domingo, 25 de agosto de 2019

Tenhamos paz com Deus (Romanos 5.1)




Δικαιωθέντες οὖν ἐκ πίστεως εἰρήνην ἔχωμεν πρὸς τὸν Θεὸν διὰ τοῦ Κυρίου ἡμῶν Ἰησοῦ Χριστοῦ,
Justificados, pois, pela fé, tenhamos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo, (Almeida Revisada e Atualizada)
Tendo sido, pois, justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo, (Nova Versão Internacional)
            Na carta escrita pelo apóstolo Paulo aos crentes que moravam na cidade de Roma têm no primeiro verso do capítulo cinco as palavras acima transcritas.
            Como se pode ver há duas formas de se traduzir as palavras do grego para o português e que expressam um conteúdo teológico não oposto, mas com ênfase distinta. Isso decorre do fato do verso estar no modo indicativo ou subjuntivo, o que nos leva à questão: qual das duas deve ser a tradução preferível?
            Inicialmente devemos observar a questão relacionada aos Manuscritos. Um grande número de cópias antigas como as siríaca, copta e vulgata, referendada por diversos estudiosos optam com base na força desses textos gregos cujo verbo echō (ἔχω) se encontra no modo subjuntivo pela tradução “tenhamos paz com Deus”. Todavia, igualmente encontra-se em outros manuscritos antigos o mesmo verbo em sua forma indicativa presente e muitos comentaristas e teólogos optam então pela tradução gramatical “temos” paz com Deus. Os tradutores devem escolher uma das traduções possíveis.
Tenhamos paz com Deus
            A ideia aqui não é a de uma exortação a ter algo que somente Deus pode dar, mas o apostolo esta exortando seus leitores a conservar o que já receberam da parte de Deus. O verbo grego “echō” trás a ideia de ter, manter e conservar. Aqui temos (echoomen) “tenhamos”, fazendo sinônimo de katé-choomen, como encontrado em Hebreus 10.23, onde é traduzida “Conservemos firme a nossa confissão de fé”. Tanto o autor de Hebreus quanto o apóstolo Paulo exortam igualmente seus leitores a ter, conservar o que já haviam recebido.
            O texto aceita confortavelmente “tenhamos” com algumas vantagens sobre “temos”, pois a forma subjuntiva é mais ampla em sua significação do que a forma indicativa. Paulo parte da ideia de que seus leitores já possuem a paz (temos) de Cristo, pois são convertidos, então aproveita esse momento para anima-los a conservarem/manterem essa paz que já adquiriram quando foram justificados pela fé – “conservemos a paz com Deus”. A ideia se harmoniza com as palavras exortativas de Jesus aos discípulos: “No mundo tereis aflições, mas tende bom animo [confiança], eu venci o mundo”.
            Quando examinamos o contexto temos um apoio positivo a ideia de “tenhamos”. Paulo está concluindo toda uma exposição doutrinal anterior e imediatamente inicia uma exortação fundamentada em tudo que havia ensinado nos textos anteriores. Ele havia exposto os fundamentos da doutrina da justificação pela fé e agora ele começa a enumerar os resultados produzidos por essa ação graciosa de Deus, e para isso utiliza de um tom exortativo e não deliberativo. Isso decorre do fato que se harmoniza perfeitamente com a sequência lógica e natural do texto. Assim, temos uma sincronia do texto com o contexto e da doutrina com a exortação.
            A questão textual oferece amparo à tradução “tenhamos”, visto que o copista poderia ter “economizado” uma letra em vez de “échomen – temos” “échoomen – tenhamos” – em vez de um ómega (o longo, dobrado), escreveu um ómicron (o simples). É possível que o copista por alguma razão, provavelmente não intencional, mudasse o subjuntivo para o indicativo.
            A paz que o cristão usufruiu com Deus decorre da justificação pela fé decorrente da graça salvadora. Assim, a fé vem a ser o meio pelo qual Deus imputa a justiça de Cristo ao cristão de maneira a poder considera-lo justo diante de seu tribunal. Deste modo, extinguida a inimizade entre a criatura e o Criador, a justificação produz o resultado extraordinário da paz (Ef 2.14,15; Cl 1.20; Jo 14.27).
            Essa paz é antes de qualquer coisa uma mudança nas relações de Deus para conosco e como consequência imediata posterior uma mudança de nós para com Deus. Deus por meio de Jesus Cristo nos reconcilia com Ele mesmo (2Co 5.18); em decorrência disso somos portadores dessa reconciliação (2Co 5.20) e responsáveis em comunica-la a todas as pessoas. A propiciação (feita por Cristo) é o ponto de convergência: nela a inimizade antes existente termina em uma honrosa e eterna paz.
            Uma vez reconciliados com Deus, por meio de Cristo (Rm 5.10), o crente pode contemplar e se relacionar com Deus, não mais na posição de réu e Juiz, mas em uma nova relação de amizade e filiação.
            A sanidade mental e espiritual resultante da justificação reconciliatória permeia toda a vida do cristão produzindo e reproduzindo uma doce e maravilhosa paz que lhe possibilita experimentar aqui a genuína alegria que se perpetuara na eternidade.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Referências Bibliográficas
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