domingo, 25 de agosto de 2019

Tenhamos paz com Deus (Romanos 5.1)




Δικαιωθέντες οὖν ἐκ πίστεως εἰρήνην ἔχωμεν πρὸς τὸν Θεὸν διὰ τοῦ Κυρίου ἡμῶν Ἰησοῦ Χριστοῦ,
Justificados, pois, pela fé, tenhamos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo, (Almeida Revisada e Atualizada)
Tendo sido, pois, justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo, (Nova Versão Internacional)
            Na carta escrita pelo apóstolo Paulo aos crentes que moravam na cidade de Roma têm no primeiro verso do capítulo cinco as palavras acima transcritas.
            Como se pode ver há duas formas de se traduzir as palavras do grego para o português e que expressam um conteúdo teológico não oposto, mas com ênfase distinta. Isso decorre do fato do verso estar no modo indicativo ou subjuntivo, o que nos leva à questão: qual das duas deve ser a tradução preferível?
            Inicialmente devemos observar a questão relacionada aos Manuscritos. Um grande número de cópias antigas como as siríaca, copta e vulgata, referendada por diversos estudiosos optam com base na força desses textos gregos cujo verbo echō (ἔχω) se encontra no modo subjuntivo pela tradução “tenhamos paz com Deus”. Todavia, igualmente encontra-se em outros manuscritos antigos o mesmo verbo em sua forma indicativa presente e muitos comentaristas e teólogos optam então pela tradução gramatical “temos” paz com Deus. Os tradutores devem escolher uma das traduções possíveis.
Tenhamos paz com Deus
            A ideia aqui não é a de uma exortação a ter algo que somente Deus pode dar, mas o apostolo esta exortando seus leitores a conservar o que já receberam da parte de Deus. O verbo grego “echō” trás a ideia de ter, manter e conservar. Aqui temos (echoomen) “tenhamos”, fazendo sinônimo de katé-choomen, como encontrado em Hebreus 10.23, onde é traduzida “Conservemos firme a nossa confissão de fé”. Tanto o autor de Hebreus quanto o apóstolo Paulo exortam igualmente seus leitores a ter, conservar o que já haviam recebido.
            O texto aceita confortavelmente “tenhamos” com algumas vantagens sobre “temos”, pois a forma subjuntiva é mais ampla em sua significação do que a forma indicativa. Paulo parte da ideia de que seus leitores já possuem a paz (temos) de Cristo, pois são convertidos, então aproveita esse momento para anima-los a conservarem/manterem essa paz que já adquiriram quando foram justificados pela fé – “conservemos a paz com Deus”. A ideia se harmoniza com as palavras exortativas de Jesus aos discípulos: “No mundo tereis aflições, mas tende bom animo [confiança], eu venci o mundo”.
            Quando examinamos o contexto temos um apoio positivo a ideia de “tenhamos”. Paulo está concluindo toda uma exposição doutrinal anterior e imediatamente inicia uma exortação fundamentada em tudo que havia ensinado nos textos anteriores. Ele havia exposto os fundamentos da doutrina da justificação pela fé e agora ele começa a enumerar os resultados produzidos por essa ação graciosa de Deus, e para isso utiliza de um tom exortativo e não deliberativo. Isso decorre do fato que se harmoniza perfeitamente com a sequência lógica e natural do texto. Assim, temos uma sincronia do texto com o contexto e da doutrina com a exortação.
            A questão textual oferece amparo à tradução “tenhamos”, visto que o copista poderia ter “economizado” uma letra em vez de “échomen – temos” “échoomen – tenhamos” – em vez de um ómega (o longo, dobrado), escreveu um ómicron (o simples). É possível que o copista por alguma razão, provavelmente não intencional, mudasse o subjuntivo para o indicativo.
            A paz que o cristão usufruiu com Deus decorre da justificação pela fé decorrente da graça salvadora. Assim, a fé vem a ser o meio pelo qual Deus imputa a justiça de Cristo ao cristão de maneira a poder considera-lo justo diante de seu tribunal. Deste modo, extinguida a inimizade entre a criatura e o Criador, a justificação produz o resultado extraordinário da paz (Ef 2.14,15; Cl 1.20; Jo 14.27).
            Essa paz é antes de qualquer coisa uma mudança nas relações de Deus para conosco e como consequência imediata posterior uma mudança de nós para com Deus. Deus por meio de Jesus Cristo nos reconcilia com Ele mesmo (2Co 5.18); em decorrência disso somos portadores dessa reconciliação (2Co 5.20) e responsáveis em comunica-la a todas as pessoas. A propiciação (feita por Cristo) é o ponto de convergência: nela a inimizade antes existente termina em uma honrosa e eterna paz.
            Uma vez reconciliados com Deus, por meio de Cristo (Rm 5.10), o crente pode contemplar e se relacionar com Deus, não mais na posição de réu e Juiz, mas em uma nova relação de amizade e filiação.
            A sanidade mental e espiritual resultante da justificação reconciliatória permeia toda a vida do cristão produzindo e reproduzindo uma doce e maravilhosa paz que lhe possibilita experimentar aqui a genuína alegria que se perpetuara na eternidade.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Referências Bibliográficas
BARCLAY, William. Romanos - El Nuevo Testamento comentado. Buenos Aires (Argentina), Asociación Editorial la Aurora, 1974.
BRUCE, F. F. Romanos – introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova e Mundo Cristão, 1991.
CALVINO, João. Exposição de Romanos. Tradução Valter Graciano Martins. São Paulo: Edições Paracletos, 1997. [Comentário à Sagrada Escritura].
CRANFIELD, C. E. B. Carta aos Romanos. Tradução Anacleto Alvarez. São Paulo: Edições Paulinas, 1992. [Grande Comentário Bíblico].
ERDMAN, Charles R. Comentários de Romanos. Tradução Waldyr Carvalho Luz. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, s/d. (Fhiladelphia: The Westminster Press, 1925).
GREATHOUSE, William M. A epístola aos Romanos. Tradução Degmar Ribas Júnior. Rio de Janeiro: CPAD, 2006. [Comentário Bíblico Beacon, v. 8].
KERTELGE, Karl. A epístola aos romanos. Tradução de Assis Pitombeira. Petrópolis (RJ): Editora Vozes, 1982. [Coleção Novo Testamento – comentário e mensagem, nº 6].
LLOYD-JONES, D. Martyn. Romanos – o Evangelho de Deus. Tradução Odayr Olivetti. São Paulo: Editora PES, 1998. [Exposição sobre Capítulo 1].
WILSON, Geoffrey B. Romanos – um resumo do pensamento reformado. Tradução Fernando Quadros Gouvêa. São Paulo: PES, 1981.


quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Grandes Perguntas: Como Lidar com as Tragédias?



Em muitos momentos as nossas vidas são invadidas repentinamente por tragédias que nos deixam atordoados e muitas vezes abalam as nossas convicções. Como reagir a esses acontecimentos?
Reafirme a soberania de Deus
O grande diferencial do cristão que fundamenta sua vida e fé nos princípios bíblicos é que ele sabe que o Deus em quem crê e confia é Soberano sobre todas as coisas. A soberania de Deus implica que Ele tem poder absoluto para fazer tudo quanto Ele queira, no momento que Ele deseja, onde e como Ele determinar. O salmista declara em alto e bom som que o trono de Deus está estabelecido nos céu e portanto, sua soberania incluiu os céus e a terra ou seja, sobre tudo e sobre todos.
A História humana nunca esteve ao esmo, pois Deus sempre esteve conduzindo o roteiro de acordo com Seu propósito eterno. A primeira reação nossa diante da tragédia que nos invade deve ser reconhecer que Deus é totalmente soberano. Mas essa soberania de Deus é exercida em perfeita harmonia com Sua bondade, sabedoria, amor e onisciência. O consolo para o coração crente está nessa verdade absoluta de que Deus está ativamente envolvido em tudo que acontece em sua vida; Deus nunca está longe e alienado dos fatos que acontecem na nossa história; ao contrário, Deus está sempre perto e presente.
Essa foi a diferença entre Jó e sua esposa, pois enquanto Jó reconhece a Soberania de Deus em todas as tragédias que invadiram violentamente suas vidas, a sua esposa olha apenas para a situação caótica em que ele se encontra e na dor que lhes acometeu. O brado dela: “nega teu Deus e morra” é a expressão de um coração dilacerado pela dor das perdas, mas nas palavras de Jó: “O Senhor deu e o Senhor tirou louvado seja o nome do Senhor”, é o desabafo de um coração que reconhece a Soberania de Deus.
            O salmista quando acometido pela tragédia exorta a si mesmo dizendo: “Espera ó minha alma no Senhor!” Esperar é sinônimo de confiar de que Deus sabe o que faz; esperar é ter absoluta convicção de que a Providência de Deus será manifestada no tempo certo, pois Deus nunca chega atrasado; esperar em Deus é beber da água da viva esperança que refrigera a alma e alegra o coração.
Em momentos de dificuldades e tragédias, o Cristão deveria proclamar em alto e bom som: “O Senhor reina!”
Descanse em Deus
Um grande diferencial entre o crente e aquele que se recusa crer é que o primeiro tem onde descansar alma atribulada pelas circunstâncias violentas da vida e o segundo não encontra lugar para descansar. Não há lugar melhor para fazer descansar nossa alma do que na presença de Deus.
O povo de Israel tinha, como temos também, a tendência natural de se afastar de Deus e todas as vezes que eles faziam isso acabavam se defrontando com graves problemas e adversidades. O profeta Jeremias vai declarar aos seus contemporâneos que a única saída para suas vidas eram retornarem ao caminho da comunhão com Deus e somente quando eles assim fizessem eles haveriam de encontram descanso para suas almas.
O senhor Jesus em determinado momento de seu ministério terreno faz uma declaração extraordinária: “Venham a mim todos que estão casados e sobrecarregados e Eu os aliviarei”. Vivemos dias em que o índice de suicídios tem aumentado assustadoramente – mas as pessoas preferem tamparem seus ouvidos às palavras convidativas de Jesus; a grande maioria das pessoas prefere fugir de Jesus em vez de vir a Ele.
O coração genuinamente crente aprende a descansar em Deus; ao invés de se deixarem dominar pelas ansiedades e solicitudes da vida eles optam por trocarem seus jugos pesados e árduos de carregar pelo fardo suave e leve de Jesus. Sabem que quando acometidos pelas violentas tragédias da vida o melhor a fazer é descansar na Providência Soberana de Deus. O crente sabe que Deus nunca falhou e nunca falará, por isso ele descansa no caráter imutável de Deus no meio das circunstâncias mutáveis da vida.
Um garoto estava tranquilo e sossegado assentado em um banco de um navio que enfrentava uma terrível tempestade; o navio subia e descia as grandes ondes e as pessoas gritam em desesperando, pois o navio poderia afundar a qualquer momento; um passageiro apavorado com as circunstâncias perigosas ficou intrigado com a tranquilidade daquele garoto e se aproximando dele perguntou: “Menino você não está vendo o perigo em que estamos; você não sabe que essa grande tempestade pode afundar nosso navio a qualquer momento? Por que você está assentado tão tranquilo e sossegado? O garoto com um pequeno sorriso lhe respondeu: “Eu conheço o capitão desse navio, é o meu pai e ele já enfrentou muitas tempestades como essa e sempre chegou no porto em segurança!” Se você de fato conhece o Deus a quem serve, não importa o tamanho da tempestade, você sabe que Ele te conduzira ao porto seguro.
Lembre-se de sua salvação
Quando somos acometidos pelas dificuldades e tragédias, a tendência natural é nos focarmos nelas – o que será da minha vida agora, certamente pensou a mulher de Jó. Perdemos tudo e se não bastasse agora meu marido foi tomado de chagas da cabeça aos pés – o que será de nós!
É preciso nos lembrarmos que a vida não consiste apenas das coisas materiais; a nossa vida vai além deste mundo. Jesus diante da dor e sofrimento de Marta com a morte de Lazaro seu irmão, faz essa declaração: “Eu sou a ressurreição e a vida e aquele que crê em mim ainda que morra, viverá” e olhando para Marta pergunta: “você crê nisso?”. O apóstolo Paulo faz uma declaração extraordinária: “se Cristo não ressuscitou somos os mais miseráveis sobre a terra”, ou seja, para Paulo se a nossa fé está focada apenas nas coisas deste mundo e nesta vida, somos os mais estúpidos e ignorantes entre todas as pessoas. Esse evangelicalismo barato e vulgar, com sua mensagem materialista-hedonista, não pode trazer consolo e esperança nas horas em que as grandes tragédias invadem a vida.
A grande e maravilhosa mensagem contida no Evangelho é que em Cristo Jesus somos salvos. A salvação coloca tudo na perspectiva correta. Saber e crer no plano de salvação estabelecido e efetuado por Deus por meio de Jesus Cristo é elevar uma alma do tumulto terrestre para as verdades eternas! É manter a sanidade mental em meio aos problemas implacáveis temporais desta vida ao contemplar a realidade da eternidade. Quando nos lembramos das realidades da Salvação que temos em Cristo tudo na nossa vida é colocada na perspectiva adequada.
O genuíno Evangelho da Graça começa com Deus – seu Caráter; sua Sabedoria que permeia todas as coisas; sua Santidade; sua Justiça e Misericórdia que duram para sempre.  Quando tragédia e sofrimento invade uma vida - não importa o quão difícil ela seja, quão grave ela pode parecer, como incapacitante pode parecer – é preciso trazer à memoria as Verdade do Evangelho, das Promessas Eternas contidas no Evangelho; nas coisas maravilhosas, que nem olhos viram e nem ouvidos ouviram, que estão preparadas para aqueles que creem.
Jesus Cristo veio buscar e salvar o perdido; Ele veio para dar vida e vida eterna a todo que nele crer. Ele amorosamente, sacrificialmente se entregou por nós; morreu a nossa morte, para que pudéssemos ter a sua vida.  Ele sofreu todo o juízo e ira de Deus para que pudéssemos ser justificado diante do tribunal santo e perfeito de Deus. Quando nos lembramos de que somos salvos única e exclusivamente pela graça, mediante a fé, o nosso coração se enche de gratidão, mesmo quando acometidos pelas mais terríveis tragédias desta vida. O fato de que somos salvos nos transporta para as realidades eternas e todas as tragédias desta vida tornam-se passageiras.
Mestre, o Mar Se Revolta.
Mestre, o mar se revolta
As ondas nos dão pavor:
O céu se reveste de trevas:
Não temos um salvador!
Não se te dá que morramos?
Podes assim dormir.
Se a cada momento nos vemos,
Sim, prestes a submergir?

- As ondas atendem ao meu mandar: Sossegai!
Seja o encapelado mar
A ira dos homens, o gênio do mal:
Tais águas não podem a nau tragar,
Que leva o mestre do céu e mar,
Pois todos ouvem o meu mandar:
Sossegai! - sossegai!
Convosco estou para vos salvar: Sossegai!

- Mestre, quão grande tristeza
Me quer hoje consumir.
E a dor que perturba minha alma,
Te implora "vem me acudir!"
De ondas do mal que me encobrem,
Quem me fará sair?
Pereço, pereço, oh mestre
Te rogo: Vem me acudir!

- Mestre, chegou a bonança,
Em paz vejo o céu e o mar!
O meu coração goza calma
Que não poderá findar.
Fica comigo, oh! Meu mestre,
Dono da terra e céu,
E assim chegarei bem seguro
Ao porto, destino meu.

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Guedes, Ivan Pereira
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Profeta Elias: Aspectos Pessoais



Então Elias, profeta da cidade de Tesbi, em Gileade” (1 Rs 17.1)
 Tu dás aos teus anjos a rapidez dos ventos e o terrível poder do fogo. (Sl 104.4)
            Em um determinado momento de seu ministério terreno Jesus, acompanhado de três dos seus discípulos, subiu a um monte para orar. Enquanto orava duas figuras do Primeiro Testamento apareceram: Moises e Elias - o primeiro representando a Lei e o segundo representando os Profetas.
            A figura de Elias é um memorial extraordinário do oficio profético exercido ao longo de vários séculos, a partir do momento em que os israelitas adentraram à terra de Canaã. Levantados por Deus eram vozes inconfundíveis cujo único objetivo era trazer o povo e suas lideranças civil e religiosa de volta aos princípios da Torá (Lei e/ou Instruções) que havia sido estabelecida por meio de Moisés e que continham os termos da Aliança que Deus mesmo firmara com seu Povo.
            Certamente que houve muitos profetas antes de Elias, mas pouco ou quase nenhuma informação sobre eles e seus respectivos ministérios foram registrados. Sabemos por exemplo do profeta Natã que exerceu seu papel profético nos dias do rei Davi e que inclusive teve autoridade para confrontar o rei com seu pecado (adultério com Batseba ou Bate-Saba).
            Mas será a partir do ministério de Elias que teremos um modelo estabelecido. Portanto, quando começamos a estudar a vida e ministério de Elias haveremos de adquirir uma visão mais ampla do papel que os profetas desempenhavam na Sociedade israelita/judaica.
Um aspecto interessante da mensagem dos profetas bíblicos é que setenta a oitenta por cento de suas mensagem tem como objetivo trazer à memoria de seus ouvintes os termos da Aliança e exortá-los a se arrependerem e retornarem à comunhão com Deus; apenas vinte ou um pouco mais da mensagem proclamadas por eles se relacionam a eventos futuros.
Elias vai se constituir no parâmetro do oficio profético, não em decorrência de suas revelações futurísticas, Isaías, Daniel e outros profetas posteriores anunciam muito mais; ou mesmo de suas ações sobrenaturais, seu sucessor imediato Eliseu faz tanto ou mais milagres. Elias se constitui um modelo de profeta por sua mensagem contundente de arrependimento e conversão aos termos da Aliança, dirigida tanto aos líderes civis e religiosos, quanto ao povo de forma geral, pois todos e cada um são responsáveis diante de Deus no cumprimento dos princípios estabelecidos na Aliança.
Após os profetas Malaquias, Ageu e Zacarias, todos pós Cativeiro Babilônico, houve o que é denominado 400 anos de silêncio, onde Deus não levanta uma única voz profética na nação judaica. Então, quando lemos a narrativa evangélica produzida por Marcos, provavelmente a primeira a circular entre as comunidades cristãs, nas suas primeiras linhas, o silêncio é quabrado, pela voz profética contundente de João Batista. Muitos inclusive confundiam João Batista com o próprio profeta Elias, pois igualmente João Batista prega o arrependimento e conversão à Aliança (Reino de Deus) e confronta as autoridades constituídas e o povo com a mesma ênfase.
Informações Pessoais
            Seu nome em hebraico significa “Javé é meu Deus”. Apesar de toda sua “fama” não encontramos muitas informações pessoais dele. Nenhuma referência à ancestralidade, lar, educação, pai, mãe, companheiro ou amigo; e isso, também, durante todo o resto de sua carreira, até quase a sua morte.
            Ele surge nas narrativas do primeiro livro de Reis como um Melquisedeque de seus dias. Até onde podemos inferir era um peregrino sem moradia fixa e cuja roupa e alimentação eram as mais rusticas e simples da vida diária. Desta forma antecede o ministério do próprio Jesus que em suas próprias palavras declara: “não ter onde reclinar a cabeça”.
            Igualmente não encontramos qualquer referência de onde poderia ter sido adequadamente preparado para o exercício de seu ministério profético, nem mesmo a cena em que outros profetas são chamados e vocacionados pelo próprio Deus. Rapidamente é informado que ele vem da cidade de Tesbi localizada na parte remota da região de Gileade, a leste do rio Jordão. Mas não é possível afirmar categoricamente que ele nasceu e viveu ali até iniciar o seu ministério profético ou se ele simples estava vindo daquele local para anunciar sua mensagem às demais localidades de Israel. Normalmente ele vem do deserto e surgem abruptamente em locais mais povoados para pronunciar suas pregações – por isso era conhecido como a “voz que clama no deserto ou talvez fosse melhor – a voz que clama a partir do deserto” – sem alforje ou bolsa.
            Um excelente professor, para modelar e preparar vocações, é o lugar onde se nasce e cresce. Partindo da informação de que Elias vem da cidade eou vila de Tisbe, na região de Gileade podemos inferir como foi sua preparação pré-profética. Gileade era uma região dominada pelas características do deserto e semiárido; situada a lesto do rio Jordão, mas como o próprio nome indica “rochosa”, com suas ravinas e cursos de água, seus currais e rebanhos de gado selvagem.[1] Por causa de suas características geográficas montanhosas é chamada de "o monte de Gileade" (Gn 31.25); ou ainda "a terra de Gileade" (Nm 32.1) e às vezes simplesmente "Gileade" (Sl 60.7; 37.25). Ela compreendia as posses das tribos de Gade e Rubem e a parte sul de Manassés (Dt 3.13; Nm 32.40). Foi delimitada ao norte por Basã, e ao sul por Moabe e Amon (Gn 31.21; Dt 3.12-17), regiões fronteiriças e, portanto, sempre sujeita a invasões e batalhas.
            Apesar da sua rudeza a região de Gileade tem relevância na história bíblica: os juízes Jair e Jefté; o rei Jeú de Israel; e o profeta Elias eram todos desta região. Muitos eventos bem conhecidos da Bíblia ocorreram nas terras de Gileade (Gn 31.20-23; Dt 3.13-16; 34.1-4; Jz 20.1; 2Sm 17.24-26). Gileade era conhecida por produção e exportação de bálsamo desde os primeiros tempos. O patriarca israelita José foi vendido por seus irmãos a uma caravana de comerciantes ismaelitas que transportavam uma carga que incluía bálsamo e iriam comercializa-lo no Egito (Gn 37.23-28). Às margens do rio Jaboque Jacó vai lutar com o anjo enquanto aguarda apreensivo o reencontro com seu irmão (Gn 32.30).
Com exceção de algumas fortalezas nas montanhas, os habitantes da região por seu estilo de vida nômade estavam satisfeitos em morar nas tendas de pano ou pelos de cabra. É nesta terra árida que Elias vai ser moldado para a árdua tarefa de pronunciar sua mensagem de arrependimento e juízo contra um governante fraco, um sacerdócio dominado e um povo morno.
Uma vez mais podemos perceber a soberania graciosa de Deus em e através da vida de Elias; ele é o portador do bálsamo de Gileade para curar as feridas de seu povo. Deus não escolheu um sacerdote (Ezequiel) ou mesmo alguém ilustrado da corte (Isaías), não teve nem mesmo uma consagração pública (nada sabemos de seu chamado e comissionamento); é um pregador itinerante das terras altas da Palestina, formado na Escola da Natureza.
A voz trovejante de Elias ressoa implacavelmente nos ouvidos do seu público, como o fogo cuja luz resplandece em um dos momentos mais escuros da história israelita.
            Temos algumas descrições físicas de Elias que nos permite esboçar um desenho falado dele: os mensageiros de Acazias (2Rs 1.8) o descreve como “um homem peludo”; sobre seus ombros havia uma capa solta, feito de pele de ovelha ou mais provavelmente de camelo (mais resistente), presa ao peito com uma cinta de couro. Seus cabelos longos nos leva a pensar, como no caso de Sansão, um significado de consagração ou um distintivo de seu ofício profético. Era um homem de força física acostumado às labutas das montanhas e do deserto, para enfrentar tanto o calor escaldante quanto o frio extremo. Mesmo após um dia de luta, enfrenta uma caminhada de dezesseis milhas, ultrapassando o grupo de mercenários do rei Acabe e se posicionando na frente do portão de Jezreel por onde o rei haveria de passar. Estava preparado para passar por privações e o longo jejum de quarenta dias no monte Horebe. Portanto, não apenas sua mensagem, mas igualmente sua presença física impunha respeito e atenção por parte de seus ouvintes (assim como João Batista atraia atenção de pessoas de todos os lugares da Palestina judaica).
            Revestido pela autoridade Divina Elias encerrar as comportas dos céus e as chuvas deixam de descer sobre a terra; com uma oração simples faz descer fogo do céu que consome um holocausto regado a muita água; suas aparições e desaparecimentos repentinos é uma marca distintiva deste profeta sem endereço permanente.
            Seu compromisso com a mensagem que transmitia lhe revestia de uma autoridade inquestionável, fosse diante de reis, sacerdotes ou do povo. Mas ao mesmo tempo, Elias era uma pessoa semelhante a nós (Tg 5.17), gente como a gente, sujeito a todas as pressões da vida. E essa fragilidade humana é plenamente revelada quando o narrador descreve sua ida para o deserto e o seu desejo de encerrar a carreira profética e morrer. Mas como sempre acontece, inclusive conosco, quem da a última palavra é Deus e não o profeta. Isso nos anima e sustenta, pois mesmo quando fraquejamos o nosso Deus sempre há de nos sustentar e o nosso ministério termina apenas e tão somente quando Deus entender que já cumprimos todo o propósito para o qual nos designou. Jamais nos esqueçamos de que foi ante de qualquer outra cousa ou mesmo apesar de qualquer outra cousa, que foi o treinamento e a graça de DEUS, o poder do Seu Espírito operando dentro dele, que fez de Elias o homem que ele foi. A mensagem e os sinais poderosos que Elias realizou foram decorrentes do poder de Deus manifesta na e através de sua vida.
Elias era uma pessoa semelhante a nós!
            Da mesma forma como Deus o capacitou e usou para realização de Sua vontade e propósito, Deus também haverá de usar nossas vidas com todas as nossas virtudes e fragilidades.

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Guedes, Ivan Pereira
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Referências Bibliográficas.
ARCHER, Gleason L. Merece Confiança o Antigo Testamento? Ed. Vida Nova, São Paulo, 1979.
BACKER, Walter L. Obadiah in WALYOORD, John F. e ZUCK, Roy B., 1983.
Biblia Hebraica Stuttgartensia, eds. A. Alt, O. Eißfelt, P. Kahle, and R. Kittle (Stuttgart: DeutscheBibelstiftung, c1967-77).
 Biblia Sacra Juxta Vulgatam Clementinam, ed. electronica (Bellingham, WA: Logos Research Systems, Inc.,2005), Logos.
COPELAND, Mark A. Studies in the Minor Prophets. ExecutableOutlines.com
CRABTREE, A. R. Profetas Menoresv.1, Casa Publicadora Batista, Rio de Janeiro, 1971.
DAVIDSON, F. O Novo Comentário da Bíblia, v.2. São Paulo: Edições Vida Nova, 1963.
ELLISEN, Stanley A. Conheça Melhor o Antigo Testamento, ed. Vida, Florida, 1991.
FALCÃO, Silas Alvez. Panorama do Velho Testamentov. 2, Casa Publicadora Batista, Rio de Janeiro, 1965.
FRANCISCO, Clyde T. Introdução ao Velho Testamento. Tradução Antônio Neves de Mesquita. Rio de Janeiro: Junta de Educação Religiosa e Publicações, 1969, [1ª ed].
MACDUFF, J. R. Elijah, the prophet off ire. Michigan: Baker Book House, 1864


[1] Gileade era densamente arborizada e esta era uma área ideal para animais de pasto, as cabras desta região eram famosas (Cantares 6.5).