sexta-feira, 15 de junho de 2018

Evangelho Segundo Marcos: Personagens Anônimos (5.1-20)



            Todos os filmes além dos atores principais há sempre um numero expressivo de “figurantes”, aquelas pessoas que passam pelas cenas, mas normalmente não falam absolutamente nada e por isso seus nomes acabam não sendo mencionados. Mas sem a participação destes “figurantes” as cenas ficaram vazias e sem sentido.
            No evangelho redigido por Marcos encontramos uma pequena lista de personagens cujos nomes ficaram desconhecidos. Mas alguns deles participam efetivamente das cenas, todavia ficamos sem saber quem eram. Na literatura extra bíblica alguns desses personagens têm sido identificados e nomeados, todavia, na maioria das vezes são no mínimo questionáveis, quando não totalmente inverossímil.
O fato deles não serem identificados nominalmente significa que pode qualquer pessoa, ou seja, estes personagens em seu anonimato tipificam as mais diversas pessoas e situações da vida cotidiana.  Abaixo indicamos esses personagens anônimos e as respectivas referências.
Personagens Anônimos no Evangelho Segundo Marcos
Um homem endemoninhado na Sinagoga (1.21-28)
A Sogra de Pedro (1.29-30)
O Geraseno endemoniado (5.1-20)
Uma mulher com fluxo de sangue (5.25-34)
A mãe de Herodias (6.24, 28)
Um soldado da guarda de Herodes (6.27)
Uma mulher síria-fenícia (7.24-30)
Dois dos discípulos de Jesus (11.1-7; 14.13-16)
Um escriba (12. 28-34)
Um dos discípulos de Jesus (13.1)
Uma Mulher que unge a cabeça de Jesus (14.3-9)
Um escravo do sumo sacerdote (14.47)
Um jovem que foge do Getsêmani nu (14.51-52)
Uma serva do sumo sacerdote (14.66-69)
[dois discípulos anônimos] - ([somente 16.12-13], cf. Lucas 24.13-35)

O Geraseno Endemoniado (5.1-20)
            Nada chama mais atenção do que um milagre e quando envolve um exorcismo fica ainda mais atrativo. Os casos de possessão são enumerados com várias doenças, mas sempre tratado de forma distinta delas. Outra característica é o fato de que Jesus Cristo lida com esses casos, não como alguém que sofre de insanidade mental, mas como uma pessoa que se encontra submisso a um poder espiritual distinto dele próprio. De todos os casos registrados na literatura evangélica não há outro descrito de forma tão minuciosa quanto este registro de Marcos. Seus dois colegas sinóticos também registram esse acontecimento (Mt 8.28-34; Lc 8.26-39), mas nenhum deles o faz de forma tão completa e detalhada quanto Marcos.[1]
A bíblia não explica como ocorre o processo da possessão, mas nas páginas do Segundo Testamento o fato é tratado como algo real[2] e não psicológico (como alguns querem explicar) e Jesus teve que tratar com essa situação muitas vezes durante seu ministério terreno, mas como tudo o mais os evangelistas fizeram uma seleção de quais situações registrariam. Essas narrativas não são aleatórias, mas cada um dos evangelistas as utiliza dentro de seus propósitos literários em harmonia aos seus leitores primários.
Um aspecto importante é que o ser humano tornou-se sujeito aos poderes malignos somente após a queda. O pecado não somente destruiu a imagem e semelhança que o ser humano tinha com Deus, como escancarou sua vida para as ações dos espíritos malignos, que assim como seu chefe mor somente entram na vida das pessoas para – matar, roubar e destruir. Esta narrativa marqueana ilustra de forma clara as consequências da atuação maligna na vida humana.
Este acontecimento ocorre logo após Jesus ter acalmado a grande tempestade que por pouco não levou o pequeno barco ao naufrágio. Assim como Jesus tem pleno domínio sobre a natureza, acalmando a violenta tempestade apenas com uma palavra, igualmente possui autoridade plena sobre as coisas espirituais, incluindo os espíritos malignos.
 
A narrativa se inicia delimitando o espaço geográfico do acontecimento que será narrado: “chegaram ao outro lado do lago, o território [país] dos gerasenos [gadarenos]”. Os romanos deram o nome de Decápolis (que significa 'dez cidades') a uma extensa região situada em grande parte ao sul e a leste do mar da Galileia. Seus habitantes eram principalmente gentios. Os evangelistas mencionam duas de suas localidades, Gadara e Gerasa, e certas ocasiões em que Jesus visitou a região.
 Marcos nos oferece muitos detalhes: o endemoniado vem “imediatamente” ao encontro de Jesus e se prostra, não para adorar, mas em um gesto de vencidos de guerra, reconhecendo a vitória de Jesus e rogando clemência: “Que tenho eu contigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo?”,[3] mas como em outras ocasiões
Jesus rejeita, ainda que correta, essa expressão proferida pelos espíritos malignos.[4] A degradação desse homem é total: vivia “entre as sepulturas” e ninguém “podia prendê-lo mesmo utilizando cadeias”;  perambulava sem direção, dia e noite, entre as montanhas e túmulos (nas cavernas)[5]  gritando e se autoflagelando, totalmente sem roupas. Mateus (8.28) diz que ele era "excessivamente feroz, para que ninguém passasse por aquele caminho", ele era o terror de toda aquela região. Humanamente falando aquele homem não tinha nenhuma esperança, mas Jesus veio para aqueles que não têm esperança de salvação por si mesmo. Todos que o conheciam queriam se livrar dele, mas Jesus buscar e salvar os párias da sociedade. Como o homem não tem seu nome identificado ele torna-se uma perfeita representação do ser humano sem Deus e totalmente à mercê das ações malignas.
            Como de vezes anteriores Jesus não toca e nem se utiliza de rituais (teatrais) como é comum nos antigos e atuais “exorcistas”. Ele expulsa os demônios unicamente com uma ordem (cf. Mt. 8.16), assim como fizera quando com apenas uma ordem fez sossegar a imensa e destrutiva tempestade “sossegai”.
Mas o evangelista torna a cena ainda mais dramática quando Jesus pergunta: “Qual é o seu nome?” e a resposta vem imediata: “Meu nome é legião, pois somos muitos”.[6] O fato de não desejarem sair da região: “não nos envia para fora desta região” demonstra que as ações desses demônios não se restringiam apenas àquele homem, mas agiam por todo aquele espaço geográfico, assim como as legiões romanas impunham violentamente a vontade do Império sobre todas as pessoas e lugares. Que situação miserável deste homem! Que situação desgraçada do ser humano sem Deus!
O caráter desses seres infernais fica evidente no pedido que fazem a Jesus, pois sabiam que teriam que abandonar o corpo daquele homem e que não podiam resistir ao poder de Jesus: “envia-nos para aqueles porcos”, pois havia uma vara de porcos próximo deles. Os demônios temiam que Jesus os mandasse para o abismo (Lc 8.31; Ap 9.1-2; 9.11; 20.1-3), o que para eles teria significado tormento eterno e o fim de sua liberdade de ação. Eles sabiam quem era Jesus e o que poderia fazer com eles.
O texto nos revela que Jesus tem plena consciência da existência dos seres malignos; de que eles apenas operam para o mal e que para eles uma vida humana vale tanto quanto a de um porco (animal irracional). Informados imediatamente por seus funcionários, a atitude dos proprietários da vara de porcos, que possuídos pelos seres malignos se lançam de um despenhadeiro ali próximo, é semelhante às dos demônios; ao invés de se alegrarem pelo pleno restabelecimento da vida daquele homem, roga/suplica que Jesus saia de suas terras, pois lhes causou um grande prejuízo financeiro. O dinheiro era mais importante que a cura daquele homem ou a salvação de suas próprias almas, pois ao rejeitarem Jesus estavam rejeitando a libertação que somente Ele poderia lhes proporcionar e permaneceram reféns das artimanhas e influencias do diabo. Há um sentimentalismo barato que tem prevalecido nos dias atuais, em que se entristece e se compadece de um animal, mas não reação igual quanto à situação miserável de milhões de pessoas. Na escala de valores de Deus, não nada tão importante quanto uma alma humana.
Outro detalhe interessante aqui é a reação de medo/temor de todas aquelas pessoas ao verem aquele homem, que era o terror de toda aquela região, “assentado, vestido e em perfeito juízo (com a mente saudável ou em suas perfeitas faculdades mental)”. Temeram a sanidade mental dele! Assim como os discípulos se “espantaram” quando Jesus acalmou a terrível tempestade, agora é de a vez daquela pequena multidão ficar “espantados” com o poder Jesus sobre os demônios.
Aquele homem vendo-se agora completamente libertado da possessão demoníaca expressa seu desejo de servir e seguir a Jesus, a reação imediata de todos que experimentam uma genuína libertação do pecado. Todavia, a orientação de Jesus é que ele permaneça naquela região e seja uma testemunha do que Jesus está fazendo em favor das pessoas oprimidas pelo diabo, junto aos seus familiares e demais moradores da cidade. E aqui temos uma dupla dose de ironia:
enquanto no território eminentemente judaico Jesus não incentivava as pessoas a anunciarem suas ações (cf. 1.25, 34 e 44; 3.12), para não antecipar os eventos relacionados à sua missão messiânica, mas aqui Ele orienta o homem liberto a anunciar/proclamar/pregar a todos o que lhe havia acontecido, pois anunciar o Evangelho não se trata apenas de dogmas teológicos, mas de compartilhar fatos concretos que Jesus produziu na sua vida, na sua história;
a outra é que Jesus atende aos pedidos dos demônios e dos moradores daquele lugar, mas não atende ao pedido daquele homem que desejava ir com ele e servi-lo. Ser missionário para Cristo, na região onde ele era tão conhecido e temido há tanto tempo, era um chamado muito mais nobre do que segui-lo onde ninguém jamais ouvira falar dele. E assim que Jesus partiu com os discípulos aquele homem liberto começou a anunciar - não apenas entre seus familiares e amigos, mas "em Decápolis" – as dez cidades que perfazem toda aquela região.
Essa é a marca distintiva de uma genuína conversão – falar do que Jesus fez na sua vida – e não apenas usufruir dos benefícios da salvação. O evangélico materialista e hedonista apenas deseja “levar vantagem” através do Evangelho, mas não tem o mínimo compromisso em anunciar o que Jesus fez por ele, pois na verdade jamais experimentou uma real conversão.
A grande tática do diabo é ficar invisível ou imperceptível aos olhos humanos. O ceticismo que predomina na mentalidade moderna e pós-moderna dos dias atuais ignora completamente as ações malignas, bem como a própria existência de Deus. O ceticismo é a melhor terra para Satanás lançar seu joio, de maneira que as colheitas de vidas serão abundantes. Nunca se viu a maldade em escala tão crescente como nesses últimos tempos; nunca se viu tanta violência (o numero de homicídios extrapola todas as estatísticas) e miséria humana, da qual a “cracolândia” é apenas um pequeno lampejo da destruição de vidas pelo caminho das drogas – é impossível olhar tais cenas e não pensarmos neste homem descrito aqui no texto evangélico de Marcos. As legiões tem se multiplicado por todas as cidades brasileiras! Não há uma família que não tenha ao menos uma pessoa envolvida com as drogas ou álcool.
E da mesma forma que aconteceu naqueles dias, ainda hoje, somente Jesus pode libertar o ser humano da escravidão de Satanás e do pecado. Somente a mensagem simples do Evangelho ainda continua sendo o único poder para salvação de todo aquele que crê.
Mas enquanto as pessoas estão sofrendo horrivelmente debaixo das influências malignas do inferno, os evangélicos brasileiros estão preocupados com seu time de futebol, com a seleção brasileira, com a construção de novos templos (mais confortáveis), com a troca do carro, da casa e alguns até dos cônjuges.
Da mesma forma com que os sacerdotes alojados confortavelmente no suntuoso templo que foi enriquecido por nada menos do que Herodes e que viviam à custa dos ofertantes; assim como os fariseus, saduceus e escribas se digladiavam em discussões teológicas inúteis e estéreis de amor ao próximo e semelhantemente aos herodianos e zelotes que estavam preocupados em impor seus sistemas de governo e dispostos a matarem por isso, o evangelicalismo brasileiro está totalmente alienado da terrível realidade em que milhões de brasileiros vivem debaixo das ações malignas e mortíferas das hostes infernais. É preciso ler e reler continuamente essa passagem evangélica marqueana e que é repetida pelos dois outros evangelistas que enfatiza por si só a importância de sua mensagem.
Quando ouvirem o grito: “O Noivo chegou!” Os evangélicos materialistas e hedonistas entraram em desespero, pois verificaram que o azeite de suas lâmpadas está se acabando e desesperados irão correr atrás de mais óleo, mas quando retornarem a porta [estreita] estará fechada e eles ouviram as terríveis palavras: “Não vos conheço!” Despertai vós que dormes!

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Historiologia Protestante
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Referências Bibliográficas
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BETTENCOURT, Estevão. Para Entender os Evangelhos.  Rio de Janeiro: Agir, 1960.
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CARSON D. A., DOUGLAS, J. Moo & MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo:  ed. Vida Nova, 1997.
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TUYA, Manuel de. Biblia Comentada – Evangelios. Texto de la Nácar-Colunga, Parte Va.


[1] Mateus nos informa que dois homens possuídos por demônios vem ao encontro de Jesus (Mt 8.28), mas Marcos e Lucas se concentram suas narrativas apenas em um deles, provavelmente por causa de sua disposição de ir com Jesus e ser seu discípulo.
[2] Os evangelistas utilizam termos específicos: Mateus afirma expressamente que eles eram "possuídos pelo diabo", ou “endemoniado”, (δαιμονιζομενοι); Marcos diz que ele tinha "um espírito impuro", isto é, um espírito caído; e Lucas afirma que ele "tinha demônios por muito tempo", e era chamado de Legião, "porque muitos demônios entraram nele".
[3] A expressão “Filho do Altíssimo” está dentro do contexto judaico-helênico e na versão grega da Septuaginta está sempre sendo proferida por pagãos em referência ao Deus de Israel (Gn 14.18-20; Nm 24.16; 2Sm 22.14; Ex 15.1; Is 14.14; Jr 5.18, 21), o mesmo ocorrendo nas literaturas do Segundo Testamento (Atos 16.17; Hb 7.1), bem como nos textos produzidos pelos judeus da Diáspora.
[4] O primeiro ato de atividade pública de Jesus é o confronto com o espírito maligno. O primeiro em uma sinagoga judaica e agora em um espaço de predominância gentílica. Jesus vem para realizar a Nova Criação, trazendo ordem e beleza onde há apenas caos e escuridão.
[5] Os judeus não mantinham seus sepulcros dentro das cidades, para que não fossem contaminados; portanto, eles enterravam seus mortos nos campos ou montanhas. Seus sepulcros eram frequentemente escavados na rocha nos lados das colinas de calcário, e eram elevados e espaçosos, com câmaras de várias dimensões, algumas com mais de 20 pés quadrados, com recessos nas laterais para os corpos; para que os vivos pudessem entrar neles e ali depositarem seus entes queridos.
[6] Uma legião romana nos dias de Augusto poderia ter quase seis mil homens. Para todos os povos dominados pelo Império Romano (em si mesmo um símbolo do mal cf. Apocalipse), aqui especialmente para os judeus e posteriormente os cristãos, as legiões romanas eram símbolo de dor, sofrimento e morte - um grupo bem organizado, armado, pronto para a guerra e com grande poder de destruição. Perfeita ilustração do que representa Satanás e seus demônios.

quinta-feira, 7 de junho de 2018

Primeiro Testamento: Literatura Histórica - 1º Samuel – Contexto Histórico



            Tudo tem um começo”. Está pequena frase descreve muito bem o conteúdo do primeiro livro de Samuel. Diferentemente do que o índice da Bíblia possa indicar a monarquia de Israel não começa com as narrativas dos livros de Reis, mas seus primórdios e evolução são registrados nas páginas dos dois livros que levam o nome de Samuel. Até esse momento a organização que prevalecia era o sistema tribal onde cada uma das doze tribos tinha plena autonomia e se associavam quando surgiam ameaças externas. A figura catalizadora desse período eram os juízes que periodicamente surgiam, mas eram regionais e não deixavam sucessores. O livro recebe o nome de Samuel por que esse personagem permeia toda a narrativa. O livro se abre com as questões envolvendo o nascimento e desenvolvimento da vida de Samuel até o momento em que ele assume a função de Sacerdote, acumulando também a referência de juiz. Posteriormente, mediante pressão das lideranças tribais, vai surgir a figura do rei cujo primeiro a ser instalado, pela aclamação popular, foi Saul da tribo de Benjamim.
            Os dois livros de Samuel abrangem um longo período da história israelita: primeiro livro de Samuel registra quase um século de história, desde 1100 até 1011 AC, tendo as figuras de Samuel e Saul se destacando; o segundo livro de Samuel resumem quarenta anos de história, ou seja, de 1011 até 971 AC, e a proeminência esta na figura de Davi, desde sua infância, sua ascensão ao trono israelita e a consolidação da monarquia e estabelecimento da dinastia davídica, que posteriormente se tornará a dinastia messiânica, que se constituirá no ponto central da mensagem profética preservada na bíblia hebraica e depois inserida na bíblia cristã.
Contexto Histórico
O período de 1200 a 900 AC foi de desassossego nacional e controvérsia política. Há ressonâncias desse longo período nas literaturas históricas de Heródoto, Beroto, Josefo e posteriormente Eusébio. Desta forma, na conjunção destes registros históricos e as descobertas arqueológicas novas informações vão surgindo e afirmando e esclarecendo nosso conhecimento do período durante o qual ocorreram os acontecimentos de 1 e 2 Samuel.
Este período de desassossego, agitação e transição inicia-se com as migrações dos povos do mar que, direta ou indiretamente, afetaram todo o antigo Oriente. As conjunções políticas-econômicas-bélicas nos grandes impérios ao derredor de Canãa estavam passando por um período de convulsões e declínio. Neste período de Samuel governavam o Egito os sacerdotes da XX dinastia e os governantes faraós da XXI dinastia, cujos reinados se caracterizaram por debilidade, decadência e desunião nacionais. A Assíria e a Babilônia igualmente experimentavam suas convulsões: a debilidade interna e as invasões do exterior estavam à ordem do dia.
Desta forma a influência política do Egito e da Síria sobre a região de Canaã era inexistente nestas circunstâncias.  As migrações dos povos do mar e dos aramaicos se acrescentaram às dificuldades internas, e mantiveram a situação política internacional em todo o antigo Oriente em permanente estado de alerta durante quase dois séculos.
Dentro deste quadro de calmaria em toda região canaanita/palestino as tribos israelitas puderam consolidar seus territórios conquistados desde os dias de Josué. Agora aproveitando este período de plena autonomia e cansados das incursões dos povos fronteiriços, como os filisteus, amalequitas, edomitas, medianitas e amonitas, de modo que eles começam a pressionar o envelhecido juiz-profeta-sacerdote Samuel para estabelecer um sistema monárquico.
Aproveitando esse período de debilidade dos grandes impérios os primeiros reis de Israel foram reconquistando os territórios invadidos e submetendo seus vizinhos e nos governos de Davi e Salomão as fronteiras de Israel alcançaram sua maior extensão.
Ao introduzi-los na terra de Canaã ficou ordenado que em todas as tribos deveriam serem estabelecidas cidades para os levitas, que ficaram sem uma região especifica, para que pudessem instruir o povo quanto à Lei de Deus. Mas as narrativas no livro de Juízes deixam claro que os descendentes de Moisés-Josué pouca ou nenhuma atenção deram às palavras de Deus (qualquer semelhança com o evangelicalismo atual não é mera coincidência).  Muitas tribos não estabeleceram cidade para os levitas e foram se amalgamando com remanescentes dos povos canaanitas que não foram expulsos de seus territórios. A maior ironia é o caso de Jonatas, neto de Moisés (Jz 18.30) foi morar na casa de Mica o efraimitas (Jz 17.5) e chegou a ser sacerdote para a “casa dos desuses” de Mica e depois rouba as imagens e se refugia na tribo de Dã para ser ali sacerdote (Jz 18). Estabelece-se então o ditado “cada um fazia o que bem lhe parecia" e um circulo vicioso de afastamento, arrependimento e retorno a Deus, que permanece até os dias de Samuel, o último dos juízes.
A partir de Samuel este nefasto circulo é rompido. O jovem Samuel assume após a morte do velho sacerdote Eli, cujos filhos eram decadentes e acabaram morrendo em uma batalha mal sucedida.
O jovem sacerdote torna-se itinerante e de tribo em tribo foi resgatando os princípios da Lei de Moisés. Como não poderia estar em vários lugares ao mesmo tempo ele começa a estabelecer “escolas” onde jovens eram recebidos para aprenderem a ler e interpretar as Leis, a música e a preservarem a história religiosa. Estabelece uma em Ramá seu lar paternal (1Sm 19.19-24), mais tarde surgiram uma Gilgal (2Rs 4.38) e outra em Betel (2Rs 2.3) e Jericó (2Rs 2.15-22), essas três últimas  funcionavam nos dias dos profetas Elias e Eliseu. A expressão "escolas dos profetas" não aparece na literatura do Primeiro Testamento, mas os jovens que ali estudavam eram chamados "filhos dos profetas".  Dedicavam-se ao serviço de Deus e alguns deles serviam como conselheiros do rei.
Esboço (1 Samuel 1.1-2.11)
História de Samuel
v  Nascimento e Preparação Inicial (1.1-2.11)
o   Elcana e Ana (1.1-8)
o   Oração de Ana (1.9-18)
o   Nascimento de Samuel e sua consagração (1.19-28)
o   Cântico de Ana (2.11)

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Guedes, Ivan Pereira
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Referências Bibliográficas
BALANCIN, Euclides Martins. História do Povo de Deus. São Paulo. Paulus, 1989.
BAXTER, J. Sidlow. Examinai as Escrituras – Juízes a Ester, ed. Vida Nova, São Paulo, 1993.
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CASTEL, Francois. Historia de Israel y de Judá. Desde los orígenes hasta el siglo II d.C. Estella. Editorial Verbo Divio, 1998.
CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. São Paulo. Hagnos, 2006, 8ª ed.
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DRANE, John (Org.) Enciclopédia da Bíblia. Tradução Barbara Theoto Lambert. São Paulo. Edições Paulinas e Edições Loyola, 2009.
FOHRER, Georg. História da religião de Israel. Tradução de Josué Xavier; Revisão de João Bosco de Lavor Medeiros. São Paulo. Edições Paulinas, 1982.
FRANCISCO, Clyde T.  Introdução ao Primeiro Testamento. Rio de Janeiro. JUERP, 1969. 
GARDNER, Paul (Editor). Quem é quem na bíblia sagrada – a história de todos os personagens da bíblia. Tradução de Josué Ribeiro. São Paulo. Vida, 1999.
Halley, H. Manual Bíblico. São Paulo. Sociedade Religiosa Edições Nova Vida, 1983.
HOFF, Paul.  Os livros históricos. São Paulo. Vida, 1996.
TENNEY, Merrill C. (Org.). Enciclopédia da Bíblia. São Paulo. Cultura Cristã, 2008.