quarta-feira, 26 de abril de 2017

AMÓS: Uma Voz Profética Contra a Opressão e Escravagismo (1ª Parte)



            Nesses dias em que o Brasil experimenta um evangelicalismo utilitarista, materialista e hedonista, a mensagem dos profetas do Primeiro Testamento permanece totalmente silenciada. Mas esse silêncio não é sem razão, uma vez que a mensagem daqueles profetas condena abertamente a prática religiosa da grande maioria do público evangélico e suas lideranças dos dias atuais.   
             Os profetas cujas mensagens foram registradas nas páginas da primeira parte da Bíblia cristã e que compõe a segunda divisão da Bíblia hebraica, nunca foram personagens bem quistos pela maioria dos seus ouvintes, principalmente de seus líderes políticos e religiosos. Suas mensagens normalmente miravam os pontos nevrálgicos das castas politica e religiosa que ignorando as orientações prescritas na Torá, que deveriam reger o comportamento do povo e seus líderes, se utilizavam de suas funções para oprimirem os menos afortunados e se auto beneficiarem de seus privilégios. Qualquer semelhança com a realidade presente não é mera coincidência.
O Profeta
            Um dos primeiros profetas, cujas mensagens passaram a ser registradas e preservadas,[1] foi o profeta Amós. Um homem comum do campo,[2] comerciante de gado e/ovelhas e de sicômoros[3] (Am 7.14), na pequena cidade de Tecoa,[4] mas que na medida em que observa os desmandos dos poderosos e a crescente exploração dos pobres; a utilização da religião para anestesiar a consciência dos seus ouvintes em relação às exigências de justiça e direito; a manipulação de Deus, tornando-o um mero entregador de bênçãos ou financiador de projetos pessoais de cunho hedonistas; o sincretismo da fé fundamentada na Torá com toda sorte de expressão de fé  produzida às margens dela; diante deste quadro caótico Amós é tomando por um espírito intrépido de zelo pela genuína religião e de paixão pelos explorados e injustiçados. Amós tem duas alternativas: cultivar uma indignação passiva e continuar cuidado somente de sua vida ou se dispor a proclamar com ousadia e intrepidez aquilo que havia aprendido em seus estudos da Torá que era a expressão da vontade de Deus para a vida da nação.
            Amós não foi um místico milagreiro que surgiu misteriosamente e começou a assombrar tudo e todos, mas foi um homem de seu tempo, que tinha lugar e endereço, que exercia suas profissões para sustento dele e sua família. Mas também era um homem que não se imiscuía das grandes questões sociais hodierna, que se inquietava e procurava a raiz das causas geradoras de desigualdade e opressão. Todavia, ele vai muito além, pois sua perspectiva extrapola as conjecturas sociológicas e penetra nos aspectos teológicos, percebendo as ações de Deus na história de seu povo e da própria humanidade. A sua fé e sua mensagem não estavam fundamentada em um “deus” mórbido ou alienado, mas em um Deus que desde sempre interagiu com a raça humana e desde a gêneses de sua nação interatuou na história deles.
A Época
            Na abertura de seu escrito temos a datação de sua atuação profética: “Palavras que Amós, criador de ovelhas em Tecoa, recebeu em visões, a respeito de Israel, dois anos antes do terremoto. Nesse tempo, Uzias era rei de Judá e Jeroboão, filho de Jeoás, era rei de Israel”. É conhecido que Uzias reinou em Judá a partir de 787/6 e viveu até 746 a.C. Mas o alvo primário da mensagem de Amós foi Jeroboão II (Am 7.10-17), que reinou no período de 787/6 a 747/6 a.C., mais precisamente, conforme Nelson Kirst “é de se supor que Amós tenha atuado antes do último decênio do rei Jeroboão II” (1981, p. 11 ). Desta forma, a época mais provável para a atuação de Amós situa-se por volta de 760 a.C. Corrobora esta data a informação de que pregou a mensagem “dois anos antes do terremoto”, fato que, segundo algumas descobertas arqueológicas, ocorreu por volta de 760 a.C. Partindo destas premissas Amós inaugura a profecia literária do Primeiro Testamento, de modo que ele é cronologicamente o primeiro dos profetas clássicos (CRABTREE, p.9.).
            Este período histórico é o apogeu político-econômico do Reino do Norte (Israel), mas também marca o princípio do fim trágico desta nação que não será restaurada. Tendo alcançado uma estabilidade interna com a manutenção da dinastia de Jeú,[5] a subida ao trono de Jeroboão II, que permaneceu governando por quarenta e um anos (2 Rs 14.23)[6] o país, demarca o inicio de um ciclo virtual de prosperidade. Corrobora para isso o fato de que as nações vizinhas, bem como alguns impérios adversários (Assíria e Egito) estão fragilizados por questões internas ou envolvidos em outras frentes de batalhas. A Síria havia sido conquistada pelos Assírios, que por sua vez estava envolto em lutas internas e “... chegara ao ponto mais baixo, de forma que não podia intervir em assuntos internacionais” (MERRILL, 2001, p. 397).
            Jeroboão II era um bom estrategista e com várias vitórias bélicas expande a fronteira norte de Israel até os limites alcançados nos dias de Salomão (2Rs 14.23-29). Domina a sempre rival Damasco e vence a Síria, inclusive conquistando as regiões da Tansjordânia até Moab, passando a controlar as fundamentais rotas comerciais tão almejadas pelos grandes Impérios. Estabelece um forte comércio com os fenícios, que dominava o comercio marítimo daqueles dias, passando a importa toda sorte de artigos de luxo para Israel. Os arqueólogos encontraram vestígios dos esplêndidos edifícios, aumento do agronegócio, expansão da indústria têxtil e de tinturaria, comprovando a riqueza alcançada pela capital Samaria, bem como de diversas outras cidades, criando uma forte classe rica e abastada disposta a toda sorte de ostentação (SINCRE, 2011, pp. 112-113; BRIGHT, 2004, pp.267-269)[7] e até suas camas “eram decorados com engastes de mármores, com representações de lírios, veados, leões, esfinges e figuras humanas aladas. Foi um período de vida ociosa, riqueza, arte e lassidão moral.” (Champlin, 2001, p. 3505)
O exército é equipado e ampliado, bem como as fortificações nas fronteiras, produzindo uma sensação de segurança e paz.  
            Mas tudo tem um preço! Um fosso cada vez maior e mais profundo se abre entre os que tinham e os que nada possuíam e até o pouco que conseguiam obter pela força de seu trabalho com suor e lágrimas, lhes era arrancado por aqueles que já tinham em abundância.
            Joroboão II repetia a fórmula utilizada por Salomão sobrecarregando a população com toda sorte de tributos, sobre a mão de obra, produtos da terra ou impondo jornadas de trabalho excessivas, a corveia,[8] pendendo para os poderosos a frágil balança da equidade social. A massa de pobres e desamparados cresce vertiginosamente e sem opção acabam criando vilas miseráveis fora dos muros da cidade, onde ficavam privados de qualquer beneficio e segurança.
            O processo judicial estava totalmente corrompido. Os que tinham a incumbência de aplicar as leis eram os anciãos, que por sua vez eram ligados às famílias economicamente prosperas que detinham as terras produtivas e formavam a classe aristocrática. Desta forma, todas as causas eram sempre favoráveis às famílias e aos próprios juízes. Além de perderem tudo que possuíam e ficarem totalmente desamparados os trabalhares e seus familiares eram reduzidos à escravidão para saldarem suas dividas impagáveis.
Amalgamado com a classe política e aristocrática estão os detentores do monopólio religioso, quer seja a classe sacerdotal ou os profetas profissionais que viviam das benemerências do rei e dos ricos. Os santuários estabelecidos em Betel ostentavam liturgias grandiosas e opulentas, voltadas para agradar os poderosos, mas alienando os pobres e desvalidos. As mensagens dos profetas profissionais eram instrumentos ideológicos utilizados para legitimar o sistema de exploração, corrupção e injustiça que predominava.
É neste abominável contexto que se ouve a voz semelhante ao rugido do leão das estepes do jovem profeta Amós. Ele não poupa ninguém, quer seja o rei, a corte, os poderosos e os eclesiásticos. Desnuda todos eles das capas da hipocrisia politica, social e religiosa mediante a realidade da vontade de Deus estabelecida no pacto da Aliança que deveriam reger todos os relacionamentos sociais, econômicos, políticos e religiosos da nação. E não se escusa em anunciar a proximidade do juízo sobre o Reino de Israel.
A reação por parte dos seus ouvintes é imediato. Diante da aparente indiferença do rei e sua corte, coube a Amazias, sacerdote de Betel, se contrapor à pregação de Amós. O líder religioso acusa Amós de agitador e de pregar por dinheiro, expulsando-o do templo.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
ivanpgds@gmail.com
Outro Blog
Reflexão Bíblica
http://reflexaobiblica.spaceblog.com.br/

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Referências Bibliográficas
BRIGHT, J. História de Israel. São Paulo: Paulus, 7ª ed., 2004.
CHAMPLIN, Russel Norman. O Antigo Testamento interpretado versículo por versículo. 2. ed. São Paulo: Hagnos, 2001.
FOHRER, Georg. História da religião de Israel. [Tradução: Josué Xavier; revisão: João Bosco de Lavor Medeiros]. São Paulo: Edições Paulinas, 1982.
HASEL, Gerhard F. Teologia do Antigo e do Novo Testamento: questões básicas no debate atual. [Tradução do AT: Luís M. Sander, trad. do NT: Jussara Marindir P. S. Arias. São Paulo: Ed. Academia Cristã Ltda, 2007.
HUBBARD, D. Comentário bíblico de Joel e Amós. São Paulo: Vida Nova, 1995.
KIRST, Nelson. Amós: textos selecionados. São Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1981.
LASOR, William. Introdução ao Antigo Testamento. [Tradução: Lucy Yamakamí]. São Paulo: Vida Nova, 1999.
MERRILL, Eugene. História de Israel no Antigo Testamento. [Tradução: Romell S. Carneiro]. Rio de Janeiro: CPAD, 2001.
PAPE, Dionísio. Justiça e esperança para hoje: mensagem dos profetas menores. São Paulo: ABU Editora, 2ª ed., 1983.
PRADO, José Luiz Gonzaga do. O pastor de Técua: vida do profeta Amós. São Paulo: Paulinas, 1987.
ROWLEY, Harold Henry. A fé em Israel. [Tradução: Alexandre Macintyrel]. São Paulo: Editora Teológica, 2003.
SINCRE, José Luís. Com os pobres da terra: a justiça social nos profetas de Israel.[Tradução: Carlos Feliciano da Silveira]. Santo André, São Paulo: Ed. Academia Cristã Ltda; Paulus Editora, 2011.
VAUX, R. de. Instituições de Israel no Antigo Testamento. [Tradução: Daniel de Oliveira]. São Paulo: Editora Teológica, 2003



[1] Aqueles que exerceram o ofício profético anteriormente são denominados de profetas “orais” porque suas mensagens não foram registradas. A partir de Amós os profetas são chamados de “literários” ou “escritores” porque os livros trazem seus nomes ou estão diretamente ligados a eles. Mas esta classificação demonstra ser limitada, como bem demonstra LaSor: “Por um lado, um livro (ou dois) leva o nome de Samuel. (Não vem ao caso se ele escreveu ou não.) Por outro lado, não se deve pressupor que os profetas ‘escritores’ puseram-se a escrever livros de profecia. Os indícios no livro que leva o nome de Jeremias indicam que ele era principalmente um profeta ‘oral’ e que o registro escrito de sua profecia foi em grande parte trabalho de Baruque (Jr.36:4,32). Fica claro pelo conteúdo deles que a maior parte dos livros proféticos foi primeiro mensagem oral, escrita mais tarde, talvez pelo próprio profeta, talvez por seus discípulos”. (LASOR, 1999, p. 243-244)
[2] Conforme José Luís Sicre a Misná (comentário judaico) e diversos estudiosos recentes como NEHER, KAPELRUD, MONLOUBOU, RANDELLINI, WOLFF, RUDOLPH, VESCO, SOGGIN, detinha um status oficial de alto funcionário da corte de Ozias.
[3] Este tipo de comércio exigiria que Amós fizesse periódicas viagens para a região norte, na Galiléia, e ainda para as encostas junto à planície que perfazem as regiões da Filistéia (HUBBARD, 1995, p. 176).
[4] Um povoado ao sul da Palestina que ficava a 20 km de Jerusalém e cerca de 8 km ao sul de Belém, antiga Bethlehem. Estava localizada na encosta de um monte (920 metros) na entrada de um deserto que tem o mesmo nome (II Cr 20.20) e se estende para oriente, próximo do Mar Morto. No século X (a.C.) foi incluída pelo rei Roboão entre as quinze cidades transformadas em fortalezas para defesa do reino do Sul, Judá (II Cr 11.5-10).
[5] A politica do Reino do Norte (Israel) foi conduzida durante mais de um século pela dinastia de Jeú, que assumiu o trono após assassinar todos os descendentes de Acab e Jezabel, de maneira que consolidou a sua autoridade em meio a uma dolorosa e cruel guerra civil. Tudo isso sob a supervisão dos profetas Elias e Eliseu, que haviam prognosticado a erradicação da dinastia de Acab por causa de sua idolatria e abandono da Torá.
[6] Há uma discrepância de doze anos entre a morte de Jeoás, pai, e o inicio do reinado de Jeroboão, filho. A explicação mais provável é que nesse período de doze anos houve uma co-regencia que foi acoplado perfazendo um total de quarenta e um anos de reinado. Esta pratica foi utilizada no reino de Judá e era comum nos registros do Oriente Médio (cf. MERRILL, 2001, p. 395-396).
[7] É importante realçar que em nenhum momento Amós condena a prosperidade material dos cidadãos israelitas, mas o que é condenável é a atitude dos ricos em relação aos pobres e necessitados. Uma pessoa não é mais pecador por morar num palácio e nem menos pecador por morar em uma favela.
[8] "A corvéia era a obrigação que o servo tinha de trabalhar de graça alguns dias por semana no manso senhorial, ou seja, no cultivo das terras reservadas ao senhor."


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