O que é um
Evangelho? É uma crônica, uma
biografia, uma simples narração da vida de Jesus ou um tratado teológico?
Com certeza não se trata de uma biografia, nem nos moldes
da antiguidade ou moderna. O esforço do movimento teológico liberal, no inicio
do século XX, de reconstruir a vida de Jesus de Nazaré, fracassou.
Os evangelistas não tinham em mente escrever pormenores
sobre a vida de Jesus, determinando o que ele fez ou deixou de fazer naquele
dia especifico do calendário ou todas as suas atividades e movimentos. Isto
fica claro ao se perceber que as indicações espaços-temporais das narrativas
são na maioria das vezes genéricas: “na cidade”, “em casa”, “a caminho”,
“naquele tempo”, “naquela hora”. A extensão do tempo do ministério de Jesus,
segundo os sinóticos, é de no máximo um ano, com uma única subida da região da Galileia
à Jerusalém e uma só Páscoa, enquanto examinando as informações contidas na
narrativa do quarto evangelista Jesus esteve em várias ocasiões em Jerusalém e comeu
ao menos três Páscoas, perfazendo um período de aproximadamente três anos e
meio.
Assim, se os evangelhos não são história ou biografia da
vida de Jesus, no sentido moderno destes termos, eles são o registro do kerigma (mensagem)
proclamada inicialmente pelos apóstolos e depois pelos cristãos em geral. Esta
mensagem era centrada na morte e ressurreição de Jesus e os evangelistas
colocam estes acontecimentos como fatos verdadeiramente acontecidos.
Todos os evangelistas escreveram posteriormente aos
acontecimentos ocorridos na última Páscoa, que se torna o epicentro da narrativa evangélica, de maneira que não há da
parte deles uma preocupação cronológica e topográfica mas sim
histórico-querigmático, fundamentando no contexto histórico a mensagem do
mistério da salvação realizada por Jesus na cruz, proclamada a todos em todos
os tempos, e formulando assim, um convite aos respectivos leitores a tomarem
uma posição pessoal diante destes acontecimentos. A mensagem proposta pelos
evangelistas é basicamente salvífica.
O modelo evangélico literário foi inaugurado por Marcos e
adotado pelos demais como protótipo. Este tipo de narrativa é decorrente das
necessidades urgentes que sobrevieram mediante a sobrenatural expansão das
comunidades cristãs. O grande perigo era de não se preservar a integralidade da
pessoa de Jesus Cristo, mediante a tendência natural de se fixar em pontos
particulares da vida dele. Os estudiosos citam alguns exemplos desta tendência:
- as
comunidades de origem judaico-cristã tinham a tendência de se fixarem
apenas nos ensinos ou palavras de Jesus, conforme sua herança sapiencial
advinda do judaísmo. É possível perceber isto nas coleções de ditos (lógia) que
podem ser percebidas na própria redação evangélica. O grande risco era
minimizar Jesus a um simples mestre de ensinos eternos.
- as comunidades de características gentílicas,
mormente estabelecidas por Paulo e seus companheiros, enfatizando
principalmente o evento da morte e ressurreição de Jesus, tornava periférico os
acontecimentos históricos da vida de Jesus. As correspondências paulinas dão
mínimas referências históricas sobre a vida e ministério de Jesus. O
grande perigo aqui era dar a entender que Jesus irrompeu
divinamente no mundo, podendo confundi-lo com os diversos deuses que compunham
o panteão greco-romano.
-
as comunidades cristãs helenísticas da região da Síria, tinham a tendência de enfatizar os milagres de Jesus e
tornar secundários os demais aspectos citados. O risco aqui era tornar Jesus um
“milagreiro”,[1] fazendo-o
semelhante aos famosos mágicos (Elimas, junto ao governador Sergio Paulo, em
Atos) e curandeiros da antiguidade, que tomado por uma profunda compaixão
diante das misérias humanas, opera curas a favor dos pobres e necessitados.
O evangelista Marcos e seus companheiros inauguram esta
nova forma literária, fazendo uma fusão entre a pessoa histórica de Jesus e o
que ele disse e fez durante seu ministério, dando uma unidade aos diversos
aspectos de sua personalidade: sua sabedoria, sua ações sobrenaturais, sua
defesa da liberdade do ser humano, seu mistério de morte e ressurreição,
culminando com seu convite para que as pessoas viessem a crer nele como o
enviado definitivo de Deus.
Ainda que Marcos seja o protótipo literário, cada
evangelista manifesta sua peculiaridade e enfoque pessoais, conforme as
necessidades de seus leitores alvos.
Utilização
livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre
em Ciências da Religião.
Universidade
Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro
Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/
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Referências Bibliográficas
BETTENCORT,
Estevão. Para Entender os Evangelhos. Rio de Janeiro:
Livraria Agir Editora, 1960.
CARSON,
D. A., MOO, Douglas J. e MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São
Paulo: Vida Nova, 1997.
DOUGLAS,
J. D. O Novo Dicionário da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 1995.
HALE,
Broadus David. Introdução ao estudo do Novo Testamento. Rio de
Janeiro: JUERP, 1983.
MIRANDA,
0. A., Estudos Introdutórios dos Evangelhos Sinóticos, São
Paulo: Cultura Cristã, 1989.
RUSSELL,
N. C. ‑ 0 Novo Testamento Interpretado, ed. 5ª, v. 1. São
Paulo: Milenium, 1985.
TENNEY,
Merrill C. O Novo Testamento – Sua Origem e Análise, 2 ed.
São Paulo: Edições Vida Nova, 1972.
[1] O evangelicalismo
brasileiro atualmente tem caído neste terrível erro de transformar
Jesus em um “milagreiro”, mas com uma intenção ainda mais danosa do
que naqueles primeiros dias, pois a motivação atual é explorar a miséria e
carência das multidões para se construir impérios financeiros, o que os
transporta aos terríveis dias da Idade Média, denominada por alguns
historiadores de Idade das Trevas. Inclusive as chamadas Campanhas, Caravanas
ou Cruzadas Evangelística objetiva popularizar determinados líderes evangélicos
para impulsionar a venda de seus multiformes produtos pessoais e/ou
denominacionais.
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