Cada um de nós, por natureza, vê todo o mundo a
partir de um ponto de vista com uma perspectiva e uma seletividade peculiar a
si mesmo. E mesmo quando desenvolvemos fantasias desinteressadas, estas estão saturadas
e limitadas pela nossa própria psicologia. Concordar nessa particularidade no
nível sensorial — em outras palavras, não dar um desconto à perspectiva — seria
loucura. Deveríamos então crer que a estrada de ferro se estreita à medida que
a distância aumenta. Porém, queremos também fugir das ilusões de perspectiva em
níveis mais elevados.
Não estamos contentes em sermos as mônadas de
Leibniz [04].
Exigimos janelas. A literatura enquanto logos é
uma série de janelas, ou
mesmo
de portas. Uma das coisas que sentimos depois de ler uma grande obra é “eu
saí”. Ou, a partir de outro ponto de vista, “eu entrei”, perfurei a concha de
alguma outra mônada e descobri como é dentro dela. Por conseguinte, a boa
leitura, ainda que em essência não seja uma atividade afetiva, moral ou
intelectual, tem alguma coisa em comum com estas três possibilidades. No amor,
nós escapamos do nosso próprio ser para entrar em outro. Na esfera moral, cada
ato de justiça ou caridade envolve nos colocarmos no lugar da outra pessoa e,
assim, transcender a nossa própria particularidade competitiva. Ao conseguirmos
entender qualquer coisa, rejeitamos os fatos como são para nós e aceitamos os
fatos como realmente são. O impulso primário de cada um é manter e engrandecer
a si mesmo. O impulso secundário é sair do ser, corrigir seu provincianismo e curar
sua solidão. Estamos fazendo isso no amor, na virtude, na busca pelo conhecimento
e na recepção das artes. Obviamente esse processo pode ser descrito ou como um
engrandecimento, ou como uma aniquilação temporária do ser. Mas isso é um
antigo paradoxo: “quem perder a sua vida, salvá-la-á” [05].
Queremos
ver
com outros olhos, imaginar com
outras imaginações,
sentir com outros corações, e
com os nossos próprios
também.
Como consequência, nós temos satisfação em
entrar nas crenças de outras pessoas (aquelas, digamos, de Lucrécio [06]
ou de Lawrence [07]), ainda que pensemos que não são
verdadeiras. E nas paixões deles, ainda que as julguemos depravadas, como,
algumas vezes, as de Marlowe [08] ou Carlyle [09].
E também na imaginação deles, ainda que lhes falte completo realismo de
conteúdo.
Isso não deve ser entendido como se eu
estivesse mais uma vez fazendo da literatura de poder um departamento dentro da
literatura de conhecimento — um departamento que existia para satisfazer nossa
curiosidade racional a respeito da psicologia de outras pessoas. Isso é, não em
absoluto, uma questão (naquele sentido) de conhecimento. É connaitre
(“conhecer”), não savoir (“saber”); é erleben (“vivência”). Nós nos tornamos
esses outros “eus”. Não apenas nem principalmente para ver como são, mas para
ver o que eles veem; ocupar, por um momento, o assento deles no grande teatro, usar
seus óculos e se livrar de quaisquer percepções, alegrias, terrores, maravilhas
ou diversões que esses óculos revelem. Nessa altura é irrelevante se o estado
de humor expresso em um poema era verdadeira e historicamente o estado de humor
do próprio poeta ou um que ele também imaginou. O que importa é sua capacidade
de nos fazer vivê-lo. Duvido se o Donne histórico deu mais que um refúgio
brincalhão e dramático ao estado de humor expresso em A aparição. Duvido mais
ainda se o Pope histórico, salvo enquanto escreveu, e mesmo assim mais que
dramaticamente, sentiu o que expressou na passagem que começa com “Sim, estou
orgulhoso” [10]. O que isso importa?
Tanto quanto consigo entender, esse é o valor
ou benefício específico da literatura considerada como logos. Ela nos permite
ter experiências que não são as nossas. Nem todas elas têm o mesmo valor, assim
como as nossas próprias experiências também não têm. Algumas delas, conforme costumamos
dizer, “interessam-nos” mais do que outras. As causas desse interesse são
natural e extremamente variadas e diferem de uma pessoa para outra. Pode ser o
típico (e aí dizemos “isso é verdade!”) ou o anormal (e aí dizemos “que
estranho!”). Pode ser o belo, o terrível, o que causa espanto, o estimulante, o
patético, o cômico ou o simplesmente picante. A literatura proporciona uma
entrée para todas essas possibilidades. Aqueles dentre nós que têm sido
verdadeiros leitores durante toda a vida raramente compreendem de maneira plena
a enorme extensão do nosso ser da qual somos devedores aos escritores.
Compreendemos isso mais quando conversamos com um amigo que é um leitor não
literato. Pode ser uma pessoa cheia de bondade e bom senso, mas é alguém que
vive em um mundo minúsculo. Nós nos sentiríamos sufocados nesse mundo. A pessoa
que está contente em ser apenas ela mesma e, portanto, menos que um “eu”, está
em uma prisão. Os meus olhos não são o bastante para mim. Eu vejo através dos
olhos dos outros. A realidade, mesmo vista através dos olhos de muitos, não é o
bastante. Eu verei o que outros inventaram. Mesmo os olhos de toda a humanidade
não são suficientes. Lamento que os animais não possam escrever livros. Eu
aprenderia com muita alegria qual é a imagem que as coisas têm para um rato ou
para uma abelha. Mais alegre ainda
ficaria
se percebesse o mundo olfativo carregado com todas as informações e emoções que
este mundo tem para um cão.
A experiência literária cura a ferida da
individualidade sem diminuir o seu privilégio. Há emoções de massa que curam a
ferida, mas destroem o privilégio. Nossos seres isolados se fundem nelas, e
afundamos em uma subindividualidade. Mas, ao ler a grande literatura, eu me
torno mil homens e, mesmo assim, continuo a ser eu mesmo. Tal como o céu
noturno no poema grego, eu vejo com uma miríade de olhos, mas ainda sou eu quem
o vê. Na adoração, no amor, na ação moral e no conhecimento, eu transcendo a
mim mesmo, e nunca sou mais eu mesmo do que quando faço isso.
Utilização
livre desde que citando a fonte
Guedes,
Ivan Pereira
Mestre em
Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/
Notas
[cf. livro]
[04] Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), matemático e filósofo alemão.
Formulou o conceito de mônada, que seria a essência irredutível do ser.
Conforme Leibniz, a mônada está para a realidade metafísica assim como o átomo
está para a realidade física. [N. T.]
[05] Referência a um dito de Jesus registrado em Mateus 16:25, Marcos
8:35 e Lucas 9:24. [N. T.] [06] Lucrécio (94? a. C.-55 a. C.), poeta e filósofo
romano. [N. T.]
[07] D. H. Lawrence (1885-1930), poeta e romancista inglês. [N. T.]
[08] Christopher Marlowe (1564-1593), dramaturgo e poeta inglês, do
período elizabetano. [N. T.
[09] Thomas Carlyle (1795-1881), historiador e escritor escocês da
chamada Era Vitoriana. [N. T.] [10] Epílogo de Satires [Sátiras], dia, ii, 1.
208.
Referência
Bibliográfica
LEWIS,
C. S. Como cultivar uma vida de leitura. Tradução de Elissami Bauleo. 1.ed.
Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020.
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