sábado, 29 de setembro de 2018

Paulo e Sua Estratégia Missionária



Introdução
Paulo, chamado por Deus para ser o apóstolo aos gentios ou povos não judeus, é o que chamaríamos de “ponto de referência por excelência” da atividade missionária registrada nas páginas do Segundo Testamento.
Sabemos que ele foi uma pessoa de atividade intensa e sempre motivada, tanto antes como depois de sua conversão a caminho de Damasco (Atos 9). Suas atividades missionárias contribuíram de forma inigualável para a expansão da Igreja para além das fronteiras limitadas do judaísmo em prol do mundo gentílico. Deste modo, na história da Igreja, ele tornou-se um modelo preeminente de missionário cristão.
Uma questão surge: “Paulo elaborou uma estratégia missionária?” A dificuldade em respondermos esta questão é o fato de que vivemos em um tempo antropocêntrico. Pensamos que nada pode ser realizado, até mesmo na obra de Deus, sem ter os comitês, oficinas e conferências. Se olharmos para as atividades missionárias de Paulo como algo deliberadamente formulado e devidamente executado em todos os seus mínimos detalhes sociológicos, antropológicos e logísticos, então somos obrigados a concluir que Paulo não estabeleceu estratégia alguma.
Mas se por outro lado, entendermos estratégia como um meio flexível de procedimentos, desenvolvidos sob a orientação soberana do Espírito Santo, então podemos afirmar com toda certeza de que Paulo tinha uma estratégia missionária. E quando examinamos com acuidade os relatos nos deixado por Lucas sobre as viagens missionárias efetuadas pelo apóstolo dos gentios, podemos perceber vários aspectos desta estratégia.
Concentrou Esforços em Quatro Províncias: Quando examinamos Romanos (15.18,19) podemos notar dois elementos que resumem o trabalho missionário de Paulo. Primeiro, ele direcionou seu esforço particularmente ao mundo não judaico “para conduzir os gentios ao conhecimento” (v 18). Segundo, ele limitou seu trabalho principalmente à área geográfica do mundo Romano onde outros ainda não havia atuado. Ele mesmo declara que “desde Jerusalém e circunvizinhanças até ao Ilírico, tenho divulgado o evangelho de Cristo” (v 19). Sua missão se concentra nas quatro províncias mais populosas e prospera – Galácia, Ásia, Macedônia e Acaia. E tanto Paulo quanto Lucas dá mais ênfase às províncias em vez das cidades (Atos 9.31; 15.23; 16.6,9; 1Cor 9.2). 
Escolha Deliberada por Grandes Cidades como Centros Estratégicos: Paulo optou pelos centros urbanos para realizar seu trabalho missionário.  Em sua óptica Paulo não se via pregando em todos os lugares, o que seria humana impossível, mas estabelecendo Igrejas em lugares estratégicos, de modo que o Evangelho se espalharia pelas cidades e vilarejos ao derredor. As cidades onde estabeleceu comunidades cristãs tinham status na administração Romana, se destacava pela cultura Grega, tinha forte influência Judaica ou tinha importância econômica. Isto não significa que Paulo menosprezou os centros menores ou as regiões rurais. Sua intenção era que uma vez estabelecida uma Comunidade forte, ela pudesse constituir-se em centro luminoso espargindo sua luz ao derredor (Atos 19.10). As próprias comunidades estabelecidas na capital romana, da qual ele não participou em suas formações, tornam-se pontes indispensáveis para as pretensões missionárias de Paulo que desejava deixar o Oriente e começar trabalho no Oeste, mais especificamente na Espanha (Rom 15.23,24).
Iniciava sua Pregação nas Sinagogas: Paulo seguia o princípio de "primeiro ao Judeu" (Rom. 16.1), assim sua estratégia era alcançar as pessoas da Aliança que frequentavam a sinagoga (Atos 13.5,14; 14.1; 17.1 2, 10; 18.4, 19) Havia um costume de se convidar um rabino que estivesse de visita para dar uma palavra de exortação (Atos 13.15), assim Paulo aproveitava essa cortesia e a plateia esclarecida. Nas Sinagogas judaicas sempre poderia ser encontrado três grupos distintos: Judeus, prosélitos e gentios tementes a Deus. Aqui Paulo sentia-se em casa, pois seus ouvintes tinham um conhecimento do Deus verdadeiro, um conhecimento do Primeiro Testamento e uma expectativa da "vinda do Messias”. Somente quando era expulso da sinagoga ele se estabelecia em outro lugar.
Concentrava-se Naqueles Grupos Mais Acessíveis: Paulo tinha como seu maior objetivo e responsabilidade anunciar o Evangelho e contribuir com a expansão do Reino de Deus. Ele acreditava que todo grupo étnico tinha o direito de escutar o Evangelho e ele incansavelmente pregava a eles, mas se determinados ouvintes recusava a mensagem e perseguia o mensageiro, entendia que não haveria razão para continuar a lhes pregar a mensagem. Ele entendia que deveria concentrar seus esforços naqueles grupos que respondiam à sua pregação. Paulo experimenta isto com os Gentios devotos que se constituíram na maioria que respondiam positivamente à sua mensagem evangélica (Atos 13.43; 14.1; 16.14; 17.4; 18.7), e os Judeus que se opuseram à sua mensagem (Atos 13.45,50; 14.2,19; 17.5; 18.12; 21.27; 23.12). Embora ele os colocasse como prioritários (Atos 13.46), e os amasse profundamente (Rm 9.2,3), ele não podia comprometer a expansão do Evangelho. Ele tinha consciência de que seu ministério apostólico requeria fidelidade (1Co 4.2).   
Mantinha Contato com a Igreja Base: Embora Paulo fosse chamado diretamente por Deus para ser um missionário (Atos 13.2; Atos 9.15; Atos 13.47), ele é confirmado (Atos 13.2,3) e enviado por uma igreja local (Atos 13.3 4). Paulo entendia que o missionário deveria ter uma base forte e ao fim de cada viagem ele sempre voltava a Antioquia para prestar seus relatórios (Atos 14.26 28; 18.22, 23). Para ele a conexão entre as orações da igreja e o sucesso das missões era necessidade vital. Paulo gastava tempo significativo nestas visitas de volta, pois sabia da importância disto. Quando ele estava planejando prosseguir até a Espanha para anunciar lá o evangelho, escreveu uma carta e enviou aos crentes da cidade de Roma para pedir-lhes o apoio, ou seja, serem sua nova base (Rom. 15.15 24).   
Estabelecia Igrejas Organizadas: A meta final de Paulo era estabelecer igrejas locais, fortes; congregações que poderiam se desenvolver e dar continuidade a tarefa de pregar o Evangelho (1 Cor. 1.2,7; 1 Tes. 1.1,8). Ele ficava, e não sendo possível deixava um de seus companheiros, o quanto podia e quando líderes locais maduros tinham sido treinados, prosseguia adiante, deixando os líderes locais com a responsabilidade de pastorearem a comunidade. Estas igrejas plantadas se multiplicavam e formavam novas comunidades e assim o Evangelho se expandia mais rapidamente.   
Trabalhava Sempre em Equipe: Paulo jamais teve pretensões de se constituir em uma espécie de herói missionário, assim como seu modelo maior, Jesus Cristo, ele detestava a solidão, a não ser em períodos de oração.  Em todas as suas viagens missionárias teve companheiros: Barnabé e João Marcos na primeira viagem (Atos 12.25; Atos 13.13), e Silas, depois Lucas e Timóteo na segunda (Atos 15.40). Para ele a pregação do Evangelho exigia um esforço conjugado (1Ts 1.1). Paulo sempre se associou ao maior numero de pessoas possíveis, basta observarmos quantos nomes aparece em suas epístolas (2Co 1.19; 8.23; Cl 4.14; Atos 19.22; Cl 4.7,10; Atos 20.4; Fp. 2.20 22,25; Cl 2.7; Atos 18.2,3; Rm 16). Como vimos acima, Paulo deseja se associar aos crentes em Roma para poder alcançar a Espanha (Rm. 1.11,12) ele sabia que sozinho não conseguiria fazer quase nada, mas juntos os resultados seria incalculavelmente maiores.    
Comunicou uma Mensagem Imutável: Paulo sabia que era um mensageiro escolhido para anunciar uma mensagem de Deus que haveria de afetar toda humanidade (2Co 5.19). A mensagem não era produzida por ele mesmo (1Ts 2.13). Ele foi chamado e enviado (1Co 15.14), e a sua própria vida havia sido transformada por esta mensagem que agora pregava com toda a intrepidez e confiança (Atos 9.20,29). A proclamação de Cristo Jesus é o cerne da tarefa missionária (Rm 10.14 15) e Paulo comunicava Cristo Jesus através de seu estilo de vida, trabalho e atividades. Compare a comunicação de Paulo para com grupos diferentes. Quando pregava aos Judeus, ele se utilizava amplamente das Sagradas Escrituras (AT). Ele começava com seus primórdios históricos e rapidamente continuava até chegar à vinda de Cristo, o Messias prometido (Atos 13.16 41; Atos 17.2,3). Aos Gentios, Paulo apelava para a obra da criação (Atos 14.14 18), e lições de objeto circunstanciais utilizadas para efetuar uma melhor compreensão do Evangelho (Atos 17.16 23). Note também o testemunho de Paulo em seu discurso de despedida aos anciões de Éfeso (Atos 20.17 38) como ele foi inflexível na declaração de Cristo como o único Salvador (vs. 20,21,26,27) e como eles deveriam viver o evangelho (vs. 18,19, 24,31,33,34,35).
            Evidente que se poderia escrever um capítulo longo sobre cada um dos pontos acima mencionados, mas o propósito deste artigo é realçar a importância de se ter uma estratégia na realização da propagação do Evangelho, mas ao mesmo tempo, cuidarmos para não cairmos na armadilha institucional de gastar muito mais tempo e recursos no meio do que nos fins. Muitas vezes se pensa demasiadamente nas estratégias e menos na ação soberana do Espírito Santo. Paulo nunca abriu mão de pensar inteligentemente suas ações missionárias, mas jamais deixou de ser orientado e sustentado pelo poder do Espírito Santo.
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/


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Paulo: Sua Conversão
Paulo: Uma Nova Perspectiva
NT – Epístolas Paulinas
Companheiros de Paulo – Barnabé
NT - O Mundo Greco-Romano
ATOS – Introdução
ATOS - Estrutura do Livro

 Referências Bibliográficas

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quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Hermenêutica: Síntese dos Métodos de Interpretação



            Quando lemos qualquer texto literário é preciso fazer algum tipo de interpretação daquilo que o autor ou autores desejaram expressar. A forma com que interpretamos o texto pode nos ajudar ou atrapalhar a compreender o sentido original ou primário com e para que o texto foi escrito. A Bíblia é na verdade uma coleção e/ou pequena biblioteca de textos, escritos por uma diversidade de autores em épocas distintas. Portanto, quando lemos um destes textos é preciso resgatar o propósito original com que e para que ele tenha sido escrito.
            A hermenêutica[1] disponibiliza as ferramentas necessárias para que o leitor possa interpretar um determinado texto. Evidentemente que ao longo dos séculos foram elaborados diversos tipos de hermenêuticas com o objetivo de aperfeiçoar os métodos interpretativos. Alguns deles são antagônicos em relação à interpretação correta dos textos bíblicos, outros são limitados e uns poucos oferecem boas ferramentas para uma interpretação saudável das literaturas bíblicas. Lembrando que nenhuma destas hermenêuticas é perfeita, pois foram elaboradas por pessoas humanas limitadas, por isso como cristão dependemos em todo o tempo da capacitação e iluminação do Espírito Santo para que possamos extrair a genuína mensagem dos textos que compõem nossa bíblia.
            O calcanhar de Aquiles de qualquer método hermenêutico que se aproxima dos textos bíblicos são os preconceitos e pressupostos de seus elaboradores. Quando o método está contaminado por uma hostilidade ou rejeição aberta da inspiração bíblica, toda aquela hermenêutica tornar-se-á prejudicada em suas premissas e certamente em suas conclusões. Por outro lado, uma interpretação supersticiosa e centrada na letra do texto, acaba por induzir tal método ao erro em seu esforço de buscar o sentido real da mensagem ali contida.
Hermenêutica Judaica
            Os judeus foram os primeiros a terem contato com os textos bíblicos, portanto, foram os primeiros a estabelecerem métodos para seu estudo. Muitos destes métodos extrapolaram os limites dos textos e adentraram a caminhos tortuosos e absurdos de interpretações fantasiosas e fictícias. Alguns intérpretes acabaram reduzindo as letras a um determinado valor numérico, de maneira que uma palavra ou expressão cuja somatória numérica de suas letras seja igual passaram a ter um mesmo significado, mesmo que em seu contexto isso seja completamente incoerente. Tal método acaba por desfigurar completamente o sentido do texto bíblico e sua mensagem fica completamente prejudicada. Evidente que os rabinos judaicos desejavam demonstrar as múltiplas excelências e sabedoria de suas literaturas sagradas, mas a utilização deste método “numérico” acabou por prejudicar o estudo desta literatura contida no Primeiro Testamento. Mas de uma forma muito cuidadosa e ponderada é possível utilizar-se de alguns aspectos da antiga exegese judaica, no que concerne a elucidação de certas doutrinas e costumes e com muita reserva no que se refere a critica do texto hebraico.
Hermenêutica Alegórica
            Este método foi muito popular entre as escolas judaicas de Alexandria. Aqui temos uma alquimia entre os métodos gregos de interpretação[2] e a interpretação dos textos bíblicos. Para as mentes filosóficas gregas muitas figuras de linguagem como teofanias e antropomorfismos, encontradas no Primeiro Testamento, eram rejeitadas como fantasiosas, de maneira que era preciso descobrir por “trás” do texto, seu real sentido ou mensagem. Desta forma, os textos bíblicos judaicos foram interpretados como se estudavam os textos da mitologia grega. Um dos mais proeminentes e que popularizou este método alegórico judaico foi Filo (Fílon) de Alexandria (20 AC – 42 DC). Para ele todos os textos bíblicos eram enigmáticos e se deveria buscar incansavelmente seu sentido moral e religioso. Um modelo de sua hermenêutica está em sua intepretação do texto de Gênesis 2.10-14, que menciona os rios que nascem a partir do Éden. Para Filo o escritor Moises deseja ensinar questões morais, de maneira que cada rio representa uma característica especifica: prudência, temperança, coragem e justiça e o rio principal de onde emanam os demais é a sabedoria de Deus.
            A partir das escolas judaicas alexandrinas este método alegórico foi adotado pelos primeiros mestres cristãos pós-apostólicos. Um de seus primeiros e mais proeminentes representantes foi Clemente de Alexandria (150-215 DC). Seus comentários bíblicos são amplamente alegorizados. Em relação aos animais impuros segundo a Lei de Moisés – o porco, o falcão, a águia e o corvo, para Clemente cada um deles representa características morais, por exemplo: o porco é o emblema da cobiça voluptuosa. Desta forma, para o método alegórico cada detalhe, ainda que insignificante ou supérfluo do texto, torna-se extremamente relevante e determinam seu sentindo e mensagem.
            Ainda que Clemente de Alexandria e muitos de seus companheiros posteriores tivessem uma profunda reverência para com as Escrituras e desejassem extrair delas o máximo de sabedoria, o fato de eles desconsiderarem o significado comum das palavras e darem vasão à imaginação interpretativa acabou por deturpar o sentido original do texto e sua mensagem. O interprete tomou o lugar do autor/escritor do texto bíblico e passou a determinar o que significa e qual a mensagem contida em determinada passagem, não importando o quão extravagante, fantasiosa ou absurda seja. Este método foi popular até a Idade Média e grandes comentaristas bíblicos como Agostinho se utilizaram deles. Isso não significa que tudo que eles produziram deve ser rejeitado ou jogado no lixo, mas apenas que devem ser lidos com acuidade. Resolve-se com muita simplicidade a presença no cânon do livro de Cantares, onde a jovem é a Igreja e o jovem é Cristo.
Hermenêutica Mística
            Um método muito semelhante ao Alegórico é a hermenêutica Mística. O objetivo é se buscar sempre o sentido espiritual do texto ou passagem. Desta forma cada palavra ou expressão bíblica deve ser perscrutada até se revelar seu sentido mais profundo. O próprio Clemente de Alexandria, revelando a confluência dos dois métodos, interpretava que as leis dadas através de Moisés continham um significado quádruplo: o natural, o místico, o moral e o profético. Já Orígenes (185-254 DC) fazendo uma analogia com a natureza humana que segundo ele é composta de corpo (σωματικός), alma (ψυχικός) e espírito (πνευματικός), afirmava que as Escrituras bíblicas continham um sentido triplo correspondente: alegórico, tropológico (moral) e anagógico[3] (místico/espiritual). No século IX Rabano Mauro (776-856 DC) propôs um método hermenêutico quádruplo: histórico, alegórico, analógico e tropológico, a diferença com a proposta de Orígenes é a introdução do aspecto histórico. Em sua opinião o texto bíblico para ser plenamente compreendido é preciso uma abordagem de acordo com os quatro métodos juntos, pois cada um deles oferece apenas uma interpretação fracionária.
            Outras variações desta hermenêutica mística foram surgindo ao longo dos séculos. Emmanuel Swedenborg (1688-1772 DC) manteve o sentido triplo com sua “Ciência das Correspondências[4], fazendo analogia dos três céus: o baixo, o meio e o superior – o natural ou literal, o espiritual e o celestial. Para ele mais relevante do que as regras gramaticais e históricas o que realmente importa é o testemunho interior do Espírito que é permanente e infalível. Essa busca pelo celestial e testemunho interior influenciou diversos movimentos posteriores como o pietista, de acordo com o qual o intérprete afirma ser guiado por uma “luz interior”, recebida como “uma unção do Espírito Santo” (1 João 2.20). As regras da gramática e o significado comum e o uso das palavras são descartados, e a Luz interna do Espírito é considerada a Reveladora permanente e infalível. No período final os pietistas da Alemanha, e os Quacres da Inglaterra e da América foram especialmente dados a essa forma de interpretar os textos bíblicos. Mas essa iluminação/luz interior torna-se falível na medida em que os interpretes bíblicos destes movimentos compreendem um mesmo texto de formas distintas e até irreconciliáveis. O grande perigo é que o sentido do texto fica refém do próprio interprete e suas emoções de maneira que sua mensagem torna-se subjetiva e em alguns casos até mesmo fantasiosa.
Métodos Racionalistas
            Mas em um movimento pendular surge com muita força o movimento racionalista, que vai se constituir em contraponto aos movimentos anteriormente mencionados. J. S. Semler (1725-1791) é o formulador do método conhecido por “Método do Acomodamento” e também é considerado o pai do Racionalismo Cristão. Ele conclui que os livros que compõe a cânon bíblico eram historicamente condicionados, de maneira que seus escritores incorreram em equívocos e erros, de maneira que cabe ao interprete (hermeneuta) identificar esses erros e corrigi-los. Em sua proposta ele afirma que os ensinamentos bíblicos sobre milagres, o sacrifício vicário e expiatório, a ressurreição, o julgamento eterno e a existência de anjos e demônios, devem ser considerados como acomodação de ideias supersticiosas, preocupações e ignorância do tempo em que os textos foram escritos. Ele ensinava que o Primeiro Testamento foi escrito para os judeus dentro de sua cultura histórica, cuja mentalidade estreita e cheia de erros não deve ser adotada como regra geral de fé e prática. Os evangelistas também estavam saturados de suas respectivas mentalidades culturais: Mateus escreve para os judeus que estavam fora da Palestina; João escreve para cristãos inseridos, em maior ou menor grau, na cultura grega. O apóstolo Paulo inicialmente esforça-se para atrair os judeus para o cristianismo, mas, percebendo que não alcançaria sucesso, volta-se para os gentios e alcançou grande distinção em apresentar o cristianismo como religião para todos os homens. Desta forma ele conclui que os diferentes livros que compõem as Escrituras serviram para suas respectivas épocas e públicos, de maneira que muitas das suas declarações podem, sem maiores formalidades, serem descartadas. Fica evidente que ele não cria na inspiração e na infalibilidade dos textos bíblicos. Seu método de interpretação necessariamente impugna a veracidade e a honra dos escritores bíblicos e do próprio Filho de Deus, pois se tornam coniventes com os padrões e a ignorância dos homens, e transforma todos aqueles que crerem na Bíblia em pessoas ignorantes que compactuam passiva ou ativamente com a mentira e o erro. Uma vez aceito tais pressupostos nossa pregação e vida cristã ficam literalmente sem fundamentação. Semler era obcecado pela ideia de que religião e teologia, assim como piedade pessoal e ensino público devem ser tratadas como coisas distintas. Infelizmente, na pratica evangelical brasileira atual podemos perceber essas dicotomias, não apenas nos movimentos neopentecostais, mas entre os chamados evangélicos históricos.
            O eminente filósofo Immanuel Kant (1724-1804) elaborou um método denominado de “Método Moral”. Ele aplica os princípios da razão pura e idealismo de seu sistema metafísico para o campo da hermenêutica bíblica. Segundo ele apesar da Escritura ser decorrente da inspiração divina, seu valor prático está em decorrência de sua capacidade em melhorar a moral humana. Seguindo este critério qualquer passagem bíblica da qual não se possa extrair uma lição moral útil, segundo a razão prática, tem-se a liberdade para suplanta-las ou lhes conferir um significado compatível com a religião da razão. Para Kant o único valor real das Escrituras são a de ilustrar e confirmar a religião da razão – ele faz com que as Escrituras se curvem diante da razão humana.
Na medida em que esses métodos até aqui mencionados, abandonam completamente o sentido gramatical e histórico da Bíblia, não existe qualquer regra confiável ou auto consistente. Tanto os métodos místicos e alegóricos, que deixa tudo sujeito à fé ou imaginação pessoal do intérprete, quanto esses métodos racionalistas, estabelecem em última instância como validador das Escrituras, o próprio interprete.
Seguindo essa metodologia racionalista encontramos o chamado “Método Naturalista”, que sem duvida dos até aqui mencionados é com certeza o a mais radical. Um modelo explícito desta hermenêutica pode ser encontrado no Comentário do Novo Testamento,[5] produzido por Heinrich Eberhard Gottlob Paulus (1761-1811), professor de Heidelberg, onde ele defende que o hermeneuta bíblico deve fazer clara distinção entre o que são fatos e o que são meras opiniões.  Declara aceitar a verdade histórica das narrativas evangélicas, todavia ensina que a maneira de explica-las é uma questão de opinião. Rejeita qualquer ação sobrenatural nos assuntos humanos e explica os milagres de Jesus como sendo atos de bondade, como demonstração de perícia médica ou como exemplos da sagacidade e tato pessoais, registradas na narrativa de uma forma característica da época e de opiniões dos diferentes escritores evangélicos. As narrativas de Jesus andando sobre as águas na verdade era Jesus andando na praia; o barco estava o tempo todo perto da costa, que quando Pedro pulou na água, Jesus foi capaz de alcança-lo e salvá-lo da praia. Mas a excitação foi tão grande e tão profunda a impressão causada nos discípulos, que para eles parecia que Jesus, milagrosamente, andou sobre as águas e foi em seu auxílio. E assim ele vai explicando cada um dos milagres dos evangelhos, como sendo apenas ações naturais que foram usadas ou interpretadas como sendo ações sobrenaturais.
Evidente que este tipo de interpretação das narrativas evangélicas contraria a mais simples noção da linguagem humana e transformam os evangelistas em motivo de total descredito e todos os que têm crido neles como pessoas destituídas de qualquer capacidade de pensar inteligentemente.
Na sequencia temos David Federico Strauss (1808-1874) exegeta e teólogo alemão que através de sua obra “A vida de Jesus analisada criticamente”,[6] cuja primeira edição foi 1835 impactou as academias cristãs. Seu método foi denominado de “Mítico” e foi fundamentado na doutrina de Hegel (panteísta) em que a ideia de Deus e do absoluto não surge ou se revela ao individuo sobrenaturalmente, mas está desenvolvida na consciência da humanidade. Desta forma, para Strauss, a ideia messiânica se desenvolveu gradativamente na consciência dos judeus de maneira que quando Jesus apareceu a expectativa estava maturada. Jesus, um judeu de notável beleza e força de caráter, que por sua excelência e conduta sábia, causou uma forte impressão em seus amigos e parentes. Para Strauss a ressurreição de Jesus foi um processo inconsciente de imaginação mítica dos primeiros seguidores de Jesus, formado a partir de lendas messiânicas do Primeiro Testamento. Nesta esteira ele vai interpretar todos os relatos evangélicos como sendo uma apropriação do conhecimento geral oferecido nos escritos da bíblia hebraica, incluindo toda literatura apócrifa. Em suas primícias Strauss nega os milagres e que todas as narrativas que se diferem devem ser falsas (míticas). Segundo ele nenhum dos evangelhos foi escrito por testemunhas oculares, mas são recopilações de outros escritos, e que no máximo apenas quatro epístolas de Paulo são autênticas. Evidente que Strauss é muito mais produto de sua época racionalista, do que os evangelistas do seu tempo histórico. As (des)construções dele são muito mais elaboradas do que as narrativas simples dos evangelhos. Ele sabia muito bem, mas não levou em consideração ou simplesmente omitiu, que uma mitologia para ser criada precisa de muito tempo, todavia as narrativas sobre Jesus circularam em um período muito curto, quando ainda havia inúmeras testemunhas oculares dos fatos registrados pelos evangelistas e pregada pelos cristãos em toda parte, podendo facilmente ser desmentidas ou confrontadas. Sua interpretação mítica não teve aceitação entre as academias cristãs e tem muito poucos seguidores nos dias atuais.
            Como diz um ditado popular: “em porteira que passa um boi, passa uma boiada”, a perspectiva racionalista motivou muitos outros autores a explorarem os textos bíblicos. Ainda que as propostas de F. C. Baur, Renan, Schenkel e tantos outros possam ter relativas diferenças de abordagem, eles compactuam com a ideia de que os textos bíblicos não são inspirados e estão infectados de erros e mentiras.   
            Nessa perspectiva temos Bruno Bauer (1809-1882), da influente Escola Tübingen. Ele rejeita a teoria mítica de Strauss seu contemporâneo e defende que nos embates pela primazia apostólica dos discípulos de Pedro e Paulo, no desenvolvimento da Igreja Primitiva, se originam a maior parte dos escritos neotestamentários. O livro de Atos seria um esforço em acomodar e acalmar os dois partidos, escrito na primeira parte do segundo século. Em sua opinião o cristianismo é fruto da fértil imaginação de um grupo de judeus que viveram no final do primeiro século, e que só escreveram suas ideias na primeira metade do segundo. Uma de suas críticas a Strauss é que o colega não havia sido efetivamente contundente em suas analises históricas da literatura bíblica.
            Por sua vez, Renan sustenta a ideia de lendas em relação à origem dos evangelhos e que os relatos dos milagres de Jesus, assim como os milagres associados aos santos medievais, são decorrentes de uma religiosidade ignorante e cega de seus adeptos e mesmo uma dose de fraude piedosa. Assim como os ensaios de Daniel Schenkel (1813-1885) que procura tornar inteligível a vida e o caráter de Cristo tirando-o do divino e milagroso e apresentando-o como um homem comum.
            O cômico, se não fosse trágico, é que cada um destes críticos desconstroem os demais. Strauss desmonta o método naturalista de Paulus e Baur por sua vez provou que a teoria mítica de Strauss é insustentável. Joseph Ernest Renan[7] (1823-1892) também um crítico e contemporâneo deles, demonstra que a proposta de Baur de facções petrina e paulina sejam a origem para a literatura neotestamentária é fictícia. Por sua vez o método utilizado por Renan é destituído de ordem e suas críticas fruto de um espírito capcioso, carente de qualquer convicção ou seriedade, e que empreende qualquer tipo de meio para alcançar seu objetivo.        
            O que podemos perceber claramente é que cada um deles introduzem suas próprias ideias aos textos bíblicos, fazendo com que os escritos bíblicos digam ou afirmem coisas que jamais imaginaram. Mas todos nós corremos esse mesmo risco, ainda que seja em doses menores, quando nos aproximamos com nossos pressupostos teológicos, filosóficos, sociológicos, econômicos, psicológicos e queremos que os textos bíblicos afirmem o que nós já definimos como verdade. A pseudo teologia da prosperidade usa e abusa de interpretações mirabolantes para curva o texto bíblico à sua concepção e seus pressupostos. Muitos destes estudiosos citados estavam revestidos de roupas de sinceridade e até mesmo de piedade, todavia, essas e outras características nobres do espírito humano não justificam uma única interpretação distorcida das verdades bíblicas contida nas Escrituras, que foram e continuam a ser as únicas capazes de nos ensinar, repreender, corrigir e instruir em justiça, afim de que sejamos perfeitos e perfeitamente habilitados para toda boa obra (2 Timóteo 3.-16-17).

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
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Referências Bibliográficas
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[1] Esse termo vem do grego, hermeneutikòs, que significa «interpretação», ou «arte de interpretar».
[2] Entre os gregos, a alegoria tinha por nome hyponoia, considerada como o sentido oculto ou subterrâneo, percebido em Homero, a partir do século VI, para dar uma significação aceitável àquilo que se tornara estranho e para desculpar o comportamento dos deuses, que parecia doravante escandaloso (COMPAGNON, 2010, p. 56). O método alegórico foi usado pelas escolas filosóficas gregas no afã de interpretar os poemas de Homero e Hesíodo, e reduzir os problemas teóricos e religiosos entre a tradição religiosa e a herança filosófica.
[3] Anagogia é um derivado grego cujo significado é elevar, subir, conduzir para o alto. Há registros dele em português desde o séc. XV com o significado de 1) arrebatamento, êxtase místico, elevação da alma na contemplação das coisas divinas, 2) interpretação mística dos símbolos e alegorias das Sagradas Escrituras (Cfr. Aurélio).
[4] A noção mais geral que pode ser dada da teoria das correspondências poderia ser afirmada dizendo que tudo na ordem natural e humana tem uma correspondência com a ordem espiritual .
[5] Philologisch-kritischer und historischer Commcntar über das neue Testament. 4 vols. 1800-1804.
[6] A perspectiva racionalista de Strauss foi adotada mais tarde por Ernest Renan, em seu famoso e não menos polêmico “A vida de Jesus”.
[7] Exerceu muita influência na posição cética ante o cristianismo dos intelectuais franceses da segunda metade do século XIX, através de sua obra “La Vie de Jésus” (1863).

terça-feira, 18 de setembro de 2018

Epístola aos Hebreus: O Prólogo – Deus Continua Falando (1.1-2)



A | 1. l, 2-. Deus falando.
     B | 1.2-14. Filho de Deus. Maior que os anjos.
A | 2.1-4. Deus falando.
     B | 2.5-18. Filho do homem. Menor do que os anjos.
            O autor de Hebreus inicia sua epístola fazendo uma relação direta com o livro de Gênesis - Deus falou - de maneira que seus leitores primários, conhecedores da Torá (versão Septuaginta), pudessem ter sua atenção cativada para o que ele pretende comunicar no transcorrer da epístola. É significativo que que esta epístola comece com Deus, visto que Ele será referido constantemente no discorrer de toda escrita, ao menos 68 vezes ou uma média de uma vez a cada 73 palavras e poucos livros no Segundo Testamento mencionam Deus com tanta frequência.
...se ele [Deus] não revelou nada de específico, se nenhuma de suas palavras sobreviveu para poder guiar uma pessoa em direção ao verdadeiro conhecimento de Deus, da humanidade e do relacionamento entre eles, então Deus está desconectado da vida, e é irrelevante. Muitos descrentes, agnósticos e ateus estão dispostos a aceitar o desespero e a ausência de significado de uma conclusão como essa. Creio que eles estão errados, entretanto mais próximos de enfrentar a realidade do que aqueles que creem em um Deus que não falou. (David H. Stern)
O escritor de Hebreus não tem qualquer pretensão de fazer um tratado sobre a existência de Deus, mas como o escritor de Gênesis (1.1) e o quarto evangelista (João 1.1) ele apenas declara que Deus se revela – não descobrimos a Deus, pois é Ele que Se revela a nós. Tudo que podemos saber ou “descobrir” sobre Deus não é resultante da nossa capacidade ou inteligência (como alguns pretensiosos teólogos fazem parecer), mas unicamente autorevelação do próprio Deus. O ser humano está completamente cego tateando na escuridão de sua ignorância querendo descobrir a origem e a finalidade da genuína religião. Deus falou (o verbo está no aoristo, que indica uma ação no passado, mas que ainda continua no presente, de maneira que Deus falou anteriormente por meio dos profetas e hoje conclui sua ação falando através do Filho) - o escritor inicia sua carta declarando em alto e bom som que é o próprio Deus quem se revelou, se revela e continuara se revelando. Calvino chama atenção para o fato de que em momento algum o escritor fala de duas revelações distintas ou manifestadas por uma divindade diferente, mas que apesar dessa diversidade de formas comunicativas “o autor põe diante de nós o Deus único”, de maneira que não há qualquer possibilidade de fazer distinção entre Lei e Evangelho, pois a revelação é uma só manifestada de formas diferentes. Ao utilizar as expressões “antigamente” e “nestes últimos dias” o autor quer enfatizar a unidade e a continuidade destas formas ou maneiras de revelações, que em essência não são duas, mas uma só que culmina em Cristo - o próprio Jesus declara que tudo quanto antes havia sido escrito (revelado) se constituía uma testemunha adequada dele próprio (João 5.39-47).
            Mas o escritor em plena harmonia com todo o conteúdo bíblico que lhe antecedeu ensina que essa revelação de Deus é de caráter pessoal. A revelação geral da criação é um testemunho permanente da existência de Deus (Salmo 8; 19), todavia, após a queda o ser humano perdeu a capacidade de conhecer a Deus somente através dela; agora se faz necessário uma revelação pessoal de inteiração direta entre Deus e o ser humano, de maneira que Ele possa comunicar Seu amor e misericórdia – e isso somente é possível através do processo da salvação que Ele opera na pessoa – uma salvação plena, intencional e suficiente.
            Quando o escritor de Hebreus faz referência a Deus ele não está se referindo de forma genérica, como o termo grego possa transparecer, a todos e quaisquer deuses do panteão greco-romano. Ele está sendo extremamente especifico – Yahvé - o Deus eterno, o Deus da aliança, o Deus da revelação e da História (Torá, Tabernáculo, Sacerdócio, Profeta e Rei).
nestes últimos dias” Este período de tempo segue vários nomes. 1. fim dos dias, Nm 24.14; Dt 8.16; Dn 2.28; 10.14 2; nos últimos dias, Jr 23.20; 30.24; 49.39; Ez 38.8, 16; Os 3.5; Joel 2.28 (Atos 2.17) João 6.39, 40, 44, 54; 11.24; 12.48; II Tm 3.1; Tiago 5.3 3; no último tempo, I Pe 1.5 4; no fim dos tempos, I Pe 1.20 5; durante os últimos dias, II Pe 3.3 6; a última hora, I João 2.18; é o “dia do Senhor” (i.e., “a consumação”, Mt 13.39, 40; 24.3; 28.20; Hb 9.26).
            Esse mesmo Deus que falou desde o princípio e que nunca deixou de falar (a Lei e os Profetas ouça-os) agora, nestes últimos dias,[1] continuara falando através do Filho. E se antes Deus falou à Israel/Judá diretamente, agora por meio do Filho irá falar diretamente à todos os povos e etnias. Se antes a revelação de Deus falou através de uma multiplicidade de formas e maneiras, daqui para frente (nestes últimos dias) Deus se comunicara pessoal e diretamente por meio do Filho de forma clara e inexaurível, pois ele é a Palavra Viva.
            Se antes Deus falou “de vários modos” (“em muitos momentos no passado e por muitos meios – NJB)[2], poderíamos dizer em doses homeopáticas, era porque o ser humano estava sendo habilitado paulatinamente a compreendê-lo. Isso é facilmente perceptível na leitura da Bíblia, onde encontramos muito mais revelação no Evangelho segundo João do que no livro de Gênesis, ainda que ambos tratem sobre o mesmo Deus.
            Ainda que a revelação contida no Primeiro Testamento seja em todos os seus detalhes genuinamente verdadeiros ela não é completa e definitiva - foram agentes da revelação divina, mas não foram a revelação final. As limitações de seus instrumentos ou meios e a forma fragmentária de sua mensagem indicam claramente que se deveria esperar uma revelação superior.
O autor utiliza a palavra "melhor" 12 vezes a fim de comparar o Filho (Messias) e sua era com o que existia antes. Menciona a primeira vez no v. 4, e por último em 12.24, á medida que o autor sintetiza essa comparação entre o antigo e o novo (12.18-24).
É somente neste e unicamente neste aspecto que o Segundo Testamento é superior em relação ao Primeiro Testamento. Por isso o autor de Hebreus com inicia sua mensagem – “Havendo Deus...falado...nos fala hoje pelo Filho” – pois somente Deus tinha autoridade para concluir o Primeiro e de escrever o Segundo Testamento. Não haverá outra revelação da parte de Deus, pois na vida, morte, ressurreição e ascensão de Jesus Cristo estão contidas a revelação plena e definitiva de Deus. É justamente desta revelação “melhor e/ou superior” que o escritor de Hebreus trata na abertura de sua correspondência.
            É impressionante o simples fato de que Deus queira nos falar! É inacreditável que Deus quisesse ainda falar com Adão e Eva depois de abertamente o desobedecerem; de falar a Noé em meio à total depravação de toda aquela geração; de falar com Abrão inserido na cultura idolatra de Ur dos Caldeus; de falar aos israelitas de corações empedernidos e pescoço duro; de falar aos judeus que crucificaram Jesus; de falar à geração atual que o menospreza. Quem somos nós para que Deus continue a nos falar (Salmo 8.3,4)? Há somente uma resposta – Amor gracioso – imensurável amor – desmedido, eterno, imutável – simplesmente Amor! Deus nos ama mesmo nós sendo pecadores; Ele doou seu próprio Filho para que não perecêssemos, mas tivéssemos a vida eterna (João 3.16).
            Se Deus se calasse para sempre depois da desobediência de Adão e Eva entenderíamos; se Deus nos ignorasse e deixasse-nos seguir o caminho para o inferno poderíamos entender. Mas não! Deus nunca se afastou de nós, nunca nos abandonou – Deus nos amou e continua falando conosco – “Havendo Deus nos falado ... continua a nos falar hoje!
            Mas Deus falou e continua falando de duas maneiras: Deus falou por meio de seu juízo, condenando abertamente o pecado em todas as suas múltiplas formas, submergindo toda uma geração humana no dilúvio; derramando fogo e enxofre sobre as depravadas cidades de Sodoma e Gomorra e mesmo Israel e Judá tiveram que ouvir a terrível voz do juízo de Deus sobre suas vidas e suas cidades, incluído seus templos, deixando claro que Ele jamais compactua com o pecado, mesmo quando revestido de uma fina camada de religiosidade.
Mas Deus falou e continua falando através de Sua graça e misericórdia – em meio ao diluvio preservou Noé e sua família; tirou Abraão da fabrica de ídolos; preservou Ló e suas filhas da destruição de Sodoma; libertou os israelitas da escravidão do Egito por meio de Moisés e supriu todas as suas necessidades em meio ao deserto; falou-lhes através da Lei (Torá/Instrução), falou-lhes através dos sacrifícios levítico e através de cada uma de suas festas; e levantou continuamente no meio deles Seus profetas como sua boca, para alertar e despertar o povo; falou-lhes ao trazê-los de volta do cativeiro babilônico; e finalmente lhes falou diretamente através do próprio Filho - “havendo Deus falado antigamente muitas vezes e de muitas maneiras aos pais pelos profetas” – a voz de Deus jamais se calou!
            Hoje Deus continua nos falando por meio do Filho – Jesus Cristo! Quem não houve Jesus jamais ouvira a Deus. Ouvir a Cristo é ter vida em abundância, não ouvi-lo é permanecer no caminho da morte. Nunca houve e jamais haverá qualquer alternativa para mim e para você fora de Jesus – “importa morrer uma só vez e depois disso o juízo”. Jesus morreu a nossa morte, para que pudéssemos ter a sua vida e se você OUVIR a sua voz hoje, não ENDUREÇA seu coração! Ouça a voz de Jesus e viva!
           

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
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[1] Nestes últimos dias ou no fim destes dias é a tradução literal de uma expressão hebraica comum encontrada em Números 24.14, que está prenha de conceitos messiânicos.
[2] - New Jerusalem Bible.