domingo, 12 de fevereiro de 2023

AMÓS: Uma Voz Profética Contra a Opressão e Escravagismo (2ª Parte)

 Um Forte Rugido Contra a Opressão e a Escravidão

            O profeta abrange em sua pregação toda gama de temas que oprimiam o povo e desfiguravam a Torá. Para Amós era inadmissível que aqueles que foram colocados na posição de orientar e conduzir a nação pudessem ser os deturpadores da justiça e do bem estar dos desvalidos.

            Na primeira série de oráculos (1.3-2.16) o profeta inicia de forma genérica dirigindo contra as nações próximas de Israel, para no final voltar seu arsenal contra a nação nortista. O numero de oito oráculos não é acidental, mas proposital, pois rompe a série de sete (perfeita, completo) e centrando toda a atenção no último oráculo que acaba sendo imperioso. A relevância desta última mensagem fica evidente na sua extensão muito maior do que qualquer uma das anteriores. Entretanto, esta última acusação somente pode ser plenamente compreendida em todas as suas implicações, quando lido à luz de suas predecessoras.

            Diferentemente do que faz nas sete primeiras acusações onde se refere a uma única transgressão, que considera a mais grave, quando chega à acusação contra Israel ele enumera sete pecados (2.6-16), cujo numero representa a totalidade dos pecados.

Ainda que as sentenças sejam de difícil exegese, de maneira que os estudiosos encontram dificuldades em unificar suas opções é preciso salientar o propósito do profeta é antes de qualquer coisa expor o problema da injustiça e as consequências trágicas que elas produzem na vida do que estão à mercê delas. Abaixo enumero os setes pecados, ainda que a proposta deste artigo seja destacar os dois primeiros que se relacionam mais especificamente com a questão da escravidão, ainda que toda sorte de desvios daquilo que é justo torna-se instrumento de opressão, violência e cerceamento dos direitos:

a)    “porque vendem por prata o justo” (v. 6)

b)    “e [vendem] o necessitado [pobre] por um par de sandálias” (v. 6)

c)    “Pisam a cabeça dos necessitados [pobres]” (v. 7)

d)    “negam justiça ao oprimido” (v. 7)

e)    “um homem e seu pai possuem a mesma mulher” (v. 7)

f)     “estendem-se sobre roupas deixadas em fiança diante de qualquer altar” (v. 8)

g)    “bebem vinho de impostos [dinheiro roubado] no templo de seus deuses [no meu próprio templo]” (v. 8)

“porque vendem por prata o justo”

            A questão maior esta no sentido do termo “justo – saddiq” que pode ser interpretado no sentido jurídico “inocente”, de maneira que o profeta acusa os juízes e/ou tribunais de estarem corrompidos. Em troca de benefícios pessoais acabam deixando a lei de lado e favorecendo os ricos em detrimento dos pobres. Ainda que não se refira diretamente à escravidão faz-se referência ao fato de que os pobres são alienados de seus direitos.[1] Todavia, os termos utilizados na frase nem sempre tem a conotação jurídica e não fica evidente que o profeta esteja acusando diretamente os juízes.

            Mais recentemente os interpretes tem optado em relação ao termo “saddiq” por uma ênfase socioeconômica, de maneira que a esfera de ação não é propriamente os tribunais, mas o das relações comerciais. Deste modo, o profeta denuncia os credores que no ímpeto frio e monetarista de recuperarem o dinheiro emprestado ou aplicado não se importam de fazerem dos devedores escravos que serão vendidos como escravos e/ou mercadoria para terem suas dívidas quitadas, tendo em alguns casos famílias inteiras sendo arroladas no processo e vendidas como escravos.

“e [vendem] o necessitado [pobre] por um par de sandálias”

            Ainda que pareça uma mera repetição da frase anterior, há uma diferença em relação ao que sofre a ação escravagista e o motivo. O sujeito “ebyôn” aqui é definido como sendo o “pobre, necessitado de ajuda”. Amós faz diversas referências a este segmento social (2.6; 4.1; 5.12; 8.4,6) sempre em um contexto de opressão e injustiça. Essas pessoas são escravizadas e vendidas pelos credores, oprimidas pelos poderosos, desamparados pelos tribunais, pisoteadas e compradas e/ou trocadas por um par de sandálias. O “ebyôn” é aquele que não tem propriedade, de maneira que no Código da Aliança são contraponto dos proprietários de terras e das colheitas (Ex 23.11). Desta forma, não poderiam contrair grande dívidas, de modo que por causa de uma divida irrisória acabavam sendo arrolados como escravos e vendidos. E de fato, a expressão “um par de sandálias” surge novamente em (8.6) indicando uma quantia monetária exígua. Seja qual for a ótica interpretativa, fica evidente a perversidade do sistema que transforma pessoas em mercadoria, seres humanos em objetos mobiliários.

            Comentado estes dois versos Sincre afirma com muita propriedade:

De fato, o primeiro caso demonstra o desprezo pela pessoa do devedor; o segundo, a desproporção entre a dívida pequena e a escravidão. No primeiro, a escravidão poderia ter justificativa, mas é desumana; no segundo, não há justificativa alguma. (2011, p. 136).

            Estas duas acusações contra qualquer tipo de escravidão coaduna com o que Amós havia dito anteriormente (1.6-9), quando abertamente condena as deportações e o comércio escravagista. Agora apenas reforça especificando a condenação deste ato vil de transformar uma pessoa, quando não uma família inteira, em escravos quer seja pela justificativa de uma grande divida contraída ou pior ainda, mediante uma divida irrisória.

            Diferentemente de do profeta Eliseu que paliativamente optou por estabelecer um fundo financeiro para auxiliar aqueles que corriam o risco de caírem nesta vergonhosa situação escravagista (2 Rs 4.1-7), Amós rejeita aberta e veementemente toda e quaisquer espécie de escravagismo, quer por questões de guerras quer seja por questões econômicas. Ele condena qualquer um que se utiliza de artifícios legais para cercear a liberdade do próximo; ninguém tem o direito moral de transformar o outro em objeto, seja quais forem as razões alegadas. As leis mosaicas foram promulgadas para defesa dos mais fracos (Ex 21.2ss. 7ss.; Dt 15.12ss), mas jamais para serem instrumentos de opressão e escravidão.

            O que mais pesava no coração do profeta era ver que os israelitas, com este comportamento condenável e vil, se assemelhavam cada vez mais com as outras nações vizinhas (1.6), que não possuíam a revelação da vontade de Deus, como eles haviam recebido por meio de Moisés. A Torá (Lei, Instrução, Ensino) de Deus estava sendo diariamente envilecida e distorcida para servir de instrumento de restrição do direito dos mais fracos e desvalidos e sendo colocada a serviço da autossatisfação de uma casta de privilegiados.

            Desta forma, com um estrondoso rugido por justiça, Amós rompe as imensas barreiras culturais e éticas de sua época e antecipa em milhares de anos a verdade imutável de que absolutamente nada, muito menos questões monetárias, pode ser motivo para escravizar uma única pessoa que seja.

            A banalização da vida humana é o câncer que tem destruído os tecidos das sociedades no transcorrer dos séculos e cujo fedor da sua decomposição começa a ser sentindo por nossas narinas. Quanto mais se descaracteriza o ser humano, mais rapidamente a sociedade se decompõe. Enquanto uma pessoa não valer mais do que um par de sandálias (mesmo que sejam as legitimas havaianas), não haverá esperança para a sociedade. A única solução para esta nossa sociedade é uma volta para Deus e Sua vontade expressa nas velhas páginas da Bíblia. E esta volta a Deus é demonstrada na revalorização da vida, no amor que se manifesta no próximo como sendo parte de mim mesmo.

            Da mesma forma como a religião israelita era apenas virtual e voltada para satisfação hedonista de sua casta de lideres religiosos e classes sociais ascendentes, assim também tem sido o evangelicalismo brasileiro. As palavras de Amós se aplicam perfeitamente ao momento atual deste evangelicalismo ritualista e pomposo, com seus templos cada vez mais grandiosos e suntuosos, mas completamente inócuo e estéril no que concerne à justiça e aos direitos dos que sofrem:

Aborreço, desprezo as vossas festas, e as vossas assembleias solenes não me dão nenhum prazer. E, ainda que me ofereçais holocaustos, e ofertas de manjares, não me agradarei delas: nem atentarei para as ofertas pacíficas de vossos animais gordos. Afasta de mim o estrépito dos teus cânticos; porque não ouvirei as melodias dos teus instrumentos. (Am 5:21-23).

            Em aberto contraste com pseuda religiosidade israelita o profeta Amós declara a genuína religião proposta por Deus quando do estabelecimento de Sua Aliança: “Corra, porém o juízo como as águas, e a justiça como o ribeiro impetuoso” (Am 5.24). Templos suntuosos e rituais ortodoxos ou heterodoxos tornam-se inúteis quando não há manifestação concreta de amor ao próximo, de valorização da vida, de dignificação do semelhante.

            Para o profeta Amós nenhuma religião que vive em função de si mesma, que compactua com a exploração do próximo, que menospreza os desvalidos, de nada vale. Para ele, que expressa o pensamento de Deus, de nada vale ser religioso se não se busca a justiça e a equidade.  Amós desnuda a hipocrisia daqueles que vivem apenas da aparência de piedosos, mas que são na verdade lobos ferozes que não tem qualquer remorso em escravizar os desvalidos desses dias. Para tais religiosos as pessoas não valem mais do que um par de sandálias.

            Cultos dominicais, cultos três vezes ao dia, grandes concentrações com milhares de ouvintes, show gospel, venda de milhões de cds, construção de mega  templos, pregadores, missionários, bispos e apóstolos viajando de jatinhos, nada disso tem qualquer valor ou se mantém em pé diante da proposta evangélica de Jesus, que abrindo mão de Sua glória eterna, encarnou, viveu e entregou-se totalmente em favor do ser humano. Que relação há entre o culto e a justiça e o amor ao próximo? Esta questão nos coloca no cerne da religião dos profetas, de Jesus e dos apóstolos.

            Mas assim como reagiu o sacerdote Amazias, instigando o rei Jeroboão II contra o profeta e menosprezando a mensagem de Amós (7.10-12), também hoje as mensagens dos profetas estão sendo menosprezadas, como se não tivessem nada a ver com a nossa realidade. Os evangélicos e suas lideranças eclesiásticas não aceitam qualquer tipo de repreensão e se sentem ultrajados se alguma voz se levantar para corrigi-los. São pessoas totalmente dominadas pela soberba e autossuficiência e mensagem nenhuma haverá de fazê-los mudaram suas condutas antagônicas aos princípios bíblicos.

            Em um último esforço Amós chama atenção dos israelitas para as consequências nefastas sofridas pelos seus vizinhos próximos: Calne, Hamate e Gate (cf. Am 6.2) que foram dizimadas conforme  oráculos anteriores. O mesmo certamente acontecera aos Samaritanos se não fizerem uma conversão para Deus, abandonando o caminho da prepotência e da injustiça.

            Apesar dos israelitas não terem qualquer motivo para se acharem melhores do que seus vizinhos em ruínas, eles fizeram ouvidos ocos à mensagem de Amós e continuaram oprimindo os pobres e humildes (cf. Am 8.4), distorcendo a justiça e tornando a vida dos desfavorecidos mais amarga. O fato de conhecerem a Torá não produziu neles a bondade e a justiça. O rugido profético ecoado por todo Israel a partir de sua capital Samaria foi totalmente ignorado.

            No Brasil as pedras têm clamado em virtude de que os possuidores da mensagem evangélica permanecem calados, buscando tão somente seus próprios interesses mesquinhos. E para maior constrangimento as bandeiras de fraternidade e justiça têm sido hasteadas por pessoas e segmentos que não estão comprometidos com os princípios evangélicos.

            Apenas nos finais da década de 50 e primeiros anos da década de 60 os evangélicos esboçaram tremular com entusiasmo e intrepidez as bandeiras da justiça e fraternidade. Mas diferentemente do profeta Amós que persistiu fielmente em seu ministério profético, os que hastearam estas bandeiras não resistiram às pressões que lhes foram impostas e recolheram seus pendões, para nunca mais tremularem. Quem perdeu não foram apenas os evangélicos, que uma vez mais optaram por permanecerem meros coadjuvantes e não protagonistas das mudanças, mas o próprio país que permanece afundando em um sistema cruel de injustiças e corrupção.  

“porque vendem por prata o justo”

“e [vendem] o necessitado por um par de sandálias”

           

 

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
ivanpgds@gmail.com
Outro Blog
Reflexão Bíblica
http://reflexaobiblica.spaceblog.com.br/

 

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