segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

NT - As Epístolas Paulinas: Introdução Geral


No arranjo canônico do Segundo Testamento logo após os quatro Evangelhos e o livro de Atos, temos uma sequencia de vinte e uma Epístolas,  chegando a vinte e duas se incluirmos o Apocalipse como uma epístola (que em realidade é - veja Apocalipse 1:4), todavia, por causa de sua natureza apocalíptica sem igual, deve ser categorizada e estudada distintamente como o Livro Profético do Novo Testamento.[1]
Tratando sobre esta questão das epístolas Louis Berkhof destaca a relação paritária das epístolas com as demais literaturas bíblicas como instrumento da revelação de Deus:
 A revelação de Deus vem para nós em muitas formas, em diversas maneiras. A Mensagem de Deus foi proclamada não apenas oralmente mas também na forma escrita; não apenas pelos profetas, mas também pelos doces cantores e pelos homens sábios de Israel; assim também, o Evangelho encontra expressão não apenas nos Evangelhos, mas também nas Epístolas. Praticamente um terço do Novo Testamento está estruturado na formula epistolar (1915).

Nessa mesma linha de perspectiva  F. F. Brucce destaca que cronologicamente as Epístolas na verdade precedem os Evangelhos:
Os mais antigos  documentos neotestamentário, segundo chegaram até nós, são as cartas escritas pelo apóstolo Paulo antes de seu encarceramento em Roma (cêrca de 60-62 A.D.). O mais antigo dos Evangelhos na forma atual não se pode provavelmente atribuir a data anterior ao ano 60, mas da pena de Paulo temos nada menos de dez Epístolas datadas entre 48 e 60 (1965, p. 99).
As Epístolas estão geralmente divididas em Epístolas Paulinas e as Não Paulinas e/ou Epístolas Gerais.[2] As Epístolas de Paulo podem ser subdivididas em duas categorias: nove epístolas escritas a igrejas (Romanos a II Tessalonicenses) e quatro pastorais ou pessoais (1 e 2 Timóteo, Tito e Filemom), perfazendo um total de treze.
É preciso destacar também que Paulo escreveu muitas outras cartas que nós não possuímos. Isto fica evidente nas entrelinhas de suas próprias Epístolas. I Cor. 5:9 faz referência a uma carta perdida. Col. 4:16 fala de uma correspondência enviada a Laodiceia, da qual temos tão somente esta indicação. Mas aprouve ao Espírito Santo inserir apenas estas cartas no Cânon das Sagradas Escrituras. E como nos informa Kummel:
No começo do século XIX, a origem paulina de algumas epístolas foi posta em dúvida – em primeiro lugar , as Pastorais, e, depois também as epístolas aos Tessalonicenses, aos Efésios, aos Filipenses e também aos  Colossenses.  Nessa época F. C. Baur e a Escola de Tubingen reconheciam apenas as chamadas ‘grandes epístolas’ (Gálatas, I e II Coríntios, Romanos) como autênticos documentos do Apóstolo, porque somente estas epístolas poderiam ser entendidas como testemunhos da luta entre Paulo e os judaizantes. Mas logo se tornou patente que a Escola de Tubingen encerrava a imagem histórica da cristandade primitiva num esquema por demais estreito. Os defensores da ‘critica-radical’ chegaram a negar a autoria de Paulo até para as quatro ‘grandes cartas’, explicando-as como sedimentação de correntes  antagônicas por volta do ano 140. Eles partiram de pressupostos literários insustentáveis e de uma construção forçada da história, como o fizeram as construções posteriores (1982, p.320).
Após as correspondências paulina temos oito epístolas[3] dirigidas aos Cristãos judeus dispersos (Hebreus[4] a Judas), que nos manuscritos antigos usualmente segue imediatamente depois de Atos dos Apóstolos e, portanto precede as Epístolas Paulinas, talvez porque elas foram elaboradas pelos apóstolos mais velhos e no general enfatizam as comunidades Cristãs Judaicas, provavelmente formadas pelos judeus convertidos no sermão de Pedro, e outros, durante a Festa do Pentecostes. Sua apresentação da verdade naturalmente difere das Epístolas escritas por Paulo, que visa principalmente os gentios, mas cada uma delas esta em harmonia perfeita, não havendo qualquer tipo de contradição.
A pregação do Evangelho originalmente era feita de forma apenas oral, e aqueles que eram convertidos se uniam formando pequenas e singulares comunidades ou igrejas. Os apóstolos e os demais evangelistas iam anunciando a Cristo em diversas regiões do mundo conhecido no século primeiro. Deste ministério missionário surge a necessidade de se comunicar com algumas dessas comunidades cristãs para instruí-las na fé, para animá-las e exortar ou então corrigir deficiências. As cartas foram o meio mais eficiente e rápido para se fazer este trabalho pastoral à distância como tão bem esclarece José Roberto Cardoso em seu artigo:
O recurso à carta surgiu na antiguidade da necessidade de comunicação entre indivíduos que se encontravam geograficamente distantes uns dos outros. O impedimento da presença da pessoa fez dela o melhor porta-voz. É verdade que se fizeram necessárias diversas tentativas e versões, a fim de se evitar que seu conteúdo ficasse obscuro ou ambíguo. Para tanto, o escritor tinha que ter em mente a impossibilidade do destinatário de pedir esclarecimentos sobre qualquer ponto em questão. ... Conforme J. L. White (1986, p. 190), a carta atendia a três propósitos bem definidos: ‘(1) fornecer informações; (2) fazer petições ou dar ordens/instruções; e (3) desenvolver ou manter contato pessoal com os recipientes’ Essas funções epistolares modelavam as espécies de cartas no mundo helenístico. O relatório militar ou da burocracia atendia ao primeiro item. As relações sociais entre inferiores e superiores, entre iguais e entre mestres e alunos encaixavam-se no segundo item. Já a correspondência de amizade e familiar pertenciam ao terceiro. Para os antigos escritores, esse último tipo de correspondência era o mais estimado, comparado a um dom (2000, p. 28-29).

Tornou-se também um modo excelente de fazer com que essas instruções ficassem perpetuadas através e para as gerações, como bem coloca Kummel:
A força motriz para a formação independente da forma epistolar num meio de auto comunicação literária da cristandade foi a real necessidade da missão para a edificação e instrução, admoestação e trabalho pastoral, defesa contra ideias errôneas, e manutenção da ordem eclesial (1982, p. 318-319).
Estrutura das Cartas do Novo Testamento
            De acordo com as informações de Robert H. Gundry (1987, p. 287) as cartas particulares, no período greco-romano, tinha em torno de noventa palavras em média e que pelas dimensões da folha de papiro (34 cm x 28 cm) não caberia mais do que 150 a 250 palavras, de modo que, as cartas pessoais se restringiam normalmente a uma folha apenas.
            Mas ao examinarmos as cartas de Paulo verificaremos que são muito mais extensas indo de 335 palavras em Filemom a 7.101 palavras em Romanos, perfazendo uma média em torno de 1.300 palavras. Deste modo, pode se dizer que Paulo criou uma nova forma literária, a epístola – caracterizada por ser uma carta extensa, ter uma natureza teológica e usualmente um objetivo comunitário dos endereçados. Todavia, ele mantém toda a estrutura de uma carta genuína, pois contém endereçados genuínos e específicos, se distinguindo das epístolas literárias daqueles dias, que eram escritas para um público geral.
            O Professor Felix Just faz um amplo e excelente estudo da estrutura literária das cartas neotestamentárias, das quais utilizamos aqui apenas a parte introdutória.
Estrutura Padrão de Cartas Antigas:
As comunicações escritas hoje seguem alguns formatos bastante comuns e padronizadas:
  • Cartas pessoais normalmente começam com algo parecido como “Querida Maria” e terminam com “Amor, João”. Nós escrevemos a data à direita do topo e depois de escrevermos uma ou mais paginas... assinamos, dobramos, colocamos em um envelope, escrevemos o endereço do recipiente e o remetente colocamos no verso do envelope.
  • Memorandos empresariais ou mensagens de Email têm freqüentemente um cabeçalho com quatro partes (Para: / De: / Data:Mensagem: ou  De: / Enviou: / Para: / Assunto:).  
Assim também, a maioria das cartas escritas no mundo antigo seguia um formato padronizado, mas que é ligeiramente diferente de hoje. As cartas no NT escritas e/ou normalmente atribuído a Paulo e outros Apóstolos segue os modelos padronizados da sua época. Embora haja algumas variações nas cartas individuais (especialmente no corpo e conclusão), as estruturas básicas das cartas antigas podem ser esboçadas como segue:
I) Cabeçalho da Carta
  1. Remetente(s): De quem
  2. Recipiente(s): Para quem
  3. Formula de Saudação
  4. Ação de Graças (ou Bênção)
II) Corpo da Carta
  1. Exortação inicial
  2. Declaração do assunto
  3. Discussão teológica
  4. Advertência ética
III) Conclusão da Carta
  1. Assuntos práticos
  2. Saudações individuais
  3. Pós-escrito pessoal
  4. Doxologia ou Oração final
Características Especiais das Cartas Paulina:
  • Na maioria destas cartas, Paulo não é o único autor, mas são mencionados um ou mais co-autores (quem normalmente é listado? Quais cartas listam só Paulo? Pôr que?)
  • Estas cartas não são endereçadas a todas as pessoas indistintamente, mas exclusivamente às pequenas e iniciantes comunidades de Cristãos (como exatamente Paulo se dirige a eles?).[5]
  • A “Saudação Padrão Paulina” associa uma variação da saudação grega habitual (chaire –“Graça”) com a saudação judia comum (shalom –“Paz”)
  • Todas as cartas escritas ou atribuídas a Paulo contêm um padrão de três seções principais, mas nem todas as cartas Paulinas contêm exatamente as mesmas subdivisões como mencionado acima:
    • às vezes uma subdivisão é omitida, (por exemplo na abertura de Gálatas; no fim de 1 Tessalonicenses)
    • às vezes a ordem de subdivisões é mudada (os fins de muitas das cartas de Paulo)
    • às vezes algumas cartas têm mais de uma seção do mesmo tipo (por exemplo duas "ações de graças" em 1 e 2 Tessalonicenses)
    • frequentemente as preocupações teológicas, éticas, e práticas são entrelaçadas (especialmente nas cartas longas), assim as divisões de verso no “Corpo da Carta” e os subtítulos são apenas sugestões aproximadas.         
Edição das Cartas
Outra prática comum no mundo antigo era colecionar e republicar as cartas de pessoas famosas como Paulo.  Neste processo, foram combinadas às vezes cartas mais curtas ou outras mudanças editoriais. Isto não diminui em absolutamente nada a inspiração e inerrância das Epistolas canônicas.
Por exemplo, o que é chamada “Segunda Carta de Paulo normalmente aos Coríntios" (2 Cor) poderia ser uma compilação de que estava originalmente entre duas e cinco cartas separadas. Semelhantemente, alguns estudantes pensam que a “Carta de Paulo aos Filipenses” é uma compilação posterior de três cartas originalmente separadas.
Gênero Literário
As cartas incluem gêneros literários diferentes: desde um profundo tratado teológico sobre a fé (ex. Romanos), até uma simples carta pessoal (ex. Filemom), passando pelas temáticas diversificadas (ex. Coríntios).
Estes gêneros literários devem-se, sobretudo às circunstâncias diversas das cartas, mas também, como no caso de Paulo e Pedro, ao temperamento arrebatado e no caso de João um paternal amor em favor dos crentes e suas comunidades.
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/


Artigos Relacionados
Cartas ou Epístolas?
Paulo: Informações Biográficas
Epístolas Paulinas: Data e Autoria Conservadores e Liberais
O Mundo do Apóstolo Paulo: A Filosofia
Epístolas Paulinas
Tubingen: a Escola Holandesa Radical

Referências Bibliográficas
BARCLAY, William. El Nuevo Testamento comentado. Buenos Aires (Argentina), Asociación Editorial la Aurora, 1974.
BROWN, Raymond. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2004 (Coleção Bíblia e história Série Maior).
BERKHOF, Louis . New Testament Introduction. Eerdmans, 1915, Scanned and Edited Mike Randall.
BRUCE, F. F. Merece Confiança o Novo Testamento? São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1965.
CARDOSO, José Roberto C. 1 Tessalonicenses: Epístola e Peça Retórica, Fides Reformata, v.7, São Paulo, 2000, pp. 28-29.
GUNDRY, Robert H. Panorama do Novo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, 1987.
HALE, Broadus David. Introdução ao estudo do Novo Testamento. Trad. Cláudio Vital de Souza. Rio de Janeiro: JUERP, 1983.
JUST, Felix, Loyola Marymount University, Editoração Eletrônica: clawww.lmu.edu/~fjust
KUMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 1982.
WESTCOTT, Brooke Foss. A general survey of the history of the canon of the new testament. 4ª ed. London: Macmillan and Co., 1875.




[1] É preciso levar em conta a observação de Kummel: “Mas nem todos são realmente cartas, ou seja, escritos endereçados em ocasiões especificas a pessoas determinadas ou a círculo de pessoas, escritas coma finalidade de comunicação íntima, sem intenção de maior divulgação. Em Tiago, por ex., falta tudo o que constitui realmente uma carta. O Apocalipse, para dizer a verdade, está moldado num estilo epistolar, mas, literariamente falando, pertence ao gênero apocalipse. Com relação à Epístola aos hebreus, as opiniões variam largamente, não se sabendo ao certo se deve ser considerada como uma verdadeira carta ou um ensaio artisticamente elaborado e dirigido a um público mais vasto, empregando a forma epistolar apenas como forma externa. Entre as epístolas católicas, somente a segunda e terceira epístolas de João são realmente cartas, com endereços exatos e específicos”. KUMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento, ed. Paulus, São Paulo, 1982, pp. 316-317.
[2] Pôr que essas Epístolas começaram a serem chamadas de Gerais ou Católicas, é mais ou menos um enigma. Várias interpretações para esta classificação têm sido dado, mas nem uma delas tem sido inteiramente satisfatória.
[3] Destas oito Epístolas Hebreus e as primeiras de Pedro e a primeira de João foram geralmente aceitas como canônicas desde o começo, enquanto as demais a princípio foram questionadas e posteriormente foram gradualmente sendo aceitas por todo a Igreja.
[4] Vários estudiosos somam a Epístola aos Hebreus à cota paulina, embora em nenhum lugar dela haja referência de que Paulo a escreveu. A Igreja esteve sempre dividida nesta questão, a Igreja Oriental confirmando e a Ocidental rejeitando que Paulo tenha sido o seu autor. Quando abordarmos a referida epístola haveremos de discutir mais detalhadamente este aspecto.
[5] “... as cartas de Paulo foram escritas por um autor particular e dirigidas a um circulo particular de leitores e não a um público geral. Sempre são determinadas e referentes a uma situação definida, ainda que outras questões surgidas no seu decorrer possam escondê-la. É isso que torna as cartas de Paulo tão atraentes, embora também fique mais difícil a compreensão ao leitor posterior.” BORNKAMM, Gunther. Bíblia – Novo Testamento – Introdução aos seus Escritos no Quadro da História do Cristianismo Primitivo, Edições Paulinas, 1981, p.74.

Um comentário: