terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

A Crucificação e Morte no Evangelho Segundo João


Cada um dos evangelistas descreve a crucificação e morte de Jesus incluindo suas particularidades.
Os três evangelistas sinóticos registram estes acontecimentos dando destaque aos aspectos mais vistosos e sobrenaturais: o rasgar do véu no Templo de Jerusalém, a ressurreição dos mortos, a multidão que bate no peito, as trevas em pleno dia. O evangelista João é mais discreto e prefere um comentário sucinto e modesto: "do lado transpassado de Jesus saem sangue e água".
Enquanto os três primeiros utilizam o centurião romano como testemunhar ocular da divindade de Jesus: "Verdadeiramente este homem era filho de Deus", o evangelista João prefere fazer a citação do profeta Zacarias: "Olharão para aquele que transpassaram" (Zc 12.10), apontando para a grande realidade de todo verdadeiro cristão, que terá de contemplar, compreender e crer no Crucificado, para serem salvos.
Outra característica da narrativa do quarto evangelho é que João se faz conciso em acontecimentos essenciais e prolixo no que poderíamos classificar como aspectos secundários. Sua linguagem é na verdade totalmente simbólica.
A Realeza de Jesus (João 19.17-22)
Nesta primeira cena ele resume o que os outros destacam e centraliza a atenção do leitor na pequena placa colocada acima da cabeça de Jesus: "Jesus Nazareu, o rei dos judeus" (19.19). É uma declaração da realeza de Jesus trilíngue (romana, grega e judaica), que ilustra a proclamação universal do Evangelho. A ironia joanina é vista no fato de que esta declaração contraria todos os esforços que a liderança judaica, política e religiosa, havia feito para deturpar a pessoa de Jesus.
A Túnica (João19.23-24)
Somente João faz uma distinção entre as vestes que foram repartidas e a túnica que foi sorteada entre os soldados (19.24). O termo "dividir" e "divisão" (shisma, no grego) no texto joanino está sempre impregnado de um significado tenso, relacionado à divisão do povo em relação a Jesus (7.43; 9.16; 10,19; 21.11). João chama atenção que o Crucificado é o Rei universal e o ponto convergente para toda a humanidade. É à Cruz e ao Crucificado que o crente em todos os tempos e lugares serão atraídos ("atrairei todos a mim") e pela fé serão feitos UM Nele!! Quando esta verdade é relegada ou simplesmente esquecida, o Evangelho empobrece e perde seu dinamis distintivo.
A Mãe e o Discípulo Amado (João 19.25-27)
Em meio a todas as atrocidades e violência que envolvem estes acontecimentos, temos aqui uma das cenas mais terna e belíssima da preocupação de Jesus para com Maria. O termo "mulher" é rico em seu veio veterotestamentário e faz um link precioso com a cena do primeiro milagre realizado em Caná (2.1-11). Tanto Maria quanto os discípulos são reais e históricos, mas aqui desempenham também uma função simbólica e representativa. Nem Maria e nem o discípulos são identificados pelos respectivos nomes próprios. Eles representam a Comunidade cristã que haverá de surgir após o Pentecostes e que terá a marca distintiva da solidariedade e do amor.
Tudo Está Consumado (João 19.28-30)
O verbo utilizado por João trás a ideia de algo que foi COMPLETADO e, portanto, não há mais nada a ser feito. A morte de Jesus não é o "fim" de sua história, de sua vida, mas a Sua morte é a concretização plena de todo o propósito Redentivo de Deus para salvar o pecador. É o cumprimento pleno de toda a Revelação do Antigo Testamento. A promessa feita por Deus em Gênesis cumpre-se literalmente no Crucificado Nazareu!
Ao declarar "tenho sede" (19.28) Jesus retoma o aspecto básico da vida humana. Ele é plenamente humano e plenamente divino. Aquele que é a Fonte da Vida pede água - que figura contrastante maior poderia ter utilizado o evangelista?
Então declara Jesus: "Entrego meu espírito" (19.30). Jesus morre e aqui temos o aspecto de sua exterioridade. Ele morre consciente, a iniciativa é dele desde o principio até o fim "entrego meu espírito". Jesus conclui sua obra em serena consciência e se dá voluntariamente, na maior ilustração e modelo para todo verdadeiro cristão. O crente econômico e que vive para si mesmo é anticristo.
O Significado
O verso 19.35 é o centro de toda esta narrativa de João. Aqui ele faz uma referência explicita à e perfaz uma transição entre a narrativa dos acontecimentos e a sua interpretação à luz das Escrituras (AT).
Aqui temos a afirmação categórica da humanidade de Jesus (sangue e água) e o seu significado salvífico. A linguagem figurada utilizada por João jamais deixou de ser interligada pelos acontecimentos históricos e concretos. Sua mensagem não é mitológica ou mística. Sua mensagem cristã evangélica esta relacionada aos dois níveis: da factualidade e do simbolismo.
O verbo tão caro nesta narrativa "ver" permeia o texto. É tanto factual, pois as pessoas estão vendo os acontecimentos, mas também se relaciona diretamente à fé - ver, contemplar, crer. Há três camadas deste "ver-crer":
- o "ver" dos soldados, que veem, mas não compreendem absolutamente nada do que esta acontecendo (veem, mas não creem);
- o "ver" histórico daqueles que testemunham de forma ocular os acontecimentos e compreendendo creem.
- o "ver" da fé, que ainda firmado em fatos históricos, não são oculares aos acontecimentos - identificados na profecia de Zacarias "olharão" no aspecto futuro - o nosso tempo.
Para João todos aqueles, como ele que "viram" e "creram" quer como testemunhas oculares ou não, devem agora se constituir em testemunhas deste "ver". E o testemunho é verdadeiro, genuíno, não confundido com os falsos ou aparentes "ver" possíveis.
Portanto, todo aquele que diz "ver-crer", mas cala-se ou acovarda-se em testemunhar, é um falso crente e continua ainda na cegueira espiritual. A consequência imediata e compulsiva do que genuinamente "vê e crê" é de proclamar esta verdade evangélica a todas pessoas em todos os lugares em todos os tempos, pois esta é a função da testemunha.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/


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Referências Bibliográficas
BARCLAY, William. El Nuevo Testamento, v. 5. Buenos Aires: La Aurora, 1974.
BONNET, Luis y SCHROEDER, Alfredo. Comentário del Nuevo Testamento. Buenos Aires: La Aurora, 1974. [v. 5].
CARSON, D. A. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Ed. Vida Nova, 2001.
HENDRIKSEN, GUILLERMO. Juan – comentário del Nuevo Testamento. Michigan: Subcomission Literatura Cristiana de la Iglesia Cristiana Reformada, 1980.
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento – João. São Paulo: Ed. Cultura Cristã, 2004. [v.1,].
HULL, W. E. Comentário bíblico Broadman, v. 9. Rio de Janeiro: JUERP, 1983.
MCARTHUR, John. Comentário Macarthur del Nuevo Testamento – Juan. Epanha: Kregel, 2011.
MICHAELS, J. Ramsey. Novo Comentário Bíblico Contemporâneo – João. São Paulo: Vida, 1994.
PACK, Frank. O Evangelho Segundo João. São Paulo: Vida Cristã, 1983.
TENNEY, Merrill C. O Novo Testamento – sua origem e análise. 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1972.


terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

O Getsêmani na Narrativa de Marcos (14.32-42)


            O Natal com suas celebrações coloridas e festivas já passaram, novamente nos aproximamos da celebração da Páscoa Cristã, com sua densidade e sofrimento. Nada poderia ser mais contrastante do que as duas maiores celebrações cristãs: Natal e Páscoa – Natividade e Morte.
            Evidente que humanamente preferimos o Natal a Páscoa, todavia, o Natal ficaria totalmente sem sentido sem a Páscoa. A razão última pela qual o Filho de Deus se encarnou (Natal) foi a Cruz (Páscoa).
            Mas assim como o Natal foi substituído pelo bonachão papai Noel e suas árvores coloridas e seus presentes e suas comilanças, também a Páscoa tem sido substituída por um coelhinho fofinho e seus deliciosos ovinhos de chocolate. O que deveria ser um momento de profunda reflexão sobre a mensagem evangélica, transformou-se em duas festas hedonista e consumista.
Há muito tempo que o feriadão da chamada “Semana da Paixão de Cristo” tornou-se para os evangélicos a oportunidade de “fugir” da cidade em um êxodo para qualquer outro lugar, que lhes proporcione deleite e prazer, exatamente o oposto do significado das cenas evangélicas. Se nem os “crentes” desejam apreender o sentido real da Páscoa, o que esperar da Sociedade brasileira?
            Apesar de ser o mais breve dentre as quatro narrativas evangélicas que fazem parte do Segundo Testamento [NT], Marcos em nada fica devendo em termos de informação e detalhes preciosíssimos sobre a pessoa e ministério de Jesus. Ele não gasta uma linha sequer sobre o nascimento de Jesus (Natal), todavia, como os demais companheiros evangélicos reserva um espaço considerável para registrar minúcias sobre a última estadia de Jesus em Jerusalém, e muitos dos acontecimentos ali ocorridos, culminando com Sua morte e ressurreição. Nos primórdios do cristianismo esse era o núcleo da pregação apostólica,[1] que somente incluirá as narrativas da natividade em um momento posterior e registradas por Mateus e Lucas.
            Portanto, resgatarmos as narrativas sobre a Paixão de Cristo é resgatarmos o núcleo central do Evangelho e do próprio Cristianismo. Muitos comentaristas referindo-se às narrativas evangélicas declaram serem elas relatos da Paixão precedidos por uma longa introdução. E o próprio Jesus (não Pedro ou Paulo) sintetizou nas seguintes palavras o que significa ser “cristão” ou “cristianismo”: “negue-se a si mesmo, tome a cruz”, portanto, qualquer expressão cristã que não implique nestas duas primícias não é genuinamente uma expressão do genuíno cristianismo. Desta forma, esse evangelicalismo institucionalizado brasileiro, não apenas está alienado dessa proposta de Jesus, quanto mais a rejeita abertamente com seu estilo de vida narcisista e materialista. Enquanto o Brasil está mergulhado em uma das mais profundas crises institucional-social, onde milhões de brasileiros estão sendo privada das condições básicas de subsistência, a preocupação de muitas denominações evangélicas (históricas, pentecostais e neopentecostais) é a de construírem templos maiores e com todo o conforto possível para seus membros (ou sócios, ou plateia) e/ou simplesmente para ostentarem alguma espécie de poder megalomaníaco-esquizofrênico de seus líderes (ou donos).
Jesus em Jerusalém[2]
            Jesus já está na cidade de Jerusalém e sabe que serão os momentos derradeiros de seu ministério. Desde quando iniciou sua última subida à Capital Jesus dedica-se em preparar os discípulos para os acontecimentos que rapidamente se sucederão no transcorrer desta semana da Páscoa. Sua entrada triunfal, suas idas ao Templo e seus momentos de refrigério e intimidade com seus discípulos, principalmente na casa de Lazaro, se concluem nesta última ceia pascoal com os discípulos no cenáculo cedido, provavelmente por Maria, mãe do então adolescente João Marcos.
Jesus no Getsêmani
            Terminada a refeição noturna da Páscoa, detalhadamente descrita na narrativa joanina, Jesus sai com os discípulos e se dirige ao jardim do Getsêmani,[3] ainda dentro dos limites da cidade. Nesta curta caminhada de aproximadamente um quilômetro até o jardim, localizado na encosta ocidental do Monte das Oliveiras, segundo esse evangelista Jesus alerta Pedro sobre sua atitude de negá-lo e aos demais que no momento derradeiro se dispersaram (cf. Zc 13.7).
São as horas derradeiras! As últimas areias caem rapidamente na ampulheta do “kairós” divino e Jesus tem plena consciência disso. Vai utilizar-se desses últimos grãos da areia temporal se preparando para enfrentar tudo que está por lhe suceder. Nada melhor do que estar na presença do Pai. O Pai o havia enviado, o Espírito Santo lhe sustentou e capacitou em todo o tempo, agora é o momento de reunir todas as forças e disposição para concluir sua obra redentora. Precisa do Getsêmani, assim como precisa do ar para respirar. Somente o Getsêmani nos prepara as horas agudas da vida. Está chegando a hora![4]
            A narrativa de Marcos é de uma surpreendente simplicidade que deixa os leitores desconcertados. Apesar de ter escrito posteriormente aos acontecimentos, registra no presente histórico[5] tornando os fatos vividos, como se estivéssemos juntos com Jesus em cada segundo. A cena do Getsêmani, onde Jesus desnuda toda sua humanidade será concluída nas suas últimas palavras na cruz: “Deus meu, Deus meu, porque me desamparastes”, deixando claro para o leitor a intensidade do sofrimento experimentado por Jesus em seu caminho do jardim até o calvário.
“Sentai-vos aqui enquanto vou orar” (14.32)
            Em outros momentos da narrativa marcana Jesus se afasta para orar sozinho (cf. 1.35; 6.46), mas diferentemente aqui ele retorna aos discípulos e solicita sua companhia. E mais uma vez convida o trio Pedro, Tiago e João para presenciarem um momento particular, assim como ocorrera na ressurreição da filha de Jairo (5.37) e na transfiguração (9.2). Assim como eles tinham vivido o momento glorioso da transfiguração de Jesus, agora também haverão de vivenciar o momento mais angustiante de seus sofrimentos.[6] Mas diferentemente eles não pedem para permanecerem ali no Getsêmani, na verdade sempre queremos evitar o Getsêmani.
“começou a apavorar-se e a angustiar-se” (14.33). Marcos utiliza dois verbos que unidos expressam toda a intensidade do sentimento de Jesus naquele momento (ekthambeísthai e ademoneín). Eles expressam o momento de petrificação, desorientação, abatimento, grande ansiedade, inquietude e angústia.
“A minha alma está abatida [oprimida, esmagada] até a morte” (14.34), são expressões que aparecem nos momentos mais agudos dos salmistas (Sl 42.5-6, 12; 43.5; 116.3). Jesus se identifica com os salmistas que momentaneamente se sentem abandonados e sozinhos diante de uma circunstância onde suas vidas estão em mortal perigo. Ele sabe que Judas, o traidor se aproxima rapidamente, sabe e avisou que Pedro o negaria, tem consciência da condenação do Sinédrio, da sentença de Pilatos, dos escárnios de seus inimigos e que seria cruscificado pelos soldados romanos. Mas o que mais em dói em Jesus é o silêncio da parte de Deus. O silêncio de Deus atinge intensamente e dilacera o coração crente!
“Permanecei aqui e vigiai” (14.34b). Diferente das outras ocasiões Jesus solicita o apoio dos discípulos, mas nem isso eles puderam oferecer. Apesar de Jesus revelar-lhes seu estado de espírito angustiado, eles não se tornam solidários; nenhuma palavra, nenhuma reação da parte deles – Jesus que durante todo seu ministério se identificou com a dor e sofrimento de outros, não encontra ressonância em seus próprios discípulos. A
solidão de Jesus é plena! Como é difícil encontrarmos genuína solidariedade nos momentos de angustia e dor! Mas por outro lado, raras vezes nos tornamos oásis na vida daqueles que sofrem, na maioria do tempo somos apenas deserto.
“Caiu por terra” (14.35). O prostrar-se é a posição que configura a profunda humildade, dependência e suplica daquele que ora, diante do Deus que tudo pode (cf. Gn 17.3, 17; Lc 5.12; 17.16). É somente no Getsêmani que sentimos e expressamos toda nossa fragilidade e incapacidade diante de Deus. Aqui Jesus revela a plenitude de sua humanidade, colocando-se diante do pai como um suplicante de sua misericórdia e graça! Assim como os salmistas que em meio às mais angustias, ansiedades e medos se lamentam e interrogam, mas nunca se afastam de Deus, assim também o faz Jesus diante do Pai. O Getsêmani não afasta o genuíno crente de Deus, ao contrário, o leva para mais perto de Deus!
“E orava para que, se possível, passasse dele a hora” (14.35). É a primeira vez que tomamos conhecimento do conteúdo da oração pessoal de Jesus. Ele sabia que a “hora” havia chegado, tem plena consciência de que veio para esta “hora”; é o tempo previamente antecipado pelos profetas, preparado e determinado pela divina providência. É o tempo conclusivo, que encerra um período histórico (velha dispensação) e inaugura um novo período histórico (nova dispensação). Mas aparentemente tudo concorre para um fracasso e não um sucesso. A perspectiva de Deus realmente não é a nossa.
E dizia: Abba, Pai[7] tudo te é possível; passa de mim esse cálice; contudo, não seja o que eu quero, mas o que tu queres” (14.36). A oração completa, somente poderia ser expressa pelos lábios de Jesus, o Filho. Se as nossas orações se assemelham com a de Jesus nas duas primeiras expressões, inevitavelmente temos tremendas dificuldades com a última parte. Em outros dois momentos Jesus havia se referido ao cálice que haveria de beber (10.38-39; 14.23), mas aqui é o momento derradeiro. No Primeiro Testamento [AT] se utiliza a figura do cálice para se referir ao tempo da manifestação da ira de Deus (o mesmo acontece no Apocalipse); o evangelista mantém a figura com toda sua carga de sofrimento e dor. Tudo que está por acontecer com Jesus a partir deste momento do jardim não é coincidência e nem simplesmente expressão da maldade das lideranças religiosas judaicas, mas antes e acima de tudo, o cumprimento dos desígnios de Deus – ainda que os eventos sejam conduzidos pelos homens, o cálice vem das mãos do Pai.
“Simão está dormindo?” (14.37). Enquanto Jesus ora em profunda angustia, os discípulos dormem! O sono dos que não se apercebem da relevância do momento, da hora que se aproxima. “não foste capaz de vigiar uma hora?” não apenas no aspecto físico (canseira), mas de animo e disposição da alma e do coração – não são solidários ao momento do Mestre. “Vigiai e orai” (14.38) do singular para o plural, a ordem é para todos e não apenas para um. Na questão da oração todos devem se empenhar solidaria e solicitamente, e não apenas alguns “especiais” ou “líderes espirituais”. Vigiar é a tônica diferencial da genuína oração, implica em atenção zelosa, prontidão e resistência (cf. 1Ts 5.8; 1Co 16.3; Rm 13.11,12; Ef 6.16; 1Pd 5.8-9). “Para que não entreis em tentação (provação)” (14.38b). Jesus não está sendo tentado pelo Pai, mas está debaixo de Sua maior provação (fazer a vontade do Pai e não a Sua); a oração é para que não venhamos a sucumbir diante das dificuldades e lutas da vida; pois “o espírito está pronto, mas a carne é frágil” (14.38c); a carne representa todas as limitações e fragilidades humanas e o espírito representa a força e capacitação que vem da parte de Deus. Para fazer a vontade de Deus é necessária uma total dependência dos recursos espirituais que somente podem vir da parte de Deus. Nossas mais fragosas derrotas e decepções são produzidas no apogeu de nossa autoconfiança e nossa total displicência em relação aos recursos de Deus. A narrativa evangélica quer deixar bem claro que o homem Jesus conheceu profundamente os embates da vida e de sua experiência vivencial ele nos ensina – VIGIAI E ORAI!
“seus olhos estavam pesados de sono” e sono é encontrado na literatura bíblica como corações empedernidos (cf. Mc 3.5; 6.52; 8.17; Jonas desce ao porão do navio, para Tarsis, o oposto da vontade de Deus, Nínive, e dorme profundamente).
“Dormi agora e repousai” (14.41), que pode ser interpretada como “Ainda estais dormindo e repousando!”, como sendo uma amarga e melancólica constatação. Basta”, agora o tempo já se esgotou. Eis que o Filho do Homem está sendo entregue às mãos dos pecadores” (14.41), que é a tônica dominante da narrativa marcana (cf. 14.44; 15.1, 10, 15). Aqui temos as duas forças motoras a Paixão: Deus que cumpre seus desígnios e os homens que em sua ignorância e maldade querem destruir a vida de Jesus. Judas será o representante de todo ser humano que se frustra com Jesus e faz a opção de seu próprio coração.
“Levantai-vos! Vamos! (14.42). Depois de se sujeitar plenamente à vontade do Pai, Jesus retoma sua serenidade e assume seu papel de protagonista dos eventos imediatos. Ele se coloca entre o desígnio de Deus e a maldade inerente do coração humano. Esse é o modelo para todo crente e toda igreja em todos os tempos e lugares. Colocarmo-nos entre a realização da vontade de Deus e as arbitrariedades humanas. Nunca o nosso país tanto necessitou de cristãos e igrejas assim! Mas como os discípulos “nossos olhos estão pesados demais” e permanecemos “dormindo e repousando”, enquanto a nação e o mundo estão à beira da destruição e da morte.

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Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
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Referências Bibliográficas
ANDERSON, Hugh. The Gospel of Mark. London: Marshall, Morgan & Scott, 1976.
BETTENCOURT, Estevão. Para Entender os Evangelhos.  Rio de Janeiro: Agir, 1960.
CARSON D. A., DOUGLAS, J. Moo & MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo:  ed. Vida Nova, 1997.
CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. São Paulo: Hagnos, 2006, 8ª ed.
CRANFIELD, C. E. B. The Gospel According to St. Mark. Cambridge: Cambridge University Press, 1966. 
GALIZZI, M. Gesú nel Getzemani (Mc 14.32-42; Mt 26.36-46; Lc 22.39-46). Roma: Pas-Verlag, 1972.
GUTHIRIE, Donald. New Testament Introduction. Illinois: Inter-Varsity Press, 1980.
LEAL, João. Os Evangelhos e a Crítica Moderna. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1945.
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento – Marcos. São Paulo: Cultura Cristã, 2003.
MAGGIONI, Bruno. Os relatos evangélicos da Paixão. Tradução de Bertilo Brod. São Paulo: Palinas, 2000. [Coleção Espiritualidade sem fronteiras].
MULHOLLAND, Dewey M. Marcos – introdução e comentário. Tradução de Maria Judith Menga. São Paulo: Vida Nova, 1999. [Série Cultura Bíblica].
SOARES, Sebastião Armando Gameleira & JUNIOR, João Luiz Correia. Evangelho de Marcos, v.1, ed. Vozes, Petrópolis, 2002.
TENNEY, Merrill C. (Org.). Enciclopédia da Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2008.
TORREY, C. C. The Four Gospels, 2nd ed. New York: Harper, 1947.
WENHAM, J.W. Did Peter Go to Rome in ad42?. Tyndale Bulletin 23 (1972) 94-102.





[1] Ver os extratos dos sermões de Pedro e Paulo, registrados por Lucas em seu segundo volume Atos.
[2] Marcos e seus colegas sinóticos (Mt e Lc) deixam transparecer que é a primeira vez que Jesus sobe à Jerusalém desde quando iniciou seu ministério, todavia, nos relatos evangélicos de João encontramos informações de que esta é a terceira vez que Jesus sobe com seus discípulos à Jerusalém (2.13; 5.1 e 7.10).
[3] “gat shemanim”, que significa “prensa dos óleos”, é um terreno onde se cultiva oliveiras.
[4] O Getsêmani lembra tentação no deserto (1.13) quando da preparação em oração para o início do seu ministério público (1.35). Jesus se retira para orar no princípio de seu ministério para compreender o seu próprio caminho; agora ele igualmente faz para enfrentar a conclusão de seu ministério. 
[5] A utilização dos tempos verbais nessa narrativa do Getsêmani emolduram as ações de forma maravilhosa, como tão bem destaca Galizzi: “O presente histórico registra e torna imediatos os fatos, o imperfeito os descreve” (1972, p. 28, apud, MAGGIONI, 2000, p. 19).
[6] Há duas diferenças ilustrativas nas duas cenas paralelas da transfiguração e do Getsêmani: na transfiguração podemos ouvir a voz do Pai, aqui um profundo silêncio se faz sentir; na transfiguração contemplamos Jesus em sua glória e divindade, e aqui em sua plena humanidade.
[7] Jesus deve ter usado somente o substantivo aramaico Abba e o evangelista acrescenta o termo Pater do grego para esclarecer o leitor não judeu. No aramaico é um termo familiar de intimidade, algo como Papai das crianças pequenas, mas nunca utilizada em relação a Deus. Ao fazê-lo aqui Jesus expressa sua plena intimidade com o Pai e sua plena confiança em seu amor.

sábado, 4 de fevereiro de 2017

Viajando no livro de Atos: Ponto de Partida (1.5-26)

ATOS: Uma Viagem Singular
            Quero convidar você para uma viagem inesquecível! Nosso guia nessa viagem será o médico e evangelista Lucas e o nosso roteiro de viagem será o livro de Atos, que foi arranjado em nossas bíblias logo após as narrativas evangélicas, ainda que a literatura joanina fosse escrita muito posteriormente.
            Muitas informações peculiares e técnicas sobre o livro de Atos você poderá pesquisar aqui mesmo nesse blog, por isso não abordaremos estas questões durante nossa viagem.
            Vamos colocar nossas mochilas e juntamente com Lucas e seu manual vamos iniciar nossa viagem maravilhosa por lugares interessantes, conhecendo pessoas das mais diversas e redescobrindo como o cristianismo deixou de ser visto como uma seita judaica e tornou-se uma das maiores religiões do Império Romano.

           
Ponto de Partida: Monte das Oliveiras
            Lucas esclarece que nessa primeira etapa da viagem ficaremos na cidade de Jerusalém e apenas em alguns momentos haveremos de sair para algumas incursões a alguns lugares específicos, mas sempre retornando à Capital.
Depois de nos explicar como e porque elaborou o seu roteiro de viagem (1.1-5), e lembrando que os acontecimentos evangélicos haviam se concluído com a ressurreição de Jesus e sua presença com os discípulos.[1]  Lucas nos leva até o Monte das Oliveiras para compartilharmos do momento derradeiro, em que Jesus se despede de seus discípulos,[2] pois segundo Ele é a hora de retornar ao Pai e de reassumir Sua glória e soberania.
            Enquanto os discípulos estão preocupados com as coisas futuras e com a restauração politica geográfica de Judá, Jesus lhes corrige o foco para o presente: “As coisas futuras pertencem ao Pai, mas vocês haverão de receber o poder da parte do Espírito Santo, e a partir deste momento [presente] cada um de vocês serão minhas testemunhas, começando em Jerusalém, bem como toda Judéia e Samaria, e até aos confins da terra.”[3]
            Então, enquanto Jesus dizia essas últimas palavras, diante dos atônitos discípulos Ele começa a subir aos céus e desaparece entre as nuvens. Ainda impactados por tal visão, são despertados da letargia por dois anjos que lhes afirmam que da mesma forma como estava subindo Jesus haveria de retornar. Assim, entre um misto de alegria e apreensão os discípulos tomam caminho de volta a Jerusalém, distante apenas um quilômetro.[4]

Recompondo o Grupo Apostólico
            Depois que retornamos à Jerusalém, os discípulos tinham um lugar onde sempre se reunião, chamado de cenáculo ou sala grande, normalmente no andar superior da casa, próprio para reunir um numero maior de pessoas [chamamos de salão de festa]. Provavelmente era o mesmo lugar onde Jesus se reuniu com eles pela última vez, levando-lhes os pés e celebrando com eles Sua última páscoa antes de Sua morte e ressurreição.
Depois de alguns dias, os discípulos resolveram recompor o grupo apostólico, visto que Judas Iscariotes havia se suicidado. Pedro faz uma síntese narrativa dos acontecimentos envolvendo Judas Iscariotes[5] e todos concordaram com ele quanto à recomposição dos doze. Dois nomes se sobressaíram: José Justo (também chamado Barsabás)[6] e Matias.[7] Então submeteram os dois nomes à oração e após lançarem sorte o escolhido foi o nome de Matias.[8]
            Lucas nos informa que permaneceremos mais algumas semanas em Jerusalém, pois os discípulos estão obedecendo as últimas palavras de Jesus para que esperassem[9] a promessa do Espírito Santo. Enquanto aguardam se reúnem diariamente no cenáculo, para orarem e compartilharem tudo quanto Jesus lhes havia ensinado e tudo quanto Ele havia feito.



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Referências Bibliográficas
BAXTER, J. Sidlow. Examinai as Escrituras, v. 6. São Paulo: Vida Nova, 1989.
BERKHOF, Louis. New Testament Introduction. Eerdmans, 1915, https://archive.org/details/NewTestamentIntroduction Scanned and Edited Mike Randall.
CHAMPLIN, R. N. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. São Paulo: Hagnos, 8ª ed., 2006.
ERDMAN, Charles R. Hechos de Los Apóstoles. Ed. TELL, 1974.
RICE, Edwin W. People’s commentary on the Acts giving. Philadelphia: The American Sunday-School Union, 1896.
RYRIE, Charles C. Bíblia de estúdio Ryrie. Chicago (Illinois): Moody Press, 1991.
SMITH, T. C. Comentário Bíblico Broadman, v.10. Rio de Janeiro: JUERP, 1984.
WILLIAMS, David J. Novo Comentário Bíblico Contemporâneo – Atos. São Paulo: Vida, 1996.



[1] Sendo visto por eles por espaço de quarenta dias.
[2] Em torno de 120 mais ou menos.
[3] Atos 1.7,8
[4] A jornada de um sábado é equivalente a 1 km conforme comentaristas.
[5] Atos 1.13-20
[6] Tudo indica que José Barsabás era irmão de Judas Barsabás citado em Atos 15.22.
[7] É provável que ambos houvessem participado do chamado grupo dos 70 que foram enviados dois a dois por Jesus.
[8] Algumas fontes extra bíblica indicam que esse Matias seria Barnabé, outras possibilidades são: Zaqueu ou Natanael. Haveremos de conhecer melhor Barnabé no transcorrer de nossa viagem.
[9] (lit., “esperar nas redondezas”).