sábado, 7 de janeiro de 2017

Evangelho Segundo Marcos: Autoria e Título

            Mesmo antes da elaboração e definição do cânon do Novo Testamento, na praxe da Igreja, Mateus recebeu a primazia entre os demais registros evangélicos. Em contraste, o Evangelho segundo Marcos levou uma existência um tanto na periferia. Dentre os quatro evangelhos é notável quão poucos excertos de Marcos eram usados nas perícopes dominicais tradicionais. Mas na medida em que os estudos sobre as literaturas evangélicas foram sendo ampliada e aprofundada, com aparecimento de novas ciências, a relevância da narrativa de Marcos foi sendo redescoberta e ocupando seu espaço em pé de igualdade dos demais textos evangélicos. E como afirma Gunther: “Todavia, a importância de Marcos para a história do cristianismo dificilmente se pode exagerar” (1980, p. 53).

Autoria
O Evangelho segundo Marcos é realmente anônimo visto que não especifica seu autor. O título Grego, Kata Markon [Segundo Marcos] é um acréscimo posterior, mas há clara e forte evidência (externa e interna) que Marcos foi seu autor. A inscrição simples κατὰ Μάρκον é encontrada no manuscrito Aleph B (de acordo com Marcos). Com o passar do tempo isso se tornou mais elaborada: no século V o título era habitualmente εὐαγγέλιον κατὰ Μάρκον (O Evangelho segundo Marcos), posteriormente passou a ser denominado τὸ κατὰ Μάρκον ἅγιον εὐαγγέλιον (Santo Evangelho segundo Marcos).
Tratando sobre os testemunhos históricos em relação à autoria do segundo evangelho, Donald Guthrie declara: "Tão forte foi o testemunho cristão antigo de que Marcos era o autor deste evangelho que pouco precisamos fazer mais do que mencionar este testemunho (1980, p.86-87). Ele é citado em diversas referências históricas e eclesiásticas tais como  Papias, Irineu,[1] o Cânon Muratori, Clemente de Alexandria,[2] Tertuliano, Orígenes[3] e Jerônimo[4].

  A mais antiga referência da relação literária de João Marcos com a pregação petrina é a de Papias (112 d.C.), que foi bispo de Hierápolis, na região da Frígia, na Ásia Menor, até cerca de 130 d.C.  Suas palavras testemunhais encontra-se registrada na História da Igreja (História Eclesiástica) de Eusébio, escrita em 325 d.C.:  
E o presbítero costumava dizer isto: ‘Marcos tornou-se intérprete [hermeneutes] de Pedro e escreveu com exatidão tudo aquilo que ele se lembrava, é verdade que não em ordem, das coisas ditas ou feitas pelo Senhor.  Pois ele não tinha ouvido o Senhor nem havia o seguido, mas mais tarde, de acordo como o que eu disse, seguiu Pedro, que costumava ministrar ensino conforme se tornava necessário, mas não organizado, por assim dizer, os pronunciamentos do Senhor, de sorte que Marcos nada fez de errado ao pôr por escrito fatos isolados à medida que se lembrava deles. De uma coisa ele cuidou: não deixou de fora nada do que ouvira e não fazer nenhuma afirmação falsa”.
Desta citação longa, Carson destaca três afirmações importantes: 1) Marcos escreveu o evangelho que, nos dias de Eusébio, era identificado com esse nome; 2) Marcos não foi uma testemunha ocular, mas obteve informações com Pedro; 3) Falta “ordem” ao evangelho de Marcos, o que reflete a natureza esporádica da pregação de Pedro (1997, p.103).
O comentarista Bittencourt faz uma oportuna observação quanto ao termo utilizado por Papias “intérprete”:
“Há quem o queira entender à luz da terminologia dos judeus. Em suas sinagogas estes recorriam a tradutores (intérpretes), que deviam transladar para a língua vulgar (aramaico ou grego) os textos da Sagrada Escritura previamente lidos em hebraico. Marcos, pois, em Roma, teria traduzido para o grego, língua comum do Império, a pregação aramaica de Pedro. Outros equiparam ‘intérprete’ a ‘secretário’, atribuindo a Marcos a função de consignar por escrito aquilo que Pedro pregava de viva voz em grego. É possível que o discípulo tenha exercido uma e outra dessas incumbências: a primeira, no inicio da estada de Pedro em Roma, quando o Apóstolo pouco conhecia o grego; a segunda, posteriormente” (1960, p.121).  
Desta forma, tudo indica que a narrativa de Marcos é uma ampliação do Kerigma apostólico, ou seja, ele se utiliza do esboço de pregação feita pelos apóstolos (no caso especifico de Pedro) e vai desenvolvendo os contextos destas pregações. Um exemplo é o sermão de Pedro em Atos 10.36-43 que quando comparado com a narrativa de Marcos indica que o primeiro é um esboço da vida e ministério de Jesus e que o evangelista amplia acrescentando mais detalhes e informações.
Embora Marcos não tenha sido um dos discípulos originais de Cristo, ele foi o filho de Maria, uma mulher de riqueza e posição em Jerusalém (Atos 12:12), um companheiro de Pedro (1 Pe. 5:13), e o primo de Barnabé[5] (Col. 4:10). Essas associações, especialmente sua associação com o Pedro que se constituiu evidentemente na sua fonte de informação, deu autoridade apostólica para o Evangelho de Marcos. O fato de Pedro referir-se a ele como “Marcos, meu filho,” (1 Pe. 5:13), pode indicar ter sido ele a leva-lo a Cristo ou ao menos tê-lo batizado.
Em seu comentário sobre essa relação de João Marcos e o apóstolo, João Leal destaca alguns aspectos do segundo Evangelho que se relacionam diretamente com Pedro:
Lendo o segundo Evangelho, nota-se imediatamente que o autor se fixa duma maneira especial nos factos e pormenores que se relacionam com S. Pedro. O plano geral do Evangelho, é o mesmo que S. Pedro traçou nos seus sermões, conservados por S. Lucas no livro dos Actos, ‘principiando pelo batismo de João, até ao dia em que subiu aos céus’ (At 1:21ss.; 10:34-43; cf. Mc 1:1-4; 16, 19ss.). O Senhor começa a sua atuação pública com a vocação de S. Pedro (Mc 1:16-18). Os fatos sucedidos na casa de S. Pedro, em Cafarnaum, estãomais pormenorizados no segundo Evangelho do que nos outros (Mc 1:29-34). Há também fatos indiferentes, que os outros Evangelhos calam, mas que se notam no segundo, porque se trata de fatos nos quais toma parte ativa o Príncipe dos Apostolos (Mc 1:35-38; 5:37-43). Em suma, a atuação de S. Pedro reflete-se muito melhor no segundo Evangelho do que nos outros” (1945, p. 171-172).
Somando a isto, ele esteve também em associação com Paulo:
Ele teve o privilégio raro de acompanhar Paulo e Barnabé na primeira viagem missionária mas fracassou em ficar com eles na viagem inteira. Por causa isto, Paulo recuso-se a leva-lo na segunda viagem, assim ele foi com o Barnabé para Chipre (Atos 15:38-40). Porém, alguns anos mais tarde ele esteve outra vez com o Paulo (Col. 4:10; Fl. 24), e antes da execução de Paulo ele foi solicitado pelo apóstolo (2 Tm. 4:11). Sua biografia prova que aquela sua falha não o incapacitou a se tornar um instrumento útil (RYRIE, 1978, p. 1574)


Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/


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Referências Bibliográficas
BETTENCOURT, Estevão. Para Entender os Evangelhos.  Rio de Janeiro: Agir, 1960.
CARSON D. A., DOUGLAS, J. Moo & MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo:  ed. Vida Nova, 1997.
CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. São Paulo: Hagnos, 2006, 8ª ed.
DRANE, John (Org.) Enciclopédia da Bíblia. Tradução Barbara Theoto Lambert. São Paulo: Edições Paulinas e Edições Loyola, 2009.
GUTHIRIE, Donald. New Testament Introduction. Illinois: Inter-Varsity Press, 1980.
LEAL, João. Os Evangelhos e a Crítica Moderna. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1945.
RYRIE, Charles Caldwell. The Ryrie Study Bible. Chicago: Moody Press, 1978.
TENNEY, Merrill C. (Org.). Enciclopédia da Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2008.





[1] Ele confirma a declaração de Papias de que Marcos escreveu seu evangelho durante a vida de Pedro, mas acrescenta que os destinatários dele eram os cristãos em Roma. Esse acrescimo informativo revela que Clemente tinha outras fontes. Portanto, essa declaração de Clemente pode ser considerado como independente do testemunho de Papias no que concerne a autoria do segundo evangelho.
[2] Ele afirma que "depois da morte de [Pedro e Paulo] Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro, também nos transmitiu por escrito as coisas pregadas por Pedro" (Eusébio, HE 5.8.2-4, citando Contra as Heresias 3.1.2).
[3] "Marcos que fez como Pedro o instruiu"
[4] "Marcos o intérprete do apóstolo Pedro"
[5] Sendo Barnabé um levita alguns deduzem que Marcos também seja da linhagem sacerdotal.

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