sábado, 10 de julho de 2021

Viajando no Evangelho de Marcos: Prólogo (1.1-13)[1]

 


Vimos no texto anterior o nosso roteiro como preparação para nossa viagem pela narrativa evangélica escrita por João Marcos. Hoje iniciaremos nossa jornada examinando a primeira Perícope[2] que se constitui em uma espécie de prólogo[3] do texto narrativo.[4]

A perícope é composta por três pequenas unidades literárias estreitamente unidas onde o evangelista registra os eventos que precedem imediatamente o início do ministério público de Jesus e ao mesmo tempo serve como uma introdução a toda narrativa evangélica por ele elaborada, fornecendo ao leitor pistas essenciais para a compreensão do que vira a seguir.

Na primeira unidade (v. 1-8) o evangelista apresenta a figura João Batista, sublinhando seu papel profético à semelhança do profeta Elias como o precursor do Messias; a segunda unidade (v. 9-11) apresenta Jesus de Nazaré como aquele a quem João havia apontado, registrando sua autenticação divina no momento em que se submete ao batismo efetuado por João Batista; e na terceira e última unidade (v. 14-15) Jesus é impelido pelo Espírito Santo para o deserto onde vai se preparar espiritualmente e ao final terá a primeira vitória sobre Satanás – onde Adão falhou, Jesus venceu. No último capítulo (16) Jesus terá assegurado definitivamente a Vitória sobre Satanás e a morte, para todos os que nele vierem a crer.

Primeira Unidade Literária (1.1-8)

João Marcos escolheu cuidadosamente as seis primeiras palavras de sua narrativa:[5]Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (v.1):[6]

Princípio (ἀρχή, archē):[7] não apenas no sentido cronológico, mas no sentido de origem, causa ativa – de maneira que Jesus Cristo é a nova gêneses (cf. Gn 1.1). No Evangelho de Jesus está a semente (a origem, o princípio) de um novo mundo, uma Nova Criação (2 Co 5.17).

Evangelho:[8] “boas novas; boas notícias” Jesus não apenas anunciara o evangelho, mas Ele mesmo é as Boas Novas. Marcos está comunicando aos seus leitores de que em Jesus ocorre um evento histórico que haverá de proporcionar salvação para toda humanidade.

Temos aqui um contexto profético veterotestamentário = Isaias (61.1s) fala das boas novas que o Messias trará; o primeiro texto que Jesus leu na sinagoga falava da libertação dos oprimidos (cf. Lc 4.17s); Deus está presente (Is 40.9) e no controle (Is 52.7) de tudo que estará sendo narrado, ou seja, Deus no começo, no meio e no fim.

Jesus Cristo:[9] O nome composto = Jesus[10] (o Senhor salva) e Cristo[11] (messias, ungido – a esperança de Israel); quando Marcos compõe sua narrativa está combinação nominal já havia se convertido em nome próprio. Jesus Cristo é o cumprimento de toda Esperança contida nas Escrituras do Primeiro Testamento. As palavras pronunciadas pelo velho sacerdote Simeão, quando toma o bebê Jesus em suas mãos resume toda a expectativa dos crentes israelitas em todos os tempos: “Ele, então, o tomou em seus braços, e louvou a Deus, e disse: Agora, Senhor, despedes em paz o teu servo, Segundo a tua palavra; pois já os meus olhos viram a tua salvação, a qual tu preparaste perante a face de todos os povos; luz para iluminar as nações, e para glória de teu povo Israel” (Lc 2.25-32).

Filho de Deus:[12] O evangelista eleva o tom e declara com todas as letras que Jesus não é um homem comum. Ele está escrevendo sobre aquele que sendo Deus assumiu a nossa humanidade (1.1,14). Ele é mais do que qualquer um dos profetas, como Elias ou o próprio Batista, pois Jesus é o próprio Filho de Deus e o evangelista irá concluir sua narrativa com está mesma declaração, agora pronunciadas pela boca de um centurião romano: “verdadeiramente, este homem era Filho de Deus(15.39).[13]

Então, este título declara quatro verdades importantes em relação a Jesus:

1. Ele é verdadeiramente humano – Ele tem um nome humano – Jesus.

2. Ele é verdadeiramente divino – Ele é o Messias prometido. Ele é o Filho de Deus.

3. Ele é verdadeiramente único – Ele é tanto a humanidade quanto a deidade em uma Pessoa.

4. Ele é a verdadeira fonte de Boas Notícias – Só Jesus é a fonte da salvação!

João Batista e seu ministério (1.2-8)

Voz Profética (v.2-3): a sua vinda não fora acidental, mas amplamente preparada em cada um de seus detalhes, como tão bem as narrativas iniciais de Mateus e Lucas esclarecem; Marcos em suas palavras iniciais não deixa qualquer dúvida sobre essa preparação declarando que João Batista é o cumprimento das profecias (Malaquias 3.1 e Isaías 40.3); a primeira frase é de Malaquias (400 anos antes) “Eis que envio o meu mensageiro diante da tua face, que preparará o teu caminho diante de ti” – a segunda proferida 700 anos antes pelo profeta Isaías o mais evangélico dos profetas: “A voz de quem clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas”.[14] Ambos os profetas olham para frente – “Deus está para agir” – e o Batista irá apontar para Jesus e dirá = “Deus já está agindo” a promessa está sendo cumprida.

João Batista e sua Mensagem: Ele surge do deserto – trazendo à memória judaica o Êxodo efetuado por meio de Moisés – agora Deus inicia um Novo Êxodo por meio de seu Filho Jesus Cristo. Se no primeiro os israelitas estavam escravos dos egípcios; agora eles estavam escravos de um sistema legalista religioso – representado no Templo e seus Sacerdotes. Os que querem OUVIR a voz de Deus tem que SAIR e ir para o Deserto (deixa meu povo ir falou Moises à Faraó).

João Batista rompe um silêncio de 400 anos (Malaquias a Marcos) – o povo espera que Deus torne a falar por meio da voz profética (Malaquias predisse que um novo Elias será levantado por Deus Malaquias 4.5-6) e João Batista é esse novo Elias; e curiosamente em toda sua narrativa Marcos não faz qualquer retrato falado de Jesus – nada ficamos sabendo da pessoa de Jesus; todavia, o evangelista faz uma descrição minuciosa do Batista. Por que?

Justamente porque Marcos deseja fazer a ligação direta entre João Batista e o profeta Elias. A mensagem do Batista é o cumprimento da Profecia – “Preparai o Caminho do Senhor (Messias); endireitai suas veredas”. Assim como a mensagem de Elias era para toda a nação israelita e conclamava todos ao arrependimento e a reconciliação com Deus, a mensagem do Batista é radical para todos: pobres, ricos; sacerdotes, levitas: arrependei-vos! Assim como Elias denuncia os pecados do rei Acabe e Jezabel (1 Reis 19-22), o Batista vai denunciar a relação irregular de Herodes Antipas e seu relacionamento imoral com Herodias (Salomé), esposa de seu irmão Herodes Filipe I, sendo está a causa de sua decapitação (Mc 6.14-29; cf. Mt 14.1-12; Lc 9.7-9).

Arrependimento (metanoia) é uma mudança deliberada do coração e da mente; confessando os pecados (reconhecendo que está vivendo longe da vontade de Deus) e se submetendo ao batismo (representação externa/visível do arrependimento interno/invisível). A genuína tristeza pelo pecado conduz à uma conversão e que envolve uma completa mudança de vida (novo nascimento). O arrependimento implica em perdão – que estará disponível plenamente em Jesus Cristo.

E João Batista tem plena consciência disso: ele declara que está para surgir, ainda naqueles dias, alguém que é MAIOR do que ele; pois, ainda que João seja um grande profeta, Jesus é de uma ordem de grandeza diferente – Jesus é o Filho de Deus e plenamente cheio do Espírito Santo e Poder – o batismo efetuado por Jesus, segundo as próprias palavras do Batista, não é com água, mas com fogo purificador.

As palavras de João Batista em relação a Jesus demonstram o caráter e a humildade dele: “não sou digno nem mesmo de desamarrar os cordões de suas sandálias” – que era a função do menor escravo em uma casa. Esta humildade faltará aos próprios discípulos no Cenáculo – assim, como falta a nós hoje.

Essa primeira referência ao Espírito Santo tem como objetivo linkar Jesus com a Salvação prometida nas Escrituras do Primeiro Testamento e que implicava no derramar do Espírito Santo (Joel 2.28s; Ezequiel 36.26s) que haverá de se cumprir após sua ascensão, no transcorrer da festa do Pentecostes.

Conclusão desta primeira unidade (1.2-8): o evangelista declara que a vinda do Batista inicia o cumprimento das antigas promessas de Salvação (Messiânicas); ele prepara o caminho do Senhor (Messias), onde o povo por meio de seu arrependimento e batismo são preparados para receber a Salvação. O cenário está pronto – então no verso 9 diz Marcos: JESUS CRISTO VEIO!

Vamos Orar! Espírito Santo capacita-nos a compreendermos a tua palavra e que possamos te louvar continuamente por tão grande salvação que nos foi dada graciosamente por meio de Jesus Cristo. Que possamos seguir o modelo de João Batista e sermos também porta-vozes desta preciosa mensagem de arrependimento e perdão efetuada por meio de Cristo. Amém!

 

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/

 

Questões Para Reflexão

1) Que outros livros da Bíblia começam com a palavra começo?

2) O que significa a palavra “Evangelho”?

3) O que é significativo sobre os títulos dados ao assunto deste evangelho?

Cristo:

Filho de Deus:

4) Quais os dois profetas que Marcos cita em relação ao ministério de João Batista?

5) Quem formava o auditório de João Batista e de onde vinham?

6) Quais eram os temas centrais da pregação de João Batista?

7) Por que Marcos se preocupa em descrever a pessoas de João Batista? Qual a relação disso com a sua missão?

8) Qual a diferença fundamental entre o batismo de João Batista e o batismo de Jesus Cristo.


Referências Bibliográficas
Utilizadas neste artigo
ALLEN, Clifton J. (Ed.). Comentário Bíblico Broadman: Novo Testamento. Tradução de Adiei Almeida de Oliveira. 3ª edição. Rio de Janeiro: Junta de Educação Religiosa e Publicações, 1986. Vol. 8 [Mateus e Marcos].
BURKITT, William. Expository Notes, with Practical Observations, on the New Testament. Philadelphia: Sobin & Ball, 1844. [Mark].
CRANFIELD, C. E. B. The Gospel According to Saint Mark. Nova Iorque e Londres: Cambridge University Press, 1959. [The Cambridge Greek Testament Commentary].
FARRER, AUSTIN. A Study in St. Mark. New York; Oxford University Press, 1952.
Referências Complementares
EARLE, Ralph, SANNER, A. Elwood e CHILDERS, Charles L. Comentário Bíblico Beacon – Mateus a Lucas. v. 6. Rio de Janeiro: CPAD, 2006.
SPROUL, R. C. St. Andrew’s Expositional Commentary Mark. Michigan: Reformation Trust Publishing, 2011.
POHL, Adolf. O Evangelho de Marcos Comentário Esperança. Tradução Hans Udo Fuchs. Curitiba, PR: Editora Evangélica Esperança, 1998.
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento – Marcos. Tradução Elias Dantas. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003.
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[1] Este material foi preparado para pequenas devocionais matinais as quais estou acrescentando algum material novo e principalmente as notas de rodapé. Deste modo você pode ler somente o corpo do texto ou se aprofundar um pouco mais examinando as notas.

[2] Perícope: do grego "recortar" refere-se a uma seção (parágrafo) de texto delimitado a partir de seu conteúdo. A divisão do texto bíblico em versículos, com raras exceções, não respeita as perícopes do texto hebraico e grego e em alguns casos acaba por descaracterizar o texto e dificultar sua análise hermenêutica.

[3] Uma seção introdutória explicando o que acontece antes da ação principal.

[4] Alguns defendem a opinião de que a primeira perícope de Marcos consiste em 1.1-15.

[5]O primeiro versículo não é meramente um título. Ê uma nota-chave para o livro, como um todo” (ALLEN, 1986, p. 326).

[6] Austin Farrer chama essas palavras iniciais de “uma semente, da qual crescerão as sentenças seguintes” (FARRER, 1952, apud ALLEN, 1986, p. 326).

[7]Aqui é usado sem o artigo definido indicação de que funciona como um título. Arche é usado 4x em Marcos (1.1; 10.6; 13.8 e 13.19 – cf. Gn 1.1; Jo 1.1,2ss; 1Jo 1.1ss). Cranfield cita dez possíveis pontos de vista sobre a relação de 1.1 com o livro como um todo (1959, p. 34-35).

[8] O termo vai sofrendo uma evolução em sua abrangência: Primariamente, como aqui em Marcos, significava especificamente a vida e obra de Jesus Cristo; posteriormente passou a identificar está e as demais literaturas produzidas pelos evangelistas e depois passou a abranger todas as literaturas neotestamentária.

[9]Este evangelho é chamado de Evangelho de Jesus Cristo, porque Cristo, como Deus, é o Autor deste evangelho, e também o principal sujeito e assunto dele. Ainda que São João Batista seja o precursor da mensagem evangélica, mas o próprio Cristo foi o primeiro e principal autor, e da mesma forma o principal assunto dela; pois tudo o que é ensinado no evangelho diz respeito à pessoa e aos escritórios de Cristo, ou aos benefícios recebidos por ele, ou aos meios de usufruir desses benefícios dele”. (BURKITT, 1844).

[10]O nome "Jesus" é a transliteração grega do nome hebraico "Josué". Significa "Jeová é Salvação". Jesus é um nome humano e revela a razão pela qual Jesus veio a este mundo. Jesus veio a este mundo para salvar pecadores perdidos, e seu nome "Jesus" declara sua pessoa e sua missão.

[11] Isso identifica Jesus como o "Messias judeu", ou "o Ungido". O nome "Cristo" declara sua posição. Jesus é retratado como aquele que salvará seu povo de seus inimigos.

[12] Alguns manuscritos não trazem essa declaração, mas em uma ampla maioria ela é parte integrante do texto. E está em perfeita harmonia com toda a narrativa marcana.

[13] Contudo, são singularmente apropriadas dentro da narrativa marcana: os demônios o declaram (3.11; 5.7) e em duas ocasiões o Pai faz a declaração forma da filiação divina dele (1.11 batismo; 9.7 transfiguração).

[14] Era uma prática hermenêutica dos escritores bíblicos moldarem a citação de dois textos bíblicos mantendo a nomenclatura de apenas um deles, demonstrando a qual dos dois colocava sua ênfase teológica. No caso especifico de Marcos ele quer enfatizar as palavras dos profetas Isaías, o mais antigo, e a reforça com o eco destas palavras em Malaquias, que quase trezentos anos depois faz referência à mesma promessa. Pensar que Marcos não se utilizou desta prática e que as palavras de Malaquias foram inseridas posteriormente por copistas é uma pressuposição altamente questionável. A opção pela tradução “no profeta Isaías(NIV), em vez de “nos profetas(FIEL) demonstra o equivoco da primeira e a coerência da segunda tradução.