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Este livro que faz parte do Segundo Testamento pode
tranquilamente ser inserido no bloco dos esquecidos. Tirando alguns poucos
versos e um ou outro capítulo (ex. capto 1 e 11) este livro é pouco lido e
compartilhado. Provavelmente o titulo que lhe foi dado em nossas bíblias não
ajuda muito em sua popularidade – Hebreus – induz o
leitor a pensar que o assunto é de interesse dos judeus e não dos cristãos.
Todavia, para aqueles que pacientemente escalam esta
extraordinária montanha será recompensado com uma das mais belas visões
panorâmicas do projeto salvífico elaborado por Deus antes da fundação do mundo
e colocado em prática desde os primórdios da entrada do pecado através da
desobediência de Adão e Eva.
Do alto do cume de Hebreus podemos contemplar a obra
redentora sendo manifestada em seus detalhes e peculiaridades. E apesar da
permanente rebeldia do povo israelita, quando tudo parece que vai se perder,
pacientemente Deus age e conduz a história de maneira a conciliar com seu plano
redentor.
Diante de uma paisagem mortificada pela religiosidade
estéril do judaísmo nossos olhos se alegram com a chegada do Reino de Deus no
nascimento, vida e obra de Jesus Cristo. A sua ressurreição e ascensão nos
arremete para o Apocalipse e para a conclusão do projeto salvador de Deus.
Poucos livros do Segundo Testamento nos permitem
compreender de forma tão didática as instruções contidas no Primeiro
Testamento. Neste livro o passado, o presente e o futuro se encontram e se
harmonizam de forma incomparável. O autor concorda em grau, gênero e número com
o apostolo Paulo quando afirma que toda Escritura é inspirada e útil – nenhuma
das instruções contidas em Gênesis a Malaquias (de acordo com nosso cânon) é
desnecessária ou inútil, pois assim como nem as roupas e nem as sandálias dos
israelitas nos quarenta anos de deserto envelheceram ou foram inutilizadas,
assim também ocorre com os ensinos contidos nesta maior porção da revelação de
Deus ao seu povo, seja Israel-Judá no passado, ou seja, a Igreja Cristã no
presente. Como veremos o escritor tem diante de si um público primário
constituído de judeu-cristãos que estão sendo pressionados à exaustam para que
retornem ao antigo judaísmo, com seus inúmeros rituais e sacrifícios, que tanto
cativam os olhos humanos. Pacientemente o escritor de Hebreus vai explicando
aos seus leitores que tudo que outrora foi escrito, precisa ser entendido à luz
da obra de Jesus Cristo no calvário. Toda a mensagem contida nos escritos
veterotestamentário apontava para a nova mensagem evangélica encarnada e
proclamada por Jesus Cristo e continuada por seus discípulos, após o
Pentecostes. Portanto, a mensagem e os ensinos recebidos inicialmente por seus
leitores estão em perfeita harmonia com o ensino das Primeiras Escrituras
hebraicas, de maneira que eles podem tranquilamente depositaram sua fé e
esperança no Evangelho de Jesus Cristo, pelo qual Deus fala Hoje. Tendo este
pequeno cenário de fundo podemos agora iniciar as preliminares do nosso estudo
deste maravilho e rico documento neotestamentário.
Título
e Estilo
O
documento começa sem a saudação e sem a indicação do escritor e dos
destinatários que caracterizam todas as epístolas do Segundo Testamento, com
exceção de 1 João, comuns em epístolas do período greco-romano, todavia ela
termina com uma forma tipicamente epistolar, com uma bênção, algumas notas
pessoais e uma despedida final (13.20-25).
O
titulo mais antigo e familiar ao leitor comum é este: Carta do Apóstolo Paulo aos Hebreus.
Mas desde muito tempo os estudiosos colocam em questão todas as palavras desta
nomenclatura tradicional – não é uma carta, nem de Paulo, nem endereçada aos
hebreus. O primeiro questionamento é que este título não aparece em nenhum dos
manuscritos antigos. Por certo foi acrescentado em data posterior por algum
copista, visto que as igrejas tomavam esta Carta como saída da pena do apóstolo
Paulo (vamos discutir autoria mais à frente).
De
acordo com os manuscritos mais antigos, o título da Carta era apenas: Aos Hebreus.
Embora alguns eruditos modernos ponham em dúvida a autenticidade deste titulo o
peso da evidência literária parece confirma-lo.
O
estilo literário da epístola torna-se relevante na compreensão da sua mensagem. Alguém descreveu bem o seu múltiplo estilo: ela começa como um
tratado, avança como um sermão, e termina como se fosse uma carta. Ainda que se
discuta muito sobre quem é seu autor, o documento evidentemente é de um único
escritor. Exibe mesmo uma retorica estudada, sem a impetuosidade de eloquência
de Paulo. O comentarista bíblico Adolfo Deissmann acha que a Carta aos Hebreus
marca uma época na história da religião cristã, indicando que ela começara “a empregar os instrumentos da cultura, e que
se iniciara então o período literário e teológico” (apud, HOBBS, 1958, p.
13).
O mesmo estudioso
Adolf Deissmaim foi um dos primeiros a estabelecer uma rígida distinção entre “epístolas”,
que segundo ele seriam peças de literatura pública cuidadosamente redigida e “cartas” que
para ele se constituíam de comunicações particulares redigidas sem maior
preocupação. Ele conclui que todas as cartas de Paulo deveriam ser
classificadas nesta última categoria (DEISSMANN, s/d; p. 1-59). Atualmente está
distinção rígida de Deissmaim foi descartada, visto que as correspondências
neotestamentárias ficam mais confortáveis quando enquadradas em algum ponto no
meio dessas duas categorias, visto que algumas tendem mais para a extremidade
literária (cf Romanos e Hebreus) enquanto que outras tendem mais para a
extremidade comum (cf. Filemom e 3 João).
Autoria
No manuscrito mais antigo de Hebreus de que temos conhecimento (p46 - início do século III)[1] — ela está incluída entre
as correspondências paulina, logo depois de Romanos, refletindo a convicção da
Igreja Oriental que primeiro endossou essa carta como canônica[2] (para variação na ordem
dos manuscritos, veja METZGER, 1971, p. 661-2).
Quem escreveu este documento? Eusébio citando Orígenes responde — “Mas, com toda honestidade, quem
escreveu a epístola só Deus sabe” (H.E. 6.25.14). O documento em si
silencia sobre o assunto, abrindo um leque amplo de hipóteses, algumas
coerentes e outras completamente extravagantes. Apenas a título de curiosidade citamos
os principais candidatos por ordem decrescentes de credibilidade: Paulo,[3] Barnabé,[4] Apolo,[5] Lucas,[6] o casal Priscila e Áquila,[7] Filipe,[8] Clemente de Roma,[9] Silas ou Silvano,[10] entre outros.[11] As teorias mais antigas
e mais consistentes em relação a autoria centra-se nas figuras de Paulo e
Barnabé. Martinho Lutero atribuía a Apolo,[12] e encontra apoio em estudiosos
posteriores como Guthrie (1982, p. 2666) e Lightfoot (1976, p. 26). Para Borchert
(1985 322) “se alguém quiser conjeturar
quem escreveu Hebreus, seria difícil propor um candidato melhor" e Henshaw
conclui enfaticamente: "Há apenas
uma pessoa, daquelas que conhecemos, que satisfaz todas as condições, a saber,
Apolo" (1952, 344). Algumas características dão consistência a essa
hipótese: ele era um judeu alexandrino,
o que poderia explicar o amplo uso da Septuaginta nas citações inseridas por
toda a carta; em Atos se registra seu grande conhecimento bíblico e seus dons
oratórios; Apolo conheceu Timóteo e esteve associado a Paulo; ele era um homem
de alta reputação na igreja primitiva e "falou e ensinou com precisão as coisas concernentes a Jesus",
o que se harmoniza com a temática da epístola. Mas o próprio Lightfoot faz uma
ressalva: “A hipótese de Apolo como autor
recebeu ampla aceitação; mas, sem dúvida, muito disso pode ser explicado com
base no fato de que, na busca por uma solução positiva, parece não haver outro
lugar para ir" (1976, p. 26).
Razões para questionar uma autoria de Paulo: a) o estilo é tão diferente (exceto o capítulo 13) dos outros escritos paulinos;
b) o vocabulário é diferente; c) existem diferenças sutis no uso e ênfase de
palavras e frases; d) quando Paulo chama seus amigos e cooperadores de
"irmão", o nome da pessoa sempre vem primeiro (cf. Rm 16:23; 1Co 1:
1; 16:12; 2Co 1: 1; 2:13 Fp 2:25), mas aqui vem depois "nosso irmão Timóteo" (Hb 13.23). Guthrie
(1982, p. 2666) destaca que Paulo não
reivindica ser o autor da carta: "Isso
está em notável contraste com sua prática, como a conhecemos em suas Epístolas
reconhecidas". É muito intrigante porque ele teria omitido seu
nome se ele fosse o escritor.[13] Um
longo e detalhado argumento em defesa da autoria paulina é oferecido por Neil
R. Lightfoot (1981, p. 18-21), que não é dogmático nessa questão.
Nosso espaço exige que sejamos sucintos nestas discussões. Resumidamente
se criou um consenso de que não foi Paulo que a escreveu e desta forma sobram
pela sequência natural Barnabé e Apolo como os prováveis escritores.
Com base no que se pode inferir sobre o autor no texto temos um perfil:
a) ele aparentemente foi um judeu cristão de segunda geração (Hb 2.3); b) ele
cita a tradução grega chamada Septuaginta; c) ele usa os procedimentos do
tabernáculo antigo e não os rituais atuais do templo; d) ele escreve usando
gramática e sintaxe grega clássica, mas não o estilo platônico, pois sua influência
é hebraica, não Filo, revelando que tinha excelente cultura; era bem conhecido
dos destinatários (Hb 6.9-10; 10.34; 13.7,9). No descarte de Paulo fico com a
figura de Apolo como o autor desta epístola.
Data
Mais uma vez temos diante de nós uma gama de opções que vai de 50 (D.C.)
aos anos 90 (D.C.). Entretanto, podemos estabelecer alguns critérios para
direcionar a discussão do tema:
v Uma data posterior a 95 (D.C.) é improvável pelo fato de que Clemente de
Roma faz citação desta carta canônica quando escreve sua correspondência aos
crentes de Corinto (Clemente 36.1-6 – escrita em 96 D.C.).
v Há defensores de uma data mais tardia, dentro do período acima citado,
fundamentados na argumentação de que os leitores fazem parte da evangelização
efetuada pela segunda geração de discípulos (Timóteo e outros), mas não há
qualquer evidência concreta deste fato.
v Com base no conteúdo doutrinário da epístola defende-se que ela foi
composta entre as últimas correspondências paulinas (63 D.C.) e as cartas
joaninas (80-85 D.C.). Paulo foi martirizado antes de 70 (D.C.) e João escreveu
suas correspondências e o Apocalipse próximo de 90 (D.C.), de maneira que a
carta em discussão foi composta após o martírio de Paulo e anterior aso escritos de João.
v No bojo desta carta menciona-se que os leitores primários experimentaram
perseguições por causa de sua fé cristã e ainda estavam experimentado algum
tipo de perseguição (10.33 e 12.1). Se foram perseguições de caráter geral pode
se referir ao período de Nero (64-68 D.C.), ou as perseguições mais radicais
efetuadas por Domiciano depois de 81 (D.C.). Há uma preferência pela data
referente ao período de Nero.
v Um aspecto temporal-histórico encontrado na carta é a menção da
libertação de Timóteo (13.23). Em seu antevendo sua própria morte (68 D.C.),
insiste para que seu amigo e companheiro de trabalho missionário venha para
Roma (II Tm 4.11-13, 21). É plausível admitir que Timóteo tenha viajado até a
capital romana e logo após o morte de Paulo ele possa ter sido preso. Seguindo
esse raciocínio com a morte de Nero (08 de junho de 68 A.C.), o jovem pastor
cristão tenha sido libertado (final de 68 – inicio de 69 A.C.).
v Um marco histórico muito utilizado para datação dos documentos
neotestamentário é queda de Jerusalém (70 D.C.). No caso especifico da Carta
aos Hebreus, com tons fortemente judaicos, o fato de não se fazer qualquer
menção à destruição da amada Jerusalém e seu precioso Templo, deve ser levado
em conta. Na verdade, o contrário parece mais provável, pois o escritor dá
entender que tanto o Templo quanto o seu sistema de sacrifícios ainda estão funcionado
normalmente (10.1 ss.), mas que está cada vez mais próxima sua cessação (8.13).
Sendo assim, é presumível um período da parte final da Guerra Judaica, ou seja
o período que vai de 68 a 70 (D.C.).
Diante destes critérios norteadores temos um período mais amplo de 50 a
95 (D.C.) e um período mais restrito de 60 a 70 (D.C.). O conteúdo da carta se
ajusta melhor com o período mais restrito. As perseguições fomentadas por Nero
e a prisão e soltura de Timóteo se harmonizam com esse momento histórico. O
Templo e sua estrutura eclesiástica ainda estão funcionando, mas brevemente
serão completamente destruídos, o que se ajusta melhor com as afirmativas do
escritor da carta. Podemos então pensar com certo grau de fundamentação em uma
data próxima de 69 (D.C.).
Destinatário
Quem foram os leitores primários desta
correspondência? O escritor não especifica e mais uma
vez temos aberto várias possibilidades. O título “Pros Hebraious” (Aos Hebreus) é encontrado nos manuscritos gregos
Sinaiticus (c. 330-360) e Vaticanus (c. 300-325). Entretanto, como são cópias,
não é possível afirmar categoricamente que fizesse parte da redação original. Mas
atestam a existência de uma tradição muito antiga que somada às evidências
internas da carta podemos pensar que os destinatários desta carta eram judeus
helênicos. Não faria sentido o autor recorrer aos textos veterotestamentário
como forma de validar seus argumentos se os seus leitores fossem gentios.
Com base em evidências do próprio texto podemos caracterizá-los: a) um
grupo específico de judeus crentes ou uma sinagoga está sendo endereçada (6.10;
10.32-34; 12.4; 13.7,19,23); b) eles parecem ser crentes judeus por causa das
numerosas citações veterotestamentária e a matéria de assunto (3.1; 4.14-16;
6.9; 10.34; 13.1-25).; c) eles tinham experimentado alguma perseguição (10.32;
12.4);[14] d) eles tinham sido
crentes por um longo tempo, mas ainda eram imaturos (5.11-14); e) eles estavam
tentados a retornar às praticas do judaísmo (6.1,2). O que podemos afirmar é
que foi dirigido a comunidades de judeus convertidos ao cristianismo, o que não
impugna que haja uma minoria ou até mesmo uma prevalência de cristãos gentios
entre seus membros, visto que havia um grande numero de prosélitos (não judeus)
no judaísmo do primeiro século.
Onde esses leitores estavam
estabelecidos? Vários locais foram sugeridos, mas uma vez
mais temos um problema insolúvel. Foram sugeridas várias localidades como destinatária
desta Carta: Jerusalém, Antioquia, Roma, Alexandria, Colossos, Éfeso, Beréia, e
até Ravena. Até o século XIX de forma geral admitia-se a região da Palestina
judaica ou mesmo a cidade de Jerusalém. Posteriormente tornou-se preferível se
pensar em comunidades cristão-judaicas em Alexandria, no Egito, como a provável
localização. E mais recentemente alguns têm preferido as comunidades
estabelecidas na cidade de Roma como destinatária da correspondência.
Onde estava o escritor? A grande maioria dos comentaristas discute a partir da referência “Os da Itália vos saudam” (13.24). Aqui temos duas possibilidades: que o próprio autor se
encontrava na Itália e envia saudações aos seus leitores que estavam residindo
em outro local geográfico; ou que ele estivesse morando fora da Itália,
juntamente com uma comunidade italiana de cristãos, e saúdam os que
permaneceram na Itália. A preposição grega aqui utilizada (apo) “de”, parece
apoiar a ideia de que os referidos estão na capital romana. Um suporte a esta
opção é o fato de que a primeira referência à carta aos Hebreus (1 Clemente)
vem justamente de Roma (MOFFATT, James, 1910, p. 446-447). Uma hipótese mais
antiga é de que a correspondência foi destinada aos cristãos judeus que ainda
permaneciam na região da Palestina judaica (WESTCOTT, 1892, p. XLI).
Propósito
A preferência dos comentaristas bíblicos é de que o autor escreve
visando corrigir e animar judeu-cristãos que mediante as fortes pressões que
estão sofrendo estão tentados a retornarem à velha religião do judaísmo. O
conteúdo da carta nos permite concordar com esta posição. Mas tempos uma
pluralidade de opiniões sobre as razões deste possível retrocesso:
v Para os que defendem comunidades na Palestina judaica ou mesmo em
Jerusalém entendem que a eminente destruição do Templo e da própria cidade de
Jerusalém reacendeu a velha chama do judaísmo e por isso alguns da comunidade
cristã desejam retornar ao judaísmo. Nada incomum visto que alguns que haviam
saído do Egito queriam para lá retornar saudosos dos temperos egípcios.
v Alguns conseguem perceber uma frustração por parte dos judeus
convertidos em relação aos baixos padrões morais e da grande ignorância das
Escrituras (Torá) por parte dos cristãos gentios.
v Outros associam a apostasia em decorrência da decepção dos leitores no
que concerne à demora da Parousia – retorno do Jesus Cristo glorificado.
v Mais recentemente tem se levantado a possibilidade de que o motivo desta
ameaça de apostasia está relacionado à pressão do legalismo judaico que
continuava assedia-los fortemente, de maneira que a fé e esperança cristã
estavam sendo corroídas. Lembrando que um grupo denominado de judaizantes
faziam as rotas percorridas por Paulo para assediar os que iam sendo
convertidos, a epístolas aos Gálatas tem este pano de fundo.
Mensagem
Alguns comentaristas tem defendido a ideia de que o autor esteja
esboçando uma Cristologia e de fato encontramos uma argumentação sublime em
relação a pessoa e obra de Cristo. Todavia, não nos parece ser esse o cerne da
carta, mas sim de exortar seus leitores a viverem de acordo com o ensino
evangélico (2.1ss; 3.7ss; 6.1ss; 10.19ss e 12.1ss), como o fazemos em nosso
sermões e/ou homilias. A característica parenética-pastoral da carta nos induz
a pensar não tem em foco criar uma cultura antijudaica, mas renovar a fé
adormecida dos seus leitores.
Outros comentaristas optam pelo argumento de que o autor está preocupado
com a apostasia dos membros daquela comunidade. Entretanto, o termo apostasia
usada pelo autor (apostasia, do verbo grego apostenai) etimologicamente não trás unicamente o sentindo de abandonar a fé
cristã. Por sua vez os que negam a possibilidade de uma “desconversão”
argumentam que o autor está se referindo a uma hipótese que na verdade não se
concretizará. Ora, se assim for, por que então ele desenvolve esta ideia? Na
medida em que vamos examinando o texto encontramos algumas expressões tais
como: “que nos desviemos” (2.2), “um
perverso coração de incredulidade, em nos afastarmos do Deus vivo” (3.12), “se
caírem” (6.6), “se
pecarmos voluntariamente” (10.26), e outras semelhantes. Por
enquanto vamos deixar a discussão dessas expressões para quando dela nos
ocuparmos no transcorrer dos estudos.
Creio que um propósito bem delineado do autor é fazer uma convocação,
bem ao estilo dos profetas veterotestamentário, para que sejam os instrumentos
de Deus para a realização do plano redentor – ou seja, continuemos a
evangelizar sem esmorecer. Assim como Israel foi escolhido e adequadamente
preparado para ser luz das nações, mas infelizmente falharam nesse quesito, a
Igreja foi estabelecida e plenamente habilitada pelo Espírito Santo para ser
“luz do mundo e sal da terra”. Mas o alerta é dado: caso coletiva ou
individualmente nós venhamos a fracassar nesse objetivo, assim como ocorreu com
os israelitas, seremos cortados e outros haverão de ocupar nosso lugar. Assim
as citações difíceis acima mencionadas ficam um pouco mais claras em seu
sentido primário. Quanto maior o privilégio, maior a responsabilidade!
Assim é possível percebermos na leitura que os
primeiros leitores da Carta aos Hebreus, embora fossem genuínos cristãos, eles
estavam negligenciando sua vocação missionária; mais preocupados com as
questões eclesiásticas e religiosas e intimidados pela tensão criada pela forte
hostilidade quer por parte do governo (Império Romano), quer pela própria
sociedade (culpavam os cristãos por todas as catástrofes ocorridas), se
contentavam em sentirem-se salvos e se acomodaram e não cuidavam de realizar
toda a vontade de Deus para com eles e para com os outros que não conheciam a
Deus em Cristo.
O
escritor bíblico lembra-lhes que ser cristão não é somente adquirir um passe
para o “trem celestial”, mas inclui amoldar um caráter genuinamente cristão.
Assim a carta exorta os leitores de duas formas: negativa, exortá-los a que não
falhem como Israel havia falhado; e positiva, por lhes apresentar a gloriosa
Pessoa de Cristo e o Seu poder, como nosso aliado ou “parceiro” na continuidade
da realização do plano redentor de Deus. Portanto, o moto da carta não é
"Não voltem ou retrocedam!”, mas sim, “Avancemos
Sempre!” (6.1).
E justamente
este poderoso alerta que torna essa carta preciosa para nós ainda hoje –
cristãos do século XXI. Mas infelizmente, como mencionamos no inicio este
documento e sua mensagem tão relevante tem sido esquecida e negligenciada (como
a maioria da literatura bíblica). Porventura não corremos hoje o perigo de nos
acomodarmos (se é que já não estamos confortavelmente ajustados aso padrões
deste mundo). Mas se pudermos sentir o frescor desta carta e sua mensagem; se
pudermos ouvir com clareza sua convocação, então uma vez mais seremos renovados
em nossa fé e nossa práxis cristã; uma vez mais haveremos de fazer resplandecer
a luz de Cristo sobre todas as Nações, Povos e Etnias. Por esta razão vale a pena
examinar esta Carta, pois nela encontraremos uma poderosa mensagem para a nossa
época e para vida de todo genuíno cristãos em todos os tempos.
Quero
concluir essa introdução com as palavras de João Calvino (1997 p. 21) sobre a
relevância desta epístola aos Hebreus:
Classifico Hebreus, sem a menor
hesitação, entre os escritos apostólicos. Não tenho dúvida de que foi pela
astúcia de Satanás que muitos foram induzidos a impugnar sua autoridade. De
fato não há nenhum livro da Santa Escritura que tão claramente fale do
sacerdócio de Cristo, que tão sublimemente exalte a virtude e a dignidade
daquele único e genuíno sacrifício que ele ofereceu através de sua morte, que
tão ricamente trate do uso das cerimônias tanto quanto de sua remoção e, numa
palavra, tão plenamente explique que Cristo é o cumprimento da lei. Portanto,
não permitamos que a Igreja de Deus seja, ou nós mesmos sejamos privados de tão
imensurável beneficio; ao contrário disso, que defendamos firmemente sua posse –
Genebra, 23 de maio de 1549.
A
Estrutura da Epístola Como Um Todo
A | 1.1-2.18 INTRODUÇÃO
DOUTRINAL
B | C | 3.1-4.13 A MISSÃO DE CRISTO
D | 4.14-16 APLICAÇÃO GERAL.
"Tendo assim".
B | Cl 5.1-10.18. O SACERDÓCIO DE CRISTO
D | 10.19-12. 29. APLICAÇÃO
PARTICULAR. "Tendo assim".
A | 13.1-26. CONCLUSÃO
PRÁTICA
Utilização
livre desde que citando a fonte
Guedes,
Ivan Pereira
Mestre
em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
Outro
Blog
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/
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do Desenvolvimento do Cânon do N.T.
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Testamento
A Ordem dos Livros do Novo
Testamento
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[1] Este manuscrito é chamado de Chester
Beatty Papyri e foi copiado no final do segundo século.
[2] No Ocidente a Igreja teve
resistências à autoria paulina até a última metade do século IV. O Cânon Muratoriano
(uma lista de livros canônicos do NT de Roma,
aproximadamente 180-200 dC ), Ireneu e Hipólito de Roma
concordam que não saiu da pena de Paulo.
[3] Clemente de Alexandria em seu
livro Hypotypos 150-215 dC, citado por Eusébio, diz que Paulo
escreveu em hebraico e Lucas traduziu para o grego. Orígenes ( 185-253 dC )
afirmou que os pensamentos são de Paulo, mas foi escrito por um seguidor
posterior, como Lucas ou Clemente de Roma. Somente com a dupla defesa de
Jeronimo e Agostinho foi aceita a autoria paulina no Ocidente. Calvino em seu
comentário declara: “Não posso apresentar nenhuma razão plausível para
demonstrar que Paulo foi o seu autor;” (1997, p. 22).
[4] Tertuliano ( De Pudic. 20),
no século II, acreditava que Barnabé (um levita associado a Paulo) o escreveu. (no
século II) e que tinha mais autoridade do que o “Pastor de Hermas”, dando a
entender que essa opinião era comumente aceita nos círculos a que ele pertence.
Em sua defesa esta o fato dele ser um levita de Chipre (At 4.36) e, portanto,
membro do grupo helenista na igreja de Jerusalém; introduziu Paulo em Antioquia
e formaram a primeira equipe missionária (At 9.27; 11.30; 13.1—14.28) e, foi
denominado “filho de exortação” (At
4.36), de modo a ser apropriado como autor da “palavra de exortação” (Hb 13.22). Henshaw (1952, 344) diz: "Se Barnabé tivesse sido o autor, nenhuma
dificuldade teria sido sentida em qualquer lugar em aceitar a epístola ao
cânon, como teria sido obra de um apóstolo". Lightfoot (1976, 24)
conclui: "É provável que Barnabé
como autor fosse simplesmente uma antiga hipótese avançada na ausência de
qualquer conhecimento real sobre a questão”.
[5] No século XVI Lutero propôs o nome de
Apolo como autor dessa epístola e posteriormente agregou diversos defensores. É
uma figura carismática e conviveu com Paulo (cf. 1 Co 1-4), Priscila e Áquila e
alguém versado nas Escrituras (At 18.24); natural de Alexandria, e muitos
escritores têm encontrado numerosas ligações entre a epístola aos Hebreus e os
escritos de Filo de Alexandria.
[6] Essa proposta tem duas razões:
primeiro Lucas foi companheiro missionário de Paulo e segundo devido às
semelhanças entre o grego de Hebreus e o de Lucas-Atos (Orígenes – H.E.
6.25.12). Westcott (1892, p. 76)
observa: "Quando todas as concessões
foram feitas para coincidências que consistem em formas de expressão que são
encontradas também na Septuaginta ou em outros escritores do Novo Testamento,
ou no final do grego em geral, a semelhança é inquestionavelmente notável”.
Por sua vez Franz Delitzsch (1978, p. 409-417) sugeriu que Lucas atuou como
secretário de Paulo, anotando as idéias de Paulo em seu próprio estilo e
vocabulário, o que certamente amenizaria os problemas tanto da autoria paulina
quanto de lucana de uma maneira que poderia ser muito viável.
[7] A sugestão mencionada por Shackelford (1987, p. 395) e Guthrie (1982,
2667), de Priscilla, esposa de Áquila, é bastante interessante, especialmente
na era do feminismo em crescimento; ambos foram companheiros de Paulo
(At 18.5; 19.22; 1 Co 16.10, 19 e provavelmente conheceram Timóteo(Hb 13.23);
foram orientadores de Apolo (At 18.26). Explica a ausência do nome do autor
pelo fato de ter sido escrito por uma mulher. Entretanto, Borchert (1985, p. 323) contrapõe: "É difícil fazer um argumento claro para um
toque feminino específico neste livro e a ideia de que o livro não tem um autor
porque o escritor era uma mulher é claramente um argumento do silêncio que pode
ir em ambos os sentidos". Mas a ideia fica prejudicada
pelo fato de que o autor faz uma referência de si mesmo no masculino singular
(11.32).
[8] Sir William Ramsey disse que Filipe
(o evangelista) escreveu para Paulo enquanto Paulo estava na prisão em
Cesaréia, mas esta proposta recebeu pouco apoio.
[9] Mas Guthrie (1982, 2666) alerta: "Uma comparação cuidadosa de 1 Clemente com Hebreus não leva à convicção
de que ambos foram escritos pelo mesmo autor".
[10] Lightfoot (1976 26) menciona brevemente Silas (ou Silvanus) como um
possível candidato por causa de sua íntima associação com o apóstolo Paulo e
suas conhecidas atividades de escrita (1 Ts 1.1; 2 Ts 1.1; 1 Pe 5.12).
[11] Além desses nomes outros ainda mais
improváveis foram sugeridos: Silas, Epafras, o diácono Filipe, Aristarco ou
Maria, mãe de Jesus.
[12] Montefiore e Lo Blue (apud, Hurst
1985, p. 505) sustentam a posição de que Hebreus foi escrito de Éfeso por Apolo
para a igreja de Corinto entre os anos 52 e 52.
[13] Uma possível explicação é oferecida
por Shackelford (1987, p. 394) onde sugere que Paulo sabia que os judeus eram
preconceituosos contra ele porque ele era um apóstolo dos gentios (Rm 11.13;
cf. Atos 22:22), e ele não assinou seu nome para que eles pudessem mais
prontamente receber a carta.
[14] O judaísmo era reconhecido como uma
religião legal pelas autoridades romanas enquanto mais tarde no primeiro século
o cristianismo foi considerado ilegal quando se separou da adoração da
sinagoga.
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