclusão das mulheres 1.5,6, raríssimo se não inédito em
genealogias judaicas, constituindo a abrangência universal da obra de Jesus na
cruz Is 9.1-2 em Mt 4.12-16; Is 42.1-4 em Mt 12.17-21, e conclui sua
narrativa reafirmando claramente o propósito universalista das promessas germinais
em Abraão 28.16-20.
Infelizmente os judeus não entenderam e
continuam não entendo que eles eram apenas o canal das promessas dadas a Abraão
e que elas se cumprem literalmente somente na vida daqueles que professam a fé
em Jesus Cristo. Em suas narrativas evangélicas os escritores deixam claro que
o simples fato de ser portador da descendência Abraâmica é insuficiente, como
deixa bem claro a pregação de João Batista às margens do emblemático rio Jordão
(porta de entrada à Canaã/terra prometida) 3.11,12.
Isaque
no Contexto Evangélico de Mateus
A figura de Isaque não se revela de explicita,
como a de Abraão, mas implícita. Mateus apresenta o segundo patriarca apenas
através do mecanismo da alusão, todavia, lendo com a devida atenção os textos
bíblicos veterotestamentários, em seu contexto do século I, podemos ver que em
Mateus evidencia-se uma tipologia significante de Isaque que se harmoniza bem
com os temas mateanos de Jesus como novo templo e último sacrifício (HUIZENGA,
2009, p. xii). Jesus bem como Isaque são filhos da promessa e gerados de forma
sobrenatural; filhos amados que vão obedientemente à morte sacrificial às mãos
dos seus respectivos pais no tempo da Páscoa.
Mateus faz ao menos três alusões a Isaque em
sua narrativa: primeiro, "Filho de Abraão" 1.1 e ouve-se aqui ecos
de uma tipologia que complementa a tipologia messiânica estabelecida por "Filho de Davi"; o
anúncio do nascimento do anjo a José 1.20-21 alude ao texto de
Génesis 17.19, no texto evangélico o anjo do Senhor diz a José:
"Não temas receber Maria
como tua esposa. . . Ela dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus”,
enquanto em Gênesis Deus diz a Abraão: "Sara, tua mulher, te dará à luz um filho, e chamarás o
seu nome Isaque". Por fim, uma alusão retórica[3] reforça a possibilidade da
conceção virginal: se Deus produziu vida no ventre da idosa estéril
Sara, Deus também é capaz de fecundar o ventre da jovem e saudável Maria.
Por duas vezes Mateus registra as vozes
celestes, no momento do batismo 3.17 e na transfiguração 17.5
ambas remetendo o leitor a Gn 22.2,12,16. Na narrativa evangélica Jesus
é chamado de "meu filho amado".
As duas alusões tipológicas apontam para a
vocação sacrificial e posterior glorificação de Jesus Cristo. No caso de Isaque
um carneiro foi provido, no caso de Jesus ele próprio era o cordeiro. Mas como
diz o escritor de Hebreus 11.17-19, Abraão creu que mesmo que Isaque
fosse morto, Deus o ressuscitaria dentre os mortos, e Jesus ressuscitou ao
terceiro dia!
Quando se chega na narrativa da paixão elaborada
por Mateus a tónica está na obediência de Jesus Mateus 26,.6-56.
Jesus diz aos discípulos que estão com ele: "Sentai-vos aqui enquanto
eu vou além orar... 26.36, enquanto em Génesis 22.5
Abraão diz aos seus servos para "esperem aqui" (na
Septuaginta - kathisate autou – parar para sentar-se) enquanto ele e Isaque
vão adiante para adorar.
A cena alusiva fica mais evidente na sequência
da composição narrativa do evangelista. Uma multidão "com espadas e
paus" (meta machairōn kai xylōn Mt 26.47,55) vem e colocam
as mãos sobre Jesus, provocando a reação imediata de um dos Doze estendendo a
mão para pegar na sua espada (ekteinas tēn cheira . . . tēn machairan
Mt 26.51), mas imediatamente Jesus intervém e faz a declaração sobre
o destino daqueles que pegam na espada (hoi labontes machairan Mt
26.52). No texto de Génesis 22, Abraão empunha uma "faca" (machairan
– LXX Gn 22. 6.10) e "madeira" (xyla - LXX Gn
22.3,6,7,9) como instrumentos de sacrifício, e estende a mão (exeteinen
Abraão tēn cheira - LXX Gn 22.10) para pegar na sua espada (labein
tēn machairan - LXX Gn 22.10) para matar Isaque, mas é impedido
por um anjo que lhe diz não ponha as mãos no seu filho (mē epibalēs tēn cheira
sou epi to paidarion - LXX Gn
22.12). A relação está em que Abraão, o pai, empunhava a faca e a
madeira para para realizar o sacrifício do seu filho amado, Deus Pai
empunhou a multidão com as suas espadas e paus para para levar a cabo o
sacrifício do seu Filho amado.
Abraão, Isaque e Jacó são mencionados conjuntamente
apenas duas vezes na narrativa mateana, sendo a primeira no relato da cura do
servo do centurião romano Mt 8.5-13 e depois na controvérsia com os
saduceus sobre a ressurreição Mt 22.23-33. Ambos os casos dizem
respeito ao eschaton (escatologia).
Na primeira narrativa, a demonstração de fé do
centurião suscita as palavras de Jesus sobre muitos que vêm "do Oriente
e do Ocidente e se sentam à mesa com Abraão, Isaac e Jacob no reino dos céus"
Mt 22.11, enquanto "os filhos do reino" são
excluídos; aqui o leitor primário (e nós) depara-se com os temas de inclusão
e de inversão dos gentios, referido desde a abertura da narrativa na genealogia
Mt 1.2-17 e na história dos sábios do Oriente que vem para adorar
Jesus, enquanto Herodes e "toda a Jerusalém" com ele rejeitam
Jesus Mt 2. E o próprio Jesus recorre ao facto de que Deus fala a
Moisés sobre a sua relação com Abraão, Isaque e Jacó Ex 3.15, para enfatizar
aos saduceus que estes três permanecem (são testemunhas vivas/eternas) e, portanto,
a ressurreição é uma realidade. A colocação de Jesus implica que a "ressurreição"
é equivalente à vida eterna vida eterna imediatamente após a morte, uma vez que
Deus disse estas palavras muito antes do eschaton; de maneira que Jesus interpreta
estas palavras num sentido futuro, antecipando uma ressurreição no fim dos
tempos.
Quando paramos e contemplamos cada um e a
totalidade destes detalhes narrativos é impossível não sermos tomados por um
temor e tremor diante da ação redentora de Deus em nosso favor.
Utilização
livre desde que citando a fonteGuedes,
Ivan PereiraMestre
em Ciências da Religião.me.ivanguedes@gmail.comOutro BlogHistoriologia
Protestantehttp.//historiologiaprotestante.blogspot.com.br/
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Referências
Bibliográficas
GIBSON,
John Monro. The gospel of St. Matthew. London: Hodder and
Stoughton, 1935. [The Expositor’s Bible].
HENDRIKSEN,
William. Mateus, v.1 São Paulo: Cultura Cristã, 2001.
[Comentário do Novo Testamento].
HUIZENGA,
Leroy A. The New Isaac Tradition and Intertextuality in the Gospel of
Matthew. BRILL, Leiden, Boston, 2009. [Supplements to Novum Testamentum ;
v. 131].
MOUNCE,
Robert H. Novo comentário bíblico contemporâneo – Mateus. São
Paulo: Editora Vida, 1996.
RIENECKER,
Fritz. Evangelho de Mateus – comentário esperança. Tradução
Werner Fuchs. Curitiba-PR: Editora Evangélica Esperança, 1998.
SADLER,
M. F. The Gospel According to St. Matthew, 3ª ed. Nova York: James
Pott & Cia., 1887.
[1] Diferença marcante é que Jesus é gerado
sem a participação de José.
[2] Diferença marcante é que Isaque não foi
imolado, mas Jesus padeceu na cruz.
[3] A alusão é uma figura de linguagem
caracterizada pelo uso de uma referência ou citação a um fato ou pessoa (real
ou fictícia), necessariamente conhecido pelo interlocutor, no nosso caso
leitor. Faz parte da intertextualidade, só que na alusão, não se aponta
diretamente o fato em questão; apenas o sugere através de características
secundárias ou metafóricas.[4]
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