O Natal com suas celebrações coloridas e festivas
já passaram, novamente nos aproximamos da celebração da Páscoa
Cristã, com sua densidade e sofrimento. Nada poderia ser mais contrastante do que as duas
maiores celebrações cristãs: Natal e
Páscoa – Natividade e Morte.
Evidente que humanamente preferimos o Natal a Páscoa,
todavia, o Natal ficaria totalmente sem sentido sem a Páscoa. A razão última
pela qual o Filho de Deus se encarnou (Natal) foi a Cruz (Páscoa).
Mas assim como o Natal foi substituído pelo bonachão papai
Noel e suas árvores coloridas e seus presentes e suas comilanças, também a
Páscoa tem sido substituída por um coelhinho fofinho e seus deliciosos ovinhos
de chocolate. O que deveria ser um momento de profunda reflexão sobre a
mensagem evangélica, transformou-se em duas festas hedonista e consumista.
Há
muito tempo que o feriadão da chamada “Semana da Paixão de Cristo” tornou-se
para os evangélicos a oportunidade de “fugir” da cidade em um êxodo para
qualquer outro lugar, que lhes proporcione deleite e prazer, exatamente o
oposto do significado das cenas evangélicas. Se nem os “crentes” desejam apreender o sentido
real da Páscoa, o que esperar da Sociedade brasileira?
Apesar de ser o mais breve dentre as quatro narrativas
evangélicas que fazem parte do Segundo Testamento [NT], Marcos em nada fica
devendo em termos de informação e detalhes preciosíssimos sobre a pessoa e
ministério de Jesus. Ele não gasta uma linha sequer sobre o nascimento de Jesus
(Natal), todavia, como os demais companheiros evangélicos reserva um espaço
considerável para registrar minúcias sobre a última estadia de Jesus em
Jerusalém, e muitos dos acontecimentos ali ocorridos, culminando com Sua morte
e ressurreição. Nos primórdios do cristianismo esse era o núcleo da pregação apostólica,[1] que
somente incluirá as narrativas da natividade em um momento posterior e registradas
por Mateus e Lucas.
Portanto, resgatarmos as narrativas sobre a Paixão de
Cristo é resgatarmos o núcleo central do Evangelho e do próprio Cristianismo.
Muitos comentaristas referindo-se às narrativas evangélicas declaram serem elas
relatos da Paixão precedidos por uma longa introdução. E o próprio Jesus (não
Pedro ou Paulo) sintetizou nas seguintes palavras o que significa ser “cristão”
ou “cristianismo”: “negue-se a si mesmo, tome a cruz”, portanto, qualquer expressão cristã que não
implique nestas duas primícias não é genuinamente uma expressão do genuíno cristianismo.
Desta forma, esse evangelicalismo institucionalizado brasileiro, não apenas
está alienado dessa proposta de Jesus, quanto mais a rejeita abertamente com
seu estilo de vida narcisista e materialista. Enquanto o Brasil está mergulhado
em uma das mais profundas crises institucional-social, onde milhões de
brasileiros estão sendo privada das condições básicas de subsistência, a
preocupação de muitas denominações evangélicas (históricas, pentecostais e
neopentecostais) é a de construírem templos maiores e com todo o conforto
possível para seus membros (ou sócios, ou plateia) e/ou simplesmente para
ostentarem alguma espécie de poder megalomaníaco-esquizofrênico de seus líderes
(ou donos).
Jesus em Jerusalém[2]
Jesus já está na cidade de Jerusalém e sabe que serão os
momentos derradeiros de seu ministério. Desde quando iniciou sua última subida
à Capital Jesus dedica-se em preparar os discípulos para os acontecimentos que
rapidamente se sucederão no transcorrer desta semana da Páscoa. Sua entrada
triunfal, suas idas ao Templo e seus momentos de refrigério e intimidade com
seus discípulos, principalmente na casa de Lazaro, se concluem nesta última
ceia pascoal com os discípulos no cenáculo cedido, provavelmente por Maria, mãe
do então adolescente João Marcos.
Jesus no Getsêmani
Terminada a refeição noturna da Páscoa, detalhadamente
descrita na narrativa joanina, Jesus sai com os discípulos e se dirige ao
jardim do Getsêmani,[3] ainda
dentro dos limites da cidade. Nesta curta caminhada de aproximadamente um
quilômetro até o jardim, localizado na encosta ocidental do Monte das Oliveiras,
segundo esse evangelista Jesus alerta Pedro sobre sua atitude de negá-lo e aos
demais que no momento derradeiro se dispersaram (cf. Zc 13.7).
São
as horas derradeiras! As últimas areias caem rapidamente na ampulheta do “kairós”
divino e Jesus tem plena consciência disso. Vai utilizar-se desses últimos grãos
da areia temporal se preparando para enfrentar tudo que está por lhe suceder. Nada melhor do que estar na presença do Pai.
O Pai o havia enviado, o Espírito Santo lhe sustentou e capacitou em todo o
tempo, agora é o momento de reunir todas as forças e disposição para concluir
sua obra redentora. Precisa do Getsêmani, assim como precisa do ar para
respirar. Somente o Getsêmani nos prepara as horas agudas da vida. Está
chegando a hora![4]
A narrativa de Marcos é de uma surpreendente simplicidade
que deixa os leitores desconcertados. Apesar de ter escrito posteriormente aos
acontecimentos, registra no presente histórico[5]
tornando os fatos vividos, como se estivéssemos juntos com Jesus em cada
segundo. A cena do Getsêmani, onde Jesus desnuda toda sua humanidade será concluída
nas suas últimas palavras na cruz: “Deus meu, Deus meu, porque me desamparastes”,
deixando claro para o leitor a intensidade do sofrimento experimentado por
Jesus em seu caminho do jardim até o calvário.
“Sentai-vos aqui enquanto vou orar” (14.32)
Em outros momentos da narrativa marcana Jesus se afasta
para orar sozinho (cf. 1.35; 6.46), mas diferentemente aqui ele retorna aos discípulos
e solicita sua companhia. E mais uma vez convida o trio Pedro, Tiago e João
para presenciarem um momento particular, assim como ocorrera na ressurreição da
filha de Jairo (5.37) e na transfiguração (9.2). Assim como eles tinham vivido
o momento glorioso da transfiguração de Jesus, agora também haverão de vivenciar
o momento mais angustiante de seus sofrimentos.[6]
Mas diferentemente eles não pedem para permanecerem ali no Getsêmani, na
verdade sempre queremos evitar o Getsêmani.
“começou a apavorar-se e a angustiar-se” (14.33).
Marcos utiliza dois verbos que unidos expressam toda a intensidade do
sentimento de Jesus naquele momento (ekthambeísthai e ademoneín). Eles
expressam o momento de petrificação, desorientação, abatimento, grande
ansiedade, inquietude e angústia.
“A minha alma está abatida [oprimida, esmagada] até a
morte” (14.34), são
expressões que aparecem nos momentos mais agudos dos salmistas (Sl 42.5-6, 12;
43.5; 116.3). Jesus se identifica com os salmistas que momentaneamente se
sentem abandonados e sozinhos diante de uma circunstância onde suas vidas estão
em mortal perigo. Ele sabe que Judas, o traidor se aproxima rapidamente, sabe e
avisou que Pedro o negaria, tem consciência da condenação do Sinédrio, da
sentença de Pilatos, dos escárnios de seus inimigos e que seria cruscificado
pelos soldados romanos. Mas o que mais em dói em Jesus é o silêncio da parte de
Deus. O silêncio de Deus atinge intensamente e dilacera o coração crente!
“Permanecei aqui e vigiai” (14.34b). Diferente
das outras ocasiões Jesus solicita o apoio dos discípulos, mas nem isso eles
puderam oferecer. Apesar de Jesus revelar-lhes seu estado de espírito
angustiado, eles não se tornam solidários; nenhuma palavra, nenhuma reação da
parte deles – Jesus que durante todo seu ministério se identificou com a dor e
sofrimento de outros, não encontra ressonância em seus próprios discípulos. A
solidão de Jesus é plena! Como é difícil encontrarmos genuína solidariedade nos momentos de angustia e dor! Mas por outro lado, raras vezes nos tornamos oásis na vida daqueles que sofrem, na maioria do tempo somos apenas deserto.
solidão de Jesus é plena! Como é difícil encontrarmos genuína solidariedade nos momentos de angustia e dor! Mas por outro lado, raras vezes nos tornamos oásis na vida daqueles que sofrem, na maioria do tempo somos apenas deserto.
“Caiu por terra” (14.35). O prostrar-se
é a posição que configura a profunda humildade, dependência e suplica daquele
que ora, diante do Deus que tudo pode (cf. Gn 17.3, 17; Lc 5.12; 17.16). É
somente no Getsêmani que sentimos e expressamos toda nossa fragilidade e
incapacidade diante de Deus. Aqui Jesus revela a plenitude de sua humanidade,
colocando-se diante do pai como um suplicante de sua misericórdia e graça!
Assim como os salmistas que em meio às mais angustias, ansiedades e medos se
lamentam e interrogam, mas nunca se afastam de Deus, assim também o faz Jesus
diante do Pai. O Getsêmani não afasta o genuíno crente de Deus, ao contrário, o
leva para mais perto de Deus!
“E orava para que, se possível, passasse dele a hora” (14.35). É
a primeira vez que tomamos conhecimento do conteúdo da oração pessoal de Jesus.
Ele sabia que a “hora” havia chegado, tem plena consciência de que veio para
esta “hora”; é o tempo previamente antecipado pelos profetas, preparado e
determinado pela divina providência. É o tempo conclusivo, que encerra um
período histórico (velha dispensação) e inaugura um novo período histórico
(nova dispensação). Mas aparentemente tudo concorre para um fracasso e não um
sucesso. A perspectiva de Deus realmente não é a nossa.
“E dizia: Abba, Pai[7]
tudo te é possível; passa de mim esse cálice; contudo, não seja o que eu quero,
mas o que tu queres” (14.36). A oração
completa, somente poderia ser expressa pelos lábios de Jesus, o Filho. Se as
nossas orações se assemelham com a de Jesus nas duas primeiras expressões, inevitavelmente
temos tremendas dificuldades com a última parte. Em outros dois momentos Jesus havia
se referido ao cálice que haveria de beber (10.38-39; 14.23), mas aqui é o
momento derradeiro. No Primeiro Testamento [AT] se utiliza a figura do cálice
para se referir ao tempo da manifestação da ira de Deus (o mesmo acontece no
Apocalipse); o evangelista mantém a figura com toda sua carga de sofrimento e
dor. Tudo que está por acontecer com Jesus a partir deste momento do jardim não
é coincidência e nem simplesmente expressão da maldade das lideranças
religiosas judaicas, mas antes e acima de tudo, o cumprimento dos desígnios de
Deus – ainda que os eventos sejam conduzidos pelos homens, o cálice vem das
mãos do Pai.
“Simão está dormindo?” (14.37). Enquanto Jesus ora em profunda angustia, os discípulos dormem!
O sono dos que não se apercebem da relevância do momento, da hora que se
aproxima. “não foste capaz de vigiar uma hora?” não apenas no aspecto físico
(canseira), mas de animo e disposição da alma e do coração – não são solidários
ao momento do Mestre. “Vigiai
e orai” (14.38) do singular para o plural, a ordem é
para todos e não apenas para um. Na questão da oração todos devem se empenhar
solidaria e solicitamente, e não apenas alguns “especiais” ou “líderes
espirituais”. Vigiar é a tônica diferencial da genuína oração, implica em atenção
zelosa, prontidão e resistência (cf. 1Ts 5.8; 1Co 16.3; Rm 13.11,12; Ef 6.16;
1Pd 5.8-9). “Para que não
entreis em tentação (provação)” (14.38b).
Jesus não está sendo tentado pelo Pai, mas está debaixo de Sua maior provação
(fazer a vontade do Pai e não a Sua); a oração é para que não venhamos a
sucumbir diante das dificuldades e lutas da vida; pois “o espírito está pronto, mas a carne é frágil”
(14.38c); a carne representa todas as limitações e fragilidades humanas
e o espírito representa a força e capacitação que vem da parte de Deus. Para fazer
a vontade de Deus é necessária uma total dependência dos recursos espirituais
que somente podem vir da parte de Deus. Nossas mais fragosas derrotas e
decepções são produzidas no apogeu de nossa autoconfiança e nossa total
displicência em relação aos recursos de Deus. A narrativa evangélica quer
deixar bem claro que o homem Jesus conheceu profundamente os embates da vida e
de sua experiência vivencial ele nos ensina – VIGIAI E ORAI!
“seus olhos estavam pesados de sono” e sono é encontrado
na literatura bíblica como corações empedernidos (cf. Mc 3.5; 6.52; 8.17; Jonas
desce ao porão do navio, para Tarsis, o oposto da vontade de Deus, Nínive, e
dorme profundamente).
“Dormi agora e repousai” (14.41), que
pode ser interpretada como “Ainda estais dormindo e repousando!”, como sendo
uma amarga e melancólica constatação. “Basta”,
agora o tempo já se esgotou. “Eis que
o Filho do Homem está sendo entregue às mãos dos pecadores” (14.41),
que é a tônica dominante da narrativa marcana (cf. 14.44; 15.1, 10, 15).
Aqui temos as duas forças motoras a Paixão: Deus que cumpre seus desígnios e os
homens que em sua ignorância e maldade querem destruir a vida de Jesus. Judas
será o representante de todo ser humano que se frustra com Jesus e faz a opção
de seu próprio coração.
“Levantai-vos! Vamos! (14.42). Depois
de se sujeitar plenamente à vontade do Pai, Jesus retoma sua serenidade e
assume seu papel de protagonista dos eventos imediatos. Ele se coloca entre o
desígnio de Deus e a maldade inerente do coração humano. Esse é o modelo para
todo crente e toda igreja em todos os tempos e lugares. Colocarmo-nos entre a
realização da vontade de Deus e as arbitrariedades humanas. Nunca o nosso país
tanto necessitou de cristãos e igrejas assim! Mas como os discípulos “nossos
olhos estão pesados demais” e permanecemos “dormindo e
repousando”, enquanto a nação e o mundo estão à beira da destruição e da
morte.
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/
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[1] Ver os extratos dos sermões de Pedro
e Paulo, registrados por Lucas em seu segundo volume Atos.
[2] Marcos
e seus colegas sinóticos (Mt e Lc) deixam transparecer que é a primeira vez que
Jesus sobe à Jerusalém desde quando iniciou seu ministério, todavia, nos
relatos evangélicos de João encontramos informações de que esta é a terceira
vez que Jesus sobe com seus discípulos à Jerusalém (2.13; 5.1 e 7.10).
[3] “gat
shemanim”, que significa “prensa dos óleos”, é um terreno onde se cultiva
oliveiras.
[4] O
Getsêmani lembra tentação no deserto (1.13) quando da preparação em oração para
o início do seu ministério público (1.35). Jesus se retira para orar no
princípio de seu ministério para compreender o seu próprio caminho; agora
ele igualmente faz para enfrentar a conclusão de seu ministério.
[5] A
utilização dos tempos verbais nessa narrativa do Getsêmani emolduram as ações
de forma maravilhosa, como tão bem destaca Galizzi: “O presente histórico
registra e torna imediatos os fatos, o imperfeito os descreve” (1972, p. 28,
apud, MAGGIONI, 2000, p. 19).
[6] Há
duas diferenças ilustrativas nas duas cenas paralelas da transfiguração e do
Getsêmani: na transfiguração podemos ouvir a voz do Pai, aqui um profundo
silêncio se faz sentir; na transfiguração contemplamos Jesus em sua glória e
divindade, e aqui em sua plena humanidade.
[7] Jesus
deve ter usado somente o substantivo aramaico Abba e
o evangelista acrescenta o termo Pater do grego para esclarecer o leitor não
judeu. No aramaico é um termo familiar de intimidade, algo como Papai
das crianças pequenas, mas nunca utilizada em relação a Deus. Ao fazê-lo aqui
Jesus expressa sua plena intimidade com o Pai e sua plena confiança em seu
amor.
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