quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Epístola aos Hebreus: Introdução


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            Este livro que faz parte do Segundo Testamento pode tranquilamente ser inserido no bloco dos esquecidos. Tirando alguns poucos versos e um ou outro capítulo (ex. capto 1 e 11) este livro é pouco lido e compartilhado. Provavelmente o titulo que lhe foi dado em nossas bíblias não ajuda muito em sua popularidade – Hebreus – induz o leitor a pensar que o assunto é de interesse dos judeus e não dos cristãos.
            Todavia, para aqueles que pacientemente escalam esta extraordinária montanha será recompensado com uma das mais belas visões panorâmicas do projeto salvífico elaborado por Deus antes da fundação do mundo e colocado em prática desde os primórdios da entrada do pecado através da desobediência de Adão e Eva.
            Do alto do cume de Hebreus podemos contemplar a obra redentora sendo manifestada em seus detalhes e peculiaridades. E apesar da permanente rebeldia do povo israelita, quando tudo parece que vai se perder, pacientemente Deus age e conduz a história de maneira a conciliar com seu plano redentor.
            Diante de uma paisagem mortificada pela religiosidade estéril do judaísmo nossos olhos se alegram com a chegada do Reino de Deus no nascimento, vida e obra de Jesus Cristo. A sua ressurreição e ascensão nos arremete para o Apocalipse e para a conclusão do projeto salvador de Deus.
            Poucos livros do Segundo Testamento nos permitem compreender de forma tão didática as instruções contidas no Primeiro Testamento. Neste livro o passado, o presente e o futuro se encontram e se harmonizam de forma incomparável. O autor concorda em grau, gênero e número com o apostolo Paulo quando afirma que toda Escritura é inspirada e útil – nenhuma das instruções contidas em Gênesis a Malaquias (de acordo com nosso cânon) é desnecessária ou inútil, pois assim como nem as roupas e nem as sandálias dos israelitas nos quarenta anos de deserto envelheceram ou foram inutilizadas, assim também ocorre com os ensinos contidos nesta maior porção da revelação de Deus ao seu povo, seja Israel-Judá no passado, ou seja, a Igreja Cristã no presente. Como veremos o escritor tem diante de si um público primário constituído de judeu-cristãos que estão sendo pressionados à exaustam para que retornem ao antigo judaísmo, com seus inúmeros rituais e sacrifícios, que tanto cativam os olhos humanos. Pacientemente o escritor de Hebreus vai explicando aos seus leitores que tudo que outrora foi escrito, precisa ser entendido à luz da obra de Jesus Cristo no calvário. Toda a mensagem contida nos escritos veterotestamentário apontava para a nova mensagem evangélica encarnada e proclamada por Jesus Cristo e continuada por seus discípulos, após o Pentecostes. Portanto, a mensagem e os ensinos recebidos inicialmente por seus leitores estão em perfeita harmonia com o ensino das Primeiras Escrituras hebraicas, de maneira que eles podem tranquilamente depositaram sua fé e esperança no Evangelho de Jesus Cristo, pelo qual Deus fala Hoje. Tendo este pequeno cenário de fundo podemos agora iniciar as preliminares do nosso estudo deste maravilho e rico documento neotestamentário.
Título e Estilo
O documento começa sem a saudação e sem a indicação do escritor e dos destinatários que caracterizam todas as epístolas do Segundo Testamento, com exceção de 1 João, comuns em epístolas do período greco-romano, todavia ela termina com uma forma tipicamente epistolar, com uma bênção, algumas notas pessoais e uma despedida final (13.20-25).
O titulo mais antigo e familiar ao leitor comum é este: Carta do Apóstolo Paulo aos Hebreus. Mas desde muito tempo os estudiosos colocam em questão todas as palavras desta nomenclatura tradicional – não é uma carta, nem de Paulo, nem endereçada aos hebreus. O primeiro questionamento é que este título não aparece em nenhum dos manuscritos antigos. Por certo foi acrescentado em data posterior por algum copista, visto que as igrejas tomavam esta Carta como saída da pena do apóstolo Paulo (vamos discutir autoria mais à frente).
De acordo com os manuscritos mais antigos, o título da Carta era apenas: Aos Hebreus. Embora alguns eruditos modernos ponham em dúvida a autenticidade deste titulo o peso da evidência literária parece confirma-lo.
O estilo literário da epístola torna-se relevante na compreensão da sua mensagem. Alguém descreveu bem o seu múltiplo estilo: ela começa como um tratado, avança como um sermão, e termina como se fosse uma carta. Ainda que se discuta muito sobre quem é seu autor, o documento eviden­temente é de um único escritor. Exibe mesmo uma retorica estudada, sem a impetuosidade de eloquência de Pau­lo. O comentarista bíblico Adolfo Deissmann acha que a Carta aos Hebreus marca uma época na história da religião cristã, in­dicando que ela começara “a empregar os instrumentos da cultura, e que se iniciara então o período literário e teológico” (apud, HOBBS, 1958, p. 13).
O mesmo estudioso Adolf Deissmaim foi um dos primeiros a estabelecer uma rígida distinção entre “epístolas”, que segundo ele seriam peças de literatura pública cuidadosamente redigida e “cartas” que para ele se constituíam de comunicações particulares redigidas sem maior preocupação. Ele conclui que todas as cartas de Paulo deveriam ser classificadas nesta última categoria (DEISSMANN, s/d; p. 1-59). Atualmente está distinção rígida de Deissmaim foi descartada, visto que as correspondências neotestamentárias ficam mais confortáveis quando enquadradas em algum ponto no meio dessas duas categorias, visto que algumas tendem mais para a extremidade literária (cf Romanos e Hebreus) enquanto que outras tendem mais para a extremidade comum (cf. Filemom e 3 João).
Autoria
No manuscrito mais antigo de Hebreus de que temos conhecimento (p46 -  início do século III)[1] — ela está incluída entre as correspondências paulina, logo depois de Romanos, refletindo a convicção da Igreja Oriental que primeiro endossou essa carta como canônica[2] (para variação na ordem dos manuscritos, veja METZGER, 1971, p. 661-2).
Quem escreveu este documento? Eusébio citando Orígenes responde — “Mas, com toda honestidade, quem escreveu a epístola só Deus sabe” (H.E. 6.25.14). O documento em si silencia sobre o assunto, abrindo um leque amplo de hipóteses, algumas coerentes e outras completamente extravagantes. Apenas a título de curiosidade citamos os principais candidatos por ordem decrescentes de credibilidade: Paulo,[3] Barnabé,[4] Apolo,[5] Lucas,[6] o casal Priscila e Áquila,[7] Filipe,[8] Clemente de Roma,[9] Silas ou Silvano,[10] entre outros.[11] As teo­rias mais antigas e mais consistentes em relação a autoria centra-se nas figuras de Paulo e Barnabé. Martinho Lutero atribuía a Apolo,[12] e encontra apoio em estudiosos posteriores como Guthrie (1982, p. 2666) e Lightfoot (1976, p. 26). Para Borchert (1985 322) “se alguém quiser conjeturar quem escreveu Hebreus, seria difícil propor um candidato melhor" e Henshaw conclui enfaticamente: "Há apenas uma pessoa, daquelas que conhecemos, que satisfaz todas as condições, a saber, Apolo" (1952, 344). Algumas características dão consistência a essa hipótese: ele era um judeu alexandrino, o que poderia explicar o amplo uso da Septuaginta nas citações inseridas por toda a carta; em Atos se registra seu grande conhecimento bíblico e seus dons oratórios; Apolo conheceu Timóteo e esteve associado a Paulo; ele era um homem de alta reputação na igreja primitiva e "falou e ensinou com precisão as coisas concernentes a Jesus", o que se harmoniza com a temática da epístola. Mas o próprio Lightfoot faz uma ressalva: “A hipótese de Apolo como autor recebeu ampla aceitação; mas, sem dúvida, muito disso pode ser explicado com base no fato de que, na busca por uma solução positiva, parece não haver outro lugar para ir" (1976, p. 26).
Razões para questionar uma autoria de Paulo: a) o estilo é tão diferente (exceto o capítulo 13) dos outros escritos paulinos; b) o vocabulário é diferente; c) existem diferenças sutis no uso e ênfase de palavras e frases; d) quando Paulo chama seus amigos e cooperadores de "irmão", o nome da pessoa sempre vem primeiro (cf. Rm 16:23; 1Co 1: 1; 16:12; 2Co 1: 1; 2:13 Fp 2:25), mas aqui vem depois "nosso irmão Timóteo" (Hb 13.23). Guthrie (1982, p. 2666) destaca que Paulo não reivindica ser o autor da carta: "Isso está em notável contraste com sua prática, como a conhecemos em suas Epístolas reconhecidas". É muito intrigante porque ele teria omitido seu nome se ele fosse o escritor.[13] Um longo e detalhado argumento em defesa da autoria paulina é oferecido por Neil R. Lightfoot (1981, p. 18-21), que não é dogmático nessa questão.
Nosso espaço exige que sejamos sucintos nestas discussões. Resumidamente se criou um consenso de que não foi Paulo que a escreveu e desta forma sobram pela sequência natural Barnabé e Apolo como os prováveis escritores.
Com base no que se pode inferir sobre o autor no texto temos um perfil: a) ele aparentemente foi um judeu cristão de segunda geração (Hb 2.3); b) ele cita a tradução grega chamada Septuaginta; c) ele usa os procedimentos do tabernáculo antigo e não os rituais atuais do templo; d) ele escreve usando gramática e sintaxe grega clássica, mas não o estilo platônico, pois sua influência é hebraica, não Filo, revelando que tinha excelente cultura; era bem conhecido dos destinatários (Hb 6.9-10; 10.34; 13.7,9). No descarte de Paulo fico com a figura de Apolo como o autor desta epístola.
Data
Mais uma vez temos diante de nós uma gama de opções que vai de 50 (D.C.) aos anos 90 (D.C.). Entretanto, podemos estabelecer alguns critérios para direcionar a discussão do tema:
v  Uma data posterior a 95 (D.C.) é improvável pelo fato de que Clemente de Roma faz citação desta carta canônica quando escreve sua correspondência aos crentes de Corinto (Clemente 36.1-6 – escrita em 96 D.C.).
v  Há defensores de uma data mais tardia, dentro do período acima citado, fundamentados na argumentação de que os leitores fazem parte da evangelização efetuada pela segunda geração de discípulos (Timóteo e outros), mas não há qualquer evidência concreta deste fato.
v  Com base no conteúdo doutrinário da epístola defende-se que ela foi composta entre as últimas correspondências paulinas (63 D.C.) e as cartas joaninas (80-85 D.C.). Paulo foi martirizado antes de 70 (D.C.) e João escreveu suas correspondências e o Apocalipse próximo de 90 (D.C.), de maneira que a carta em discussão foi composta após o martírio de Paulo  e anterior aso escritos de João.
v  No bojo desta carta menciona-se que os leitores primários experimentaram perseguições por causa de sua fé cristã e ainda estavam experimentado algum tipo de perseguição (10.33 e 12.1). Se foram perseguições de caráter geral pode se referir ao período de Nero (64-68 D.C.), ou as perseguições mais radicais efetuadas por Domiciano depois de 81 (D.C.). Há uma preferência pela data referente ao período de Nero.
v  Um aspecto temporal-histórico encontrado na carta é a menção da libertação de Timóteo (13.23). Em seu antevendo sua própria morte (68 D.C.), insiste para que seu amigo e companheiro de trabalho missionário venha para Roma (II Tm 4.11-13, 21). É plausível admitir que Timóteo tenha viajado até a capital romana e logo após o morte de Paulo ele possa ter sido preso. Seguindo esse raciocínio com a morte de Nero (08 de junho de 68 A.C.), o jovem pastor cristão tenha sido libertado (final de 68 – inicio de 69 A.C.).
v  Um marco histórico muito utilizado para datação dos documentos neotestamentário é queda de Jerusalém (70 D.C.). No caso especifico da Carta aos Hebreus, com tons fortemente judaicos, o fato de não se fazer qualquer menção à destruição da amada Jerusalém e seu precioso Templo, deve ser levado em conta. Na verdade, o contrário parece mais provável, pois o escritor dá entender que tanto o Templo quanto o seu sistema de sacrifícios ainda estão funcionado normalmente (10.1 ss.), mas que está cada vez mais próxima sua cessação (8.13). Sendo assim, é presumível um período da parte final da Guerra Judaica, ou seja o período que vai de 68 a 70 (D.C.).
Diante destes critérios norteadores temos um período mais amplo de 50 a 95 (D.C.) e um período mais restrito de 60 a 70 (D.C.). O conteúdo da carta se ajusta melhor com o período mais restrito. As perseguições fomentadas por Nero e a prisão e soltura de Timóteo se harmonizam com esse momento histórico. O Templo e sua estrutura eclesiástica ainda estão funcionando, mas brevemente serão completamente destruídos, o que se ajusta melhor com as afirmativas do escritor da carta. Podemos então pensar com certo grau de fundamentação em uma data próxima de 69 (D.C.).
Destinatário
Quem foram os leitores primários desta correspondência? O escritor não especifica e mais uma vez temos aberto várias possibilidades. O título “Pros Hebraious” (Aos Hebreus) é encontrado nos manuscritos gregos Sinaiticus (c. 330-360) e Vaticanus (c. 300-325). Entretanto, como são cópias, não é possível afirmar categoricamente que fizesse parte da redação original. Mas atestam a existência de uma tradição muito antiga que somada às evidências internas da carta podemos pensar que os destinatários desta carta eram judeus helênicos. Não faria sentido o autor recorrer aos textos veterotestamentário como forma de validar seus argumentos se os seus leitores fossem gentios.
Com base em evidências do próprio texto podemos caracterizá-los: a) um grupo específico de judeus crentes ou uma sinagoga está sendo endereçada (6.10; 10.32-34; 12.4; 13.7,19,23); b) eles parecem ser crentes judeus por causa das numerosas citações veterotestamentária e a matéria de assunto (3.1; 4.14-16; 6.9; 10.34; 13.1-25).; c) eles tinham experimentado alguma perseguição (10.32; 12.4);[14] d) eles tinham sido crentes por um longo tempo, mas ainda eram imaturos (5.11-14); e) eles estavam tentados a retornar às praticas do judaísmo (6.1,2). O que podemos afirmar é que foi dirigido a comunidades de judeus convertidos ao cristianismo, o que não impugna que haja uma minoria ou até mesmo uma prevalência de cristãos gentios entre seus membros, visto que havia um grande numero de prosélitos (não judeus) no judaísmo do primeiro século.
Onde esses leitores estavam estabelecidos? Vários locais foram sugeridos, mas uma vez mais temos um problema insolúvel. Foram sugeridas várias localidades como destinatária desta Carta: Jerusalém, Antioquia, Roma, Alexandria, Colossos, Éfeso, Beréia, e até Ravena. Até o século XIX de forma geral admitia-se a região da Palestina judaica ou mesmo a cidade de Jerusalém. Posteriormente tornou-se preferível se pensar em comunidades cristão-judaicas em Alexandria, no Egito, como a provável localização. E mais recentemente alguns têm preferido as comunidades estabelecidas na cidade de Roma como destinatária da correspondência.
Onde estava o escritor? A grande maioria dos comentaristas discute a partir da referência “Os da Itália vos saudam” (13.24). Aqui temos duas possibilidades: que o próprio autor se encontrava na Itália e envia saudações aos seus leitores que estavam residindo em outro local geográfico; ou que ele estivesse morando fora da Itália, juntamente com uma comunidade italiana de cristãos, e saúdam os que permaneceram na Itália. A preposição grega aqui utilizada (apo) “de”, parece apoiar a ideia de que os referidos estão na capital romana. Um suporte a esta opção é o fato de que a primeira referência à carta aos Hebreus (1 Clemente) vem justamente de Roma (MOFFATT, James, 1910, p. 446-447). Uma hipótese mais antiga é de que a correspondência foi destinada aos cristãos judeus que ainda permaneciam na região da Palestina judaica (WESTCOTT, 1892, p. XLI).
Propósito
A preferência dos comentaristas bíblicos é de que o autor escreve visando corrigir e animar judeu-cristãos que mediante as fortes pressões que estão sofrendo estão tentados a retornarem à velha religião do judaísmo. O conteúdo da carta nos permite concordar com esta posição. Mas tempos uma pluralidade de opiniões sobre as razões deste possível retrocesso:
v  Para os que defendem comunidades na Palestina judaica ou mesmo em Jerusalém entendem que a eminente destruição do Templo e da própria cidade de Jerusalém reacendeu a velha chama do judaísmo e por isso alguns da comunidade cristã desejam retornar ao judaísmo. Nada incomum visto que alguns que haviam saído do Egito queriam para lá retornar saudosos dos temperos egípcios.
v  Alguns conseguem perceber uma frustração por parte dos judeus convertidos em relação aos baixos padrões morais e da grande ignorância das Escrituras (Torá) por parte dos cristãos gentios.
v  Outros associam a apostasia em decorrência da decepção dos leitores no que concerne à demora da Parousia – retorno do Jesus Cristo glorificado.
v  Mais recentemente tem se levantado a possibilidade de que o motivo desta ameaça de apostasia está relacionado à pressão do legalismo judaico que continuava assedia-los fortemente, de maneira que a fé e esperança cristã estavam sendo corroídas. Lembrando que um grupo denominado de judaizantes faziam as rotas percorridas por Paulo para assediar os que iam sendo convertidos, a epístolas aos Gálatas tem este pano de fundo.  
Mensagem
Alguns comentaristas tem defendido a ideia de que o autor esteja esboçando uma Cristologia e de fato encontramos uma argumentação sublime em relação a pessoa e obra de Cristo. Todavia, não nos parece ser esse o cerne da carta, mas sim de exortar seus leitores a viverem de acordo com o ensino evangélico (2.1ss; 3.7ss; 6.1ss; 10.19ss e 12.1ss), como o fazemos em nosso sermões e/ou homilias. A característica parenética-pastoral da carta nos induz a pensar não tem em foco criar uma cultura antijudaica, mas renovar a fé adormecida dos seus leitores.
Outros comentaristas optam pelo argumento de que o autor está preocupado com a apostasia dos membros daquela comunidade. Entretanto, o termo apostasia usada pelo autor (apostasia, do verbo grego apostenai) etimologicamente não trás unicamente o sentindo de abandonar a fé cristã. Por sua vez os que negam a possibilidade de uma “desconversão” argumentam que o autor está se referindo a uma hipótese que na verdade não se concretizará. Ora, se assim for, por que então ele desenvolve esta ideia? Na medida em que vamos examinando o texto encontramos algumas expressões tais como: “que nos desviemos” (2.2), “um perverso coração de incredulidade, em nos afastarmos do Deus vivo” (3.12), “se caírem” (6.6), “se pecarmos voluntariamente” (10.26), e outras semelhantes. Por enquanto vamos deixar a discussão dessas expressões para quando dela nos ocuparmos no transcorrer dos estudos.
Creio que um propósito bem delineado do autor é fazer uma convocação, bem ao estilo dos profetas veterotestamentário, para que sejam os instrumentos de Deus para a realização do plano redentor – ou seja, continuemos a evangelizar sem esmorecer. Assim como Israel foi escolhido e adequadamente preparado para ser luz das nações, mas infelizmente falharam nesse quesito, a Igreja foi estabelecida e plenamente habilitada pelo Espírito Santo para ser “luz do mundo e sal da terra”. Mas o alerta é dado: caso coletiva ou individualmente nós venhamos a fracassar nesse objetivo, assim como ocorreu com os israelitas, seremos cortados e outros haverão de ocupar nosso lugar. Assim as citações difíceis acima mencionadas ficam um pouco mais claras em seu sentido primário. Quanto maior o privilégio, maior a responsabilidade!
Assim é possível percebermos na leitura que os primeiros leitores da Carta aos Hebreus, embora fossem genuínos cristãos, eles estavam negligenciando sua vocação missionária; mais preocupados com as questões eclesiásticas e religiosas e intimidados pela tensão criada pela forte hostilidade quer por parte do governo (Império Romano), quer pela própria sociedade (culpavam os cristãos por todas as catástrofes ocorridas), se contentavam em sentirem-se salvos e se acomodaram e não cuidavam de realizar toda a vontade de Deus para com eles e para com os outros que não conheciam a Deus em Cristo.
O escritor bíblico lembra-lhes que ser cristão não é somente adquirir um passe para o “trem celestial”, mas inclui amoldar um caráter genuinamente cristão. Assim a carta exorta os leitores de duas formas: negativa, exortá-los a que não falhem como Israel havia falhado; e positiva, por lhes apresentar a gloriosa Pessoa de Cristo e o Seu poder, como nosso aliado ou “parceiro” na continuidade da realização do plano redentor de Deus. Portanto, o moto da carta não é "Não voltem ou retrocedam!”, mas sim, “Avancemos Sempre!” (6.1).
E justamente este poderoso alerta que torna essa carta preciosa para nós ainda hoje – cristãos do século XXI. Mas infelizmente, como mencionamos no inicio este documento e sua mensagem tão relevante tem sido esquecida e negligenciada (como a maioria da literatura bíblica). Porventura não corremos hoje o perigo de nos acomodarmos (se é que já não estamos confortavelmente ajustados aso padrões deste mundo). Mas se pudermos sentir o frescor desta carta e sua mensagem; se pudermos ouvir com clareza sua convocação, então uma vez mais seremos renovados em nossa fé e nossa práxis cristã; uma vez mais haveremos de fazer resplandecer a luz de Cristo sobre todas as Nações, Povos e Etnias. Por esta razão vale a pena examinar esta Carta, pois nela encontraremos uma poderosa mensagem para a nossa época e para vida de todo genuíno cristãos em todos os tempos.
Quero concluir essa introdução com as palavras de João Calvino (1997 p. 21) sobre a relevância desta epístola aos Hebreus:
Classifico Hebreus, sem a menor hesitação, entre os escritos apostólicos. Não tenho dúvida de que foi pela astúcia de Satanás que muitos foram induzidos a impugnar sua autoridade. De fato não há nenhum livro da Santa Escritura que tão claramente fale do sacerdócio de Cristo, que tão sublimemente exalte a virtude e a dignidade daquele único e genuíno sacrifício que ele ofereceu através de sua morte, que tão ricamente trate do uso das cerimônias tanto quanto de sua remoção e, numa palavra, tão plenamente explique que Cristo é o cumprimento da lei. Portanto, não permitamos que a Igreja de Deus seja, ou nós mesmos sejamos privados de tão imensurável beneficio; ao contrário disso, que defendamos firmemente sua posse – Genebra, 23 de maio de 1549.

A Estrutura da Epístola Como Um Todo
A | 1.1-2.18 INTRODUÇÃO DOUTRINAL
      B | C | 3.1-4.13 A MISSÃO DE CRISTO
                 D | 4.14-16 APLICAÇÃO GERAL. "Tendo assim".
      B | Cl 5.1-10.18. O SACERDÓCIO DE CRISTO
                  D | 10.19-12. 29. APLICAÇÃO PARTICULAR. "Tendo assim".
A | 13.1-26. CONCLUSÃO PRÁTICA

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Referências Bibliográficas
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[1] Este manuscrito é chamado de Chester Beatty Papyri e foi copiado no final do segundo século.
[2] No Ocidente a Igreja teve resistências à autoria paulina até a última metade do século IV. O Cânon Muratoriano (uma lista de livros canônicos do NT de Roma, aproximadamente 180-200 dC ), Ireneu e Hipólito de Roma concordam que não saiu da pena de Paulo.
[3] Clemente de Alexandria em seu livro Hypotypos 150-215 dC, citado por Eusébio, diz que Paulo escreveu em hebraico e Lucas traduziu para o grego. Orígenes ( 185-253 dC ) afirmou que os pensamentos são de Paulo, mas foi escrito por um seguidor posterior, como Lucas ou Clemente de Roma. Somente com a dupla defesa de Jeronimo e Agostinho foi aceita a autoria paulina no Ocidente. Calvino em seu comentário declara: “Não posso apresentar nenhuma razão plausível para demonstrar que Paulo foi o seu autor;” (1997, p. 22).
[4] Tertuliano ( De Pudic. 20), no século II, acreditava que Barnabé (um levita associado a Paulo) o escreveu. (no século II) e que tinha mais autoridade do que o “Pastor de Hermas”, dando a entender que essa opinião era comumente aceita nos círculos a que ele pertence. Em sua defesa esta o fato dele ser um levita de Chipre (At 4.36) e, portanto, membro do grupo helenista na igreja de Jerusalém; introduziu Paulo em Antioquia e formaram a primeira equipe missionária (At 9.27; 11.30; 13.1—14.28) e, foi denominado “filho de exortação” (At 4.36), de modo a ser apropriado como autor da “palavra de exortação” (Hb 13.22). Henshaw (1952, 344) diz: "Se Barnabé tivesse sido o autor, nenhuma dificuldade teria sido sentida em qualquer lugar em aceitar a epístola ao cânon, como teria sido obra de um apóstolo". Lightfoot (1976, 24) conclui: "É provável que Barnabé como autor fosse simplesmente uma antiga hipótese avançada na ausência de qualquer conhecimento real sobre a questão”.
[5] No século XVI Lutero propôs o nome de Apolo como autor dessa epístola e posteriormente agregou diversos defensores. É uma figura carismática e conviveu com Paulo (cf. 1 Co 1-4), Priscila e Áquila e alguém versado nas Escrituras (At 18.24); natural de Alexandria, e muitos escritores têm encontrado numerosas ligações entre a epístola aos Hebreus e os escritos de Filo de Alexandria.
[6] Essa proposta tem duas razões: primeiro Lucas foi companheiro missionário de Paulo e segundo devido às semelhanças entre o grego de Hebreus e o de Lucas-Atos (Orígenes – H.E. 6.25.12). Westcott (1892, p. 76) observa: "Quando todas as concessões foram feitas para coincidências que consistem em formas de expressão que são encontradas também na Septuaginta ou em outros escritores do Novo Testamento, ou no final do grego em geral, a semelhança é inquestionavelmente notável”. Por sua vez Franz Delitzsch (1978, p. 409-417) sugeriu que Lucas atuou como secretário de Paulo, anotando as idéias de Paulo em seu próprio estilo e vocabulário, o que certamente amenizaria os problemas tanto da autoria paulina quanto de lucana de uma maneira que poderia ser muito viável.
[7] A sugestão mencionada por Shackelford (1987, p. 395) e Guthrie (1982, 2667), de Priscilla, esposa de Áquila, é bastante interessante, especialmente na era do feminismo em crescimento; ambos foram companheiros de Paulo (At 18.5; 19.22; 1 Co 16.10, 19 e provavelmente conheceram Timóteo(Hb 13.23); foram orientadores de Apolo (At 18.26). Explica a ausência do nome do autor pelo fato de ter sido escrito por uma mulher. Entretanto, Borchert (1985, p. 323) contrapõe: "É difícil fazer um argumento claro para um toque feminino específico neste livro e a ideia de que o livro não tem um autor porque o escritor era uma mulher é claramente um argumento do silêncio que pode ir em ambos os sentidos". Mas a ideia fica prejudicada pelo fato de que o autor faz uma referência de si mesmo no masculino singular (11.32).
[8] Sir William Ramsey disse que Filipe (o evangelista) escreveu para Paulo enquanto Paulo estava na prisão em Cesaréia, mas esta proposta recebeu pouco apoio.
[9] Mas Guthrie (1982, 2666) alerta: "Uma comparação cuidadosa de 1 Clemente com Hebreus não leva à convicção de que ambos foram escritos pelo mesmo autor".
[10] Lightfoot (1976 26) menciona brevemente Silas (ou Silvanus) como um possível candidato por causa de sua íntima associação com o apóstolo Paulo e suas conhecidas atividades de escrita (1 Ts 1.1; 2 Ts 1.1; 1 Pe 5.12). 
[11] Além desses nomes outros ainda mais improváveis foram sugeridos: Silas, Epafras, o diácono Filipe, Aristarco ou Maria, mãe de Jesus.
[12] Montefiore e Lo Blue (apud, Hurst 1985, p. 505) sustentam a posição de que Hebreus foi escrito de Éfeso por Apolo para a igreja de Corinto entre os anos 52 e 52.
[13] Uma possível explicação é oferecida por Shackelford (1987, p. 394) onde sugere que Paulo sabia que os judeus eram preconceituosos contra ele porque ele era um apóstolo dos gentios (Rm 11.13; cf. Atos 22:22), e ele não assinou seu nome para que eles pudessem mais prontamente receber a carta.
[14] O judaísmo era reconhecido como uma religião legal pelas autoridades romanas enquanto mais tarde no primeiro século o cristianismo foi considerado ilegal quando se separou da adoração da sinagoga.

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