A narrativa evangélica
produzida por Marcos é a mais curta entre os quatro Evangelhos, mas de forma
alguma implica em que seja menos relevante ou que seu conteúdo seja limitado.
Ainda que no arranjo do Segundo Testamento e/ou Novo Testamento de nossa bíblia
cristã esse evangelho foi colocado em segundo lugar, muitos são os estudiosos
que defendem com afinco que seja essa a narrativa que primeiramente começou a
circular e que os demais evangelistas Mateus e Lucas[1] fizeram dele a espinha
dorsal de suas próprias narrações.
O texto produzido por João
Marcos, reproduzindo as memórias do Apóstolo Pedro, é rico em detalhes e
informações concernentes a Jesus e seu ministério, construído com uma dinâmica
que tira o nosso folego, o que prende seu leitor do começo ao fim. Desde o início
a narrativa nos revela um Jesus em continuo movimento, seu ministério é
totalmente itinerante, não se preocupando totalmente com pessoas. Em nenhum
momento Jesus se preocupa com coisas ou com sistemas religiosos, pois Ele não
veio para estabelecer um Reino material e nem estabelecer mais um Sistema
Religioso – em suas próprias palavras: “Eu vim buscar e salvar o que estava
perdido”. Somente este aspecto demonstra o abismo que existe entre a proposta
evangélica de Jesus e o que se apelida de “evangélico” no Brasil nos dias
presentes (quem tem olhos veja).
Uma característica da
narrativa elaborada por Marcos, posteriormente seguida pelos seus colegas
evangélicos, é destacar ou enfatizar a última semana de Jesus a partir de sua
entrada triunfal na cidade de Jerusalém, onde ele dedica a terça parte de seu
texto aos acontecimentos desta última semana.[2] No caso especifico de Marcos
inicia-se no capítulo onze até o quinze, culminando com a ressurreição de Jesus
no primeiro dia da semana. Podemos perceber o contraste entre a brevidade do
relatório dos acontecimentos anteriores e os pormenores por ele anotados no que
se refere à Semana da Paixão.
O capítulo onze inicia com a
entrada de Jesus em Jerusalém, mas diferentemente das vezes anteriores em que
sua presença não chamou muito atenção das autoridades romanas ou religiosas
judaicas, essa vai ser acompanhada de uma comoção popular impossível de não ser
percebida.
Para termos uma visão mais ampla do capítulo
onze podemos subdividi-lo conforme segue:
(versos
1-10) entrada Triunfal de Jesus em Jerusalém
(verso
11) visita rápida ao Templo e retorno a Betânia
(versos
12-14) maldição da figueira no percurso de Betânia a Jerusalém
(versos
15-19) expulsão dos vendilhões do Templo
(versos
20-25) ensino sobre a fé e a oração
(versos
27-33) as lideranças judaicas questionam a autoridade de Jesus
Entrada
Triunfal de Jesus em Jerusalém
Como em toda sua narrativa o
evangelista Marcos mantém o comedimento sem, todavia, perder os detalhes. Seu
enfoque esta no fato de que as pessoas pressentem que Aquele que adentra aos
portões da cidade esta investido de características messiânicas, razão pela
qual se manifestam de forma tão efusiva e Jesus aceita essas manifestações,
pois tem plena consciência de quem Ele é e do que haverá de enfrentar nos dias
a seguir.
A narrativa realça diversas
referências que levam seus leitores a ter a percepção do messianismo de Jesus:
v Jesus
escolhe adentrar na cidade montado em um jumentinho[3] – clara referência à
profecia de Zacarias (9.9). A utilização do jumentinho sempre foi um
contraponto em relação à ostentação dos poderosos que utilizavam seus cavalos
mais vistosos para suas entradas triunfais; os jumentinhos eram animais
utilizados pelos mais simples e para tarefas corriqueiras; os próprios Mestres
judaicos encontravam dificuldades em entender porque o profeta havia feito tal
escolha para apresentar o Messias em sua entrada triunfal montado em um animal
tão humilde. (nós também continuamos a não entender). O fato peculiar de ser um
jumento que ainda não havia sido utilizado esta relacionado com o conceito de
pureza, visto que, ainda não havia sido maculado e portanto estava apto para
utilização sacral , o que caracterizava aquela entrada de Jesus Cristo o
Messias.(cf. Nm 19.2; Dt 21.3; 1 Sm 6.7).
v A
utilização de manto sobre o jumento é simples pelo fato de Jesus não montar em
pelo e as mantas e folhas de palmeiras colocada pelas pessoas no trajeto de
Jesus era uma deferência de aclamação popular diante de uma figura real (cf. 2
Rs 9.13), bem como uma referência ao cântico de Débora (Jz 5.10) bastante
conhecido e popularizado entre os judeus.
v A
expressão “Hosana” é extraída do Salmo 118.25[4] (Ó Senhor, por favor,
salva-nos!) mas que naqueles dias havia tornado uma espécie de “Viva!” Utilizado
em qualquer tipo de aclamação e que durante a Festa dos Tabernáculos havia o “Dia do Hosana”. Complementando as
pessoas diziam enquanto Jesus passava: “Bendito seja aquele que vem em nome do
Senhor...” parte do mesmo salmo citado acima verso 26, utilizada também na
Festa dos Tabernáculos, e Mateus o combina com a expressão messiânica “Filho de Davi” (21.9), mas também para
recepcionar os soldados quando retornavam vitoriosos de uma batalha, visto que
para os judeus as vitórias eram sempre a manifestação do favor de Yavé. Ainda o
refrão “Bendito seja o Reino que vem, o reino de Davi, nosso pai”, exclusivo de
Marcos, coaduna com toda a expectativa acumulada ao longo dos séculos da
esperança escatológica relacionada ao trono de Davi, que haveria de ser restaurado.
Infelizmente a multidão está pensando tão somente em uma restauração nacional,
com reestabelecimento do trono davídica, de cunho terreno e político. Por fim, a expressão “Hosana no mais alto dos céus”, era a expressão maior de gratidão ao
mesmo tempo em que se revestia de um clamor do crente, encontrada em diversas
ocasiões nos relatos bíblicos da bíblia hebraica, e nos remete também ao Salmo
148.1 e Lucas 2.14.
O que o relato sucinto de
Marcos deseja expressar é que tanto da parte de Jesus, quanto dos discípulos e
da própria multidão, havia um consenso de que aquele momento de revestia de
muito maior importância do que se poderia contemplar apenas com os olhos e
ouvidos. Essa entrada de Jesus é algo diferente, algo completamente novo, que
vem ao encontro das aspirações de uma população sobrecarrega pelos anseios da
vida e esmagada pela tirania de governantes políticos e religiosos
inescrupulosos, que agiam somente em busca dos seus próprios interesses (mais
uma vez quem tem olhos veja). Era a vinda do Messias que os libertaria de seus
aguilhões físicos, emocionais e espirituais. Jesus torna-se a esperança deles –
Hosana! Hosana! Hosana! Seus milagres anteriores e mais recentemente a
ressurreição de Lazaro fomenta as aspirações dessa população cansada e
sobrecarregada.
Jesus não adentra a cidade de
Jerusalém como um rei ou general triunfalista, como tantos já o haviam feito na
história dos judeus e nem mesmo escoltado por um exército poderoso; Jesus está
entrando para atender não as expectativas populares, que ao final daquela mesma
semana mudaram completamente em relação a Ele, mas para cumprir os desígnios de
Deus conforme havia anunciado em diversas ocasiões anteriores e que Marcos
registra de forma tríplice desde quando se iniciou a subida para Jerusalém
(8.31-32; 9.30-32 e 10.32-34).
Ademais, a entrada de Jesus é o cumprimento
minucioso das palavras proféticas de Zacarias 9.9:
Exulta
com todas as tuas forças, ó filha de Sião,
Grita
de alegria, ó filha de Jerusalém!
Eis
que teu Rei vem a ti:
Ele é
justo e vitorioso, humilde e montado num jumentinho,
sim,
montado num jumentinho, filho de uma jumenta.
Suprimira
os carros de guerra de Efraim
e os
cavalos de Jerusalém;
o arco
de guerra também será suprimido.
Proclamai
a paz para as nações,
sua
dominação irá de mar a mar, e do rio aos confins da terra.
Aqui
estão as características do Messias: sua Justiça não seria
implantada pela força dos exércitos e das guerras, mas pela simplicidade e
humildade. Jesus cumpre literalmente as expectativas messiânicas de Zacarias
(corroborada pelas mensagens do profeta Isaías 9.6,7; 35.5,6; 40.11; 42.1-4;
60.1-3; 61.1-3), pois não veio para implantar um reino temporal, mas um Reino
espiritual e eterno (toda essa ostentação religiosa que se faz em nome do Reino
de Deus, nada têm com a proposta messiânica de Jesus e dos profetas bíblicos).
A rejeição posterior além das
maquinações político-religiosa das judaicas tem também a frustração dessas
pessoas que clamavam Hosana, pois foram percebendo que o messianismo proposto
por Jesus não era o messianismo temporal e bélico, de espírito revanchista, que
eles aspiravam ansiosamente, mas Jesus propõe resgatar o messianismo autentico
proclamado pelos profetas israelitas – religioso e espiritual – um messianismo
de arrependimento e conversão base para o estabelecimento do genuíno Reino de
Deus sobre a terra.
É preciso que tenhamos uma
compreensão correta daquele primeiro “Domingo
de Ramos” e suas implicações.
Por não perceberem a dimensão
espiritual da mensagem de Jesus e seu Reino, aquelas pessoas sentiram-se
traídas e a frustração as impulsionou a gritarem com o mesmo entusiasmo
anterior: Crucifica-o, crucifica-o e solte Barrabas. Infelizmente, nos dias
presentes, os líderes evangélicos têm oferecido um “evangelho” materialista e
hedonista, que tem atraído multidões aos seus cada vez maiores e magníficos
templos; quando estas pessoas perceberem que estão sendo ludibriadas,
certamente teremos uma reação violenta.
Mas quando compreendido em seu
sentido espiritual, esse primeiro “Domingo
de Ramos” torna-se esplendorosa manifestação do amor de Cristo! Em momento
algum Ele se deixa seduzir pelos hosanas da multidão, mas tinha plena
consciência de que seria o suficiente para deflagrar a ira dos líderes
religiosos de Jerusalém que a muito procuravam motivos para sentencia-lo à
morte. Mas foi exatamente para isso que Ele havia deixado sua glória e assumindo
nossa humanidade – a cruz!
Ao adentrar na cidade de
Jerusalém, montado naquele jumentinho, Jesus manifesta mais uma vez Seu imensurável
AMOR para com os pecadores, pois ao
final daquela semana Ele estaria MORRENDO
na cruz para salvação deles. Receberia sobre si a sentença de morte do tribunal
divino e desceria ao inferno no lugar deles.
Para todos aqueles que verdadeiramente CREEM em Jesus Cristo aquele primeiro
“Domingos de Ramos” é verdadeiramente TRIUNFAL!
O triunfo da absolvição sobre a condenação, da salvação sobre a condenação, da
vida sobre a morte!
Utilização
livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan
Pereira Mestre em Ciências da Religião.
Universidade
Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia
Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/
________________________________________
[1] Ele demarca em diversas ocasiões esta derradeira
subida de Jesus á Jerusalém (9.51; 10.38; 13.22; 17.11 e 19.28). Muitos
estudiosos percebem nesta parte da narrativa a maioria das fontes peculiares a
Lucas. Ainda que essa viagem não contenha uma coerência geográfica e
cronológica, ela é estabelecida por uma coerência temática – a salvação – que
será colocada por diversos ângulos e perspectivas. A ênfase deixa de ser Jesus
o curador e passa a ser Jesus o salvador.
[2] Mateus (21.1-17); Lucas (19.28-44) e João,
o mais breve dos quatro (12.12-19).
[3] Os lexicógrafos oferecem diversos nomes
para esse animal: asno, burro, jumento, burrico, jegue e jerico – sempre se
referindo a um animal doméstico quadrúpede solípede, que era amplamente
utilizado pelos povos asiáticos e mediterrâneos para transporte de carga. O
animal referido por Marcos é o jumentinho (burrico, jegue, jerico) e não o asno
ou burro, resultante do cruzamento da égua com o jumento. Nas narrativas
bíblicas o burrico é mencionado abundantemente na história dos hebreus. Eram
parte dos bens e riqueza deles, de maneira que é citado na legislação mosaica
para que não se cobiçasse o burrico do próximo (Ex. 20.17; Dt 5.21 e 28.31).
Nos textos poéticos o burrico é mencionado sempre de forma positiva (Gn 49.14;
Jz 5.10; Is 1.3).
[4] Esse Salmo contém forte apelo messiânico.
Nele esta a figura amplamente utilizada pelos escritores do Segundo Testamento
(NT) da “pedra angular” (Mc 12.10; Mt 21.42; Lc 20.17; Atos 4.11 e 1 Pe 2.7).
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