Mesmo
antes da elaboração e definição do cânon do Novo Testamento, na praxe da
Igreja, Mateus recebeu a primazia entre os demais registros evangélicos. Em
contraste, o Evangelho segundo Marcos levou uma existência um tanto na periferia.
Dentre os quatro evangelhos é notável quão poucos excertos de Marcos eram
usados nas perícopes dominicais tradicionais. Mas na medida em que os estudos sobre
as literaturas evangélicas foram sendo ampliada e aprofundada, com aparecimento
de novas ciências, a relevância da narrativa de Marcos foi sendo redescoberta e
ocupando seu espaço em pé de igualdade dos demais textos evangélicos. E como
afirma Gunther: “Todavia, a importância
de Marcos para a história do cristianismo dificilmente se pode exagerar”
(1980, p. 53).
Autoria
O
Evangelho segundo Marcos é realmente anônimo visto que não especifica seu
autor. O título Grego, Kata Markon
[Segundo Marcos] é um acréscimo
posterior, mas há clara e forte evidência (externa e
interna) que Marcos foi seu autor. A inscrição simples κατὰ
Μάρκον é encontrada no manuscrito Aleph B (de acordo com Marcos). Com o passar do
tempo isso se tornou mais elaborada: no século
V o título era habitualmente εὐαγγέλιον κατὰ
Μάρκον (O Evangelho
segundo Marcos), posteriormente passou a ser denominado τὸ κατὰ
Μάρκον ἅγιον εὐαγγέλιον (Santo
Evangelho segundo Marcos).
Tratando
sobre os testemunhos históricos em relação à autoria do segundo evangelho, Donald Guthrie declara: "Tão forte foi o testemunho cristão antigo de
que Marcos era o autor deste evangelho que pouco precisamos fazer mais do que
mencionar este testemunho (1980, p.86-87). Ele é citado em diversas
referências históricas e eclesiásticas tais como Papias, Irineu,[1] o Cânon
Muratori, Clemente de Alexandria,[2]
Tertuliano, Orígenes[3] e
Jerônimo[4].
A
mais antiga referência da relação literária de João Marcos com a pregação
petrina é a de Papias (112 d.C.), que foi bispo de Hierápolis, na região da
Frígia, na Ásia Menor, até cerca de 130 d.C.
Suas palavras testemunhais encontra-se registrada na História da Igreja
(História Eclesiástica) de Eusébio, escrita em 325 d.C.:
E
o presbítero costumava dizer isto: ‘Marcos tornou-se intérprete [hermeneutes]
de Pedro e escreveu com exatidão tudo aquilo que ele se lembrava, é verdade que
não em ordem, das coisas ditas ou feitas pelo Senhor. Pois ele não tinha ouvido o Senhor nem havia
o seguido, mas mais tarde, de acordo como o que eu disse, seguiu Pedro, que
costumava ministrar ensino conforme se tornava necessário, mas não organizado,
por assim dizer, os pronunciamentos do Senhor, de sorte que Marcos nada fez de
errado ao pôr por escrito fatos isolados à medida que se lembrava deles. De uma
coisa ele cuidou: não deixou de fora nada do que ouvira e não fazer nenhuma
afirmação falsa”.
Desta
citação longa, Carson destaca três afirmações importantes: 1) Marcos escreveu o evangelho que, nos
dias de Eusébio, era identificado com esse nome; 2) Marcos não foi uma testemunha ocular, mas obteve informações com
Pedro; 3) Falta “ordem” ao evangelho
de Marcos, o que reflete a natureza esporádica da pregação de Pedro (1997,
p.103).
O
comentarista Bittencourt faz uma oportuna observação quanto ao termo utilizado
por Papias “intérprete”:
“Há quem o queira entender
à luz da terminologia dos judeus. Em suas sinagogas estes recorriam a
tradutores (intérpretes), que deviam transladar para a língua vulgar (aramaico
ou grego) os textos da Sagrada Escritura previamente lidos em hebraico. Marcos,
pois, em Roma, teria traduzido para o grego, língua comum do Império, a pregação
aramaica de Pedro. Outros equiparam ‘intérprete’ a ‘secretário’, atribuindo a
Marcos a função de consignar por escrito aquilo que Pedro pregava de viva voz
em grego. É possível que o discípulo tenha exercido uma e outra dessas
incumbências: a primeira, no inicio da estada de Pedro em Roma, quando o
Apóstolo pouco conhecia o grego; a segunda, posteriormente” (1960, p.121).
Desta forma, tudo indica
que a narrativa de Marcos é uma ampliação do Kerigma apostólico, ou seja, ele
se utiliza do esboço de pregação feita pelos apóstolos (no caso especifico de
Pedro) e vai desenvolvendo os contextos destas pregações. Um exemplo é o sermão
de Pedro em Atos 10.36-43 que
quando comparado com a narrativa de Marcos indica que o primeiro é um esboço da
vida e ministério de Jesus e que o evangelista amplia acrescentando mais
detalhes e informações.
Embora Marcos não tenha sido um dos discípulos originais
de Cristo, ele foi o filho de Maria, uma mulher de riqueza e posição em
Jerusalém (Atos 12:12), um companheiro de Pedro (1 Pe. 5:13), e o primo de
Barnabé[5] (Col.
4:10). Essas associações, especialmente sua associação com o Pedro que se
constituiu evidentemente na sua fonte de informação, deu autoridade apostólica
para o Evangelho de Marcos. O fato de Pedro referir-se a ele como “Marcos, meu filho,” (1 Pe. 5:13), pode
indicar ter sido ele a leva-lo a Cristo ou ao menos tê-lo batizado.
Em seu comentário sobre essa relação de João Marcos e o
apóstolo, João Leal destaca alguns aspectos do segundo Evangelho que se
relacionam diretamente com Pedro:
Lendo o segundo Evangelho,
nota-se imediatamente que o autor se fixa duma maneira especial nos factos e
pormenores que se relacionam com S. Pedro. O plano geral do Evangelho, é o
mesmo que S. Pedro traçou nos seus sermões, conservados por S. Lucas no livro
dos Actos, ‘principiando pelo batismo de João, até ao dia em que subiu aos céus’
(At 1:21ss.; 10:34-43; cf. Mc 1:1-4; 16, 19ss.). O Senhor começa a sua atuação
pública com a vocação de S. Pedro (Mc 1:16-18). Os fatos sucedidos na casa de
S. Pedro, em Cafarnaum, estãomais pormenorizados no segundo Evangelho do que
nos outros (Mc 1:29-34). Há também fatos indiferentes, que os outros Evangelhos
calam, mas que se notam no segundo, porque se trata de fatos nos quais toma
parte ativa o Príncipe dos Apostolos (Mc 1:35-38; 5:37-43). Em suma, a atuação
de S. Pedro reflete-se muito melhor no segundo Evangelho do que nos outros” (1945,
p. 171-172).
Somando a isto, ele esteve também em
associação com Paulo:
Ele teve o privilégio raro de acompanhar Paulo e Barnabé
na primeira viagem missionária mas fracassou em ficar com eles na viagem
inteira. Por causa isto, Paulo recuso-se a leva-lo na segunda viagem, assim ele
foi com o Barnabé para Chipre (Atos 15:38-40). Porém, alguns anos mais tarde
ele esteve outra vez com o Paulo (Col. 4:10; Fl. 24), e antes da execução de
Paulo ele foi solicitado pelo apóstolo (2 Tm. 4:11). Sua biografia prova que
aquela sua falha não o incapacitou a se tornar um instrumento útil (RYRIE,
1978, p. 1574)
Utilização
livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em
Ciências da Religião.
Universidade
Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/
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Referências Bibliográficas
BETTENCOURT,
Estevão. Para Entender os Evangelhos. Rio de Janeiro: Agir, 1960.
CARSON
D. A., DOUGLAS, J. Moo & MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento.
São Paulo: ed. Vida Nova, 1997.
CHAMPLIN,
Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. São
Paulo: Hagnos, 2006, 8ª ed.
DRANE,
John (Org.) Enciclopédia da Bíblia. Tradução Barbara Theoto
Lambert. São Paulo: Edições Paulinas e Edições Loyola, 2009.
GUTHIRIE,
Donald. New Testament Introduction. Illinois: Inter-Varsity
Press, 1980.
LEAL,
João. Os Evangelhos e a Crítica Moderna.
Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1945.
RYRIE, Charles Caldwell. The Ryrie Study Bible.
Chicago: Moody Press, 1978.
TENNEY,
Merrill C. (Org.). Enciclopédia da Bíblia. São Paulo: Cultura
Cristã, 2008.
[1]
Ele confirma a declaração de Papias de que Marcos escreveu seu evangelho
durante a vida de Pedro, mas acrescenta que os destinatários dele eram os
cristãos em Roma. Esse acrescimo informativo revela que Clemente tinha outras
fontes. Portanto, essa declaração de Clemente pode ser considerado como independente do
testemunho de Papias no que concerne a autoria do segundo evangelho.
[2]
Ele afirma que "depois da morte de
[Pedro e Paulo] Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro, também nos transmitiu por escrito as coisas
pregadas por Pedro" (Eusébio, HE 5.8.2-4, citando Contra
as Heresias 3.1.2).
[3]
"Marcos que fez como Pedro o instruiu"
[4]
"Marcos o intérprete do apóstolo Pedro"
[5]
Sendo Barnabé um levita alguns deduzem que Marcos também seja da linhagem
sacerdotal.
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