Diferentemente da Galeria
Natalina, onde seus quadros reproduzem as cenas festivas emolduradas
pelos cânticos e manifestações angelicais, anunciando o nascimento de Jesus e
as boas novas de salvação para todos os povos. A Galeria da Páscoa haverá
de produzir quadros muito mais tensos e carregados de dor e sofrimento. Aqui as
cores alegres e luminosas são substituídas pelas cores sombrias e escuras. Mas
sem duvida alguma é nessa Galeria pascoal que podemos nos ver de forma nua e
crua; toda nossa maldade e crueldade estão emolduradas em cada uma dessas cenas
evangélicas; em essência a humanidade é aqui revelada em toda sua decadência e
pecaminosidade. A traição, o abandono, a negação, os escárnios, as injustiças,
o ódio, a ganancia, a mentira e finalmente a morte mais atroz na cruz, são
apenas lampejos da depravação humana em sua essência. O horror que sentimos com
as cenas e atitudes ali emoldurados é porque sabemos que poderíamos fazer parte
de qualquer uma daquelas cenas, pois não somos melhores em nada de cada uma
daquelas pessoas. No mínimo faríamos parte daquele coro maldito que cantava
alucinadamente: “crucifiquem-no,
crucifiquem-no”.
O
quadro a ser apresentado aqui é aquele em que os evangelistas retratam um dos
momentos mais triste da vida do apóstolo Pedro – sua tríplice negativa. Justamente ele que
foi um dos personagens mais proeminentes no transcorrer das narrativas
evangélicas; ele que em muitas ocasiões tornou-se o porta-voz de seus colegas;
ele que em algumas ocasiões foi separado pelo próprio Jesus para presenciar
acontecimentos específicos, como a ressurreição da filha de Jairo e a transfiguração;
esse mesmo Pedro será protagonista de uma das cenas mais tristes desta galeria
pascoal. Seguiremos a narrativa de Marcos para emoldurar e pincelar estas cenas
angustiante e dolorida, com a qual todo cristão sincero se identifica, pois o genuíno
arrependimento é sempre acompanhado pela mais profunda dor e horror pelo
pecado.
“Pedro o seguiu de longe
até o pátio do sumo sacerdote” (14.54).
Logo
após
ser traído por Judas Iscariotes, Jesus é preso e levado até a residência do
Sumo Sacerdote Caifás, e durante todo o trajeto desde o Jardim das Oliveiras o
apóstolo Pedro acompanha esgueirando-se por entre as árvores e acobertado pelas
sombras da noite. E aqui temos um paradoxo,
pois sua negação não se dará pelo fato de ter fugido ou se afastado de Jesus,
como os demais (14.50), mas ao contrário, a cena da negação somente ocorre pelo
fato de Pedro ainda ter a disposição de seguir a Jesus – “Pedro seguira-o de longe”. Ele esta
tentando ser fiel às suas próprias palavras: “Senhor, estou pronto a ir contigo até à prisão e à morte”
(Lc 22.33). Essas palavras proferidas no calor de seu entusiasmo e emoção,
ainda ressoam em seus ouvidos e o impulsionam a continuar seguindo, mesmo que
de longe, seu Mestre.
O verbo utilizado pelo evangelista
Marcos (akoluthein – seguir) expressa um sentido forte de desejo em seguir, de
não abandonar, ainda que o complemento “de
longe” revele todo o antagonismo da cena, pois não é possível seguir
Jesus de longe – para segui-lo de fato é preciso antes de qualquer coisa o “negar a si mesmo”. Pedro, seu irmão André e
seus companheiros de pesca Tiago e João foram os primeiros a serem chamados por
Jesus e “imediatamente, deixando as redes, eles o seguiram” (1.18). Seguir Jesus
de longe é sempre um caminho perigoso! Para seguir a Jesus de fato e de verdade
é preciso não apenas a fé mas também sua contrapartida a coragem.
A cena central é Pedro se movendo
desconfortavelmente no pátio da casa do Sumo Sacerdote Caifás. Mas quanto mais
Pedro tenta ser invisível, mais sua visibilidade é manifestada. Não tem como o discípulo
permanecer incógnito!
Pedro tenta se misturar à criadagem
e assim se camuflar, mas uma das criadas fita-o com atenção (emblepein), e
imediatamente o identifica “Também tu estavas com Jesus Nazareno” (14.67).
Nesse primeiro momento a identificação é pessoal entre a serviçal e o discípulo
camuflado, mas é explicita e precisa – “você estava com (metà –
junto de, de acordo com, na companhia de) Jesus” que é a marca
distintiva do chamado para o discipulado; “...
para que ficassem com Ele, para
enviá-los a pregar” (3.14).
Pedro muda de lugar na tentativa de
permanecer ali, mas uma segunda vez ele é identificado e diferentemente agora é
exposto aos demais ao redor: “começou
de novo a dizer: este é um deles!”
(14.69). Agora Pedro é identificado não apenas com Jesus, mas também de
pertencer ao grupo de seus discípulos. Seguir a Jesus implica em fazer parte
integrante de sua comunidade, de sua Igreja. Tem aumentado grandemente o numero
daqueles que desejam seguir a Jesus sem fazer parte de uma igreja,
justificando-se nas atitudes e escândalos provocados por grande parte das “lideranças”
eclesiásticas; porém, nem o grupo apostólico, nem a igreja primitiva, ficaram isentos
dos lampejos da pecaminosidade humana, e o próprio Pedro é um triste exemplo
dessa realidade.
Mais uma vez Pedro de esgueira e
tenta ficar nas sombras, mas agora são os servos e guardas que lhe abordam: “De fato, és um deles; pois és galileu”
(14.70). Pedro é denunciado, ao final, pela semelhança mais tênue dele com
Jesus, o fato de serem ambos da região da Galileia.
Na mesma medida em que Pedro vai
sendo reconhecido e identificado com Jesus – ele nega. Na primeira (14.68) ele declara: “Não sei do que você esta falando [nem me diz respeito]”
– se esforçando em demonstrar que não tinha qualquer ligação ou interesse na
pessoa de Jesus ou no seu ensino. Na segunda
negação (14.70), o evangelista apenas registra: “Ele negou de novo”, mas a ideia do verbo no
imperfeito
denuncia que Pedro repetidamente negou sua ligação com Jesus [não o
conheço, não o conheço, não o conheço.....]. E a terceira e derradeira
negativa revela toda a fragilidade e temeridade de Pedro: “Ele, porém, começou a maldizer e a jurar: Não conheço esse
homem de quem falais!”
(14.71). Pedro nem ao menos cita o nome de Jesus – “esse homem”. Poucos dias atrás, ainda
quando eles subiam para Jerusalém, Pedro havia declarado em alto e bom som: “Tu és o Cristo” (8.29), mas aqui Jesus
torna-se apenas “esse
homem”.
É nesse exato momento, quando Pedro
desaba diante da pressão popular, que ao longe o galo canta e imediatamente as
palavras ditas por Jesus poucas horas antes ecoam novamente na mente e no
coração de Pedro “Antes que o galo cante duas vezes, três vezes me negarás” (14.72). O termo “lembrar/recordar” é muito importante
no contexto da fé hebraico-cristã. É muito mais do que uma simples lembrança ou
recordação, pois envolve o coração e a própria vida. A lembrança/recordação da
Palavra de Deus vivifica e santifica a vida do crente. As palavras de Jesus a
Pedro foi o meio pelo qual o Mestre sustentou seu amado discípulo que acaba de
negar conhece-lo.
Apesar de toda dor e vergonha que
resga e dilacera o coração e alma de Pedro, produzindo nele o pranto do
arrependimento (14.72), foram a lembrança das palavras de Jesus que o
sustentaram. Seu choro se faz ouvir, acompanhado de gemidos e de lamentações e
isso repetida vezes. Foi a recordação das palavras de Jesus que produzem em
Pedro o arrependimento e por esta razão o salva da morte, diferentemente de
Judas Iscariotes que se entregando totalmente ao remorso, não consegue trazer à
memória as palavras de Jesus e tira sua própria vida (14.44). As palavras de
Jesus e o arrependimento são as razões pela qual Pedro vive e não morre. Mas
apesar de ser um dos quadros mais triste e doloroso, não é de todo negativo ou
desprovido de esperança, pois a última cena de Pedro não é a sua negação, mas
seu arrependimento por tê-lo negado.
Se Pedro e seus companheiros tivessem
colocado sua confiança nas palavras de Jesus “Todos vocês se escandalizaram de
mim” e confiados menos em si mesmos “Ainda que todos se escandalizem, eu não escandalizarei...
e todos diziam o mesmo”, estariam mais preparados para enfrentarem as
adversidades que lhes sobreveio. Ao mesmo tempo em que devemos estar preparados
para morrermos por Jesus, devemos também estar prontos a reconhecermos toda
nossa debilidade e fragilidade. O erro de Pedro não foi declarar: “Mesmo
que tivesse de morrer contigo” (14.31), mas a presunção e autossuficiência diante da Paixão.
Assim como Pedro dormimos no
Getsêmani (14.37), fugimos no momento da prisão (14.50) e negamos no meio das
pressões da sociedade. A nossa segurança está tão somente Naquele que nos
fortalece! Assim como Jesus, que busca no Pai forças para enfrentar o caminho
da cruz é somente na oração submissa (Getsêmani) que devemos buscar os recursos
para a sustentação da nossa fé.
Quando o evangelho escrito por
Marcos começou a circular entre as comunidades cristãs, ele e todos os leitores
sabiam o quanto Pedro de fato e de verdade estava disposto a dar sua vida por
amor a Cristo. Há indicações que próximo dos anos sessenta Pedro foi crucificado
de cabeça para baixo, a seu pedido, pelas autoridades romanas.
Mas o Quadro de suas Negativas deve
sempre nos fazer pensar no quanto somos débeis e do quanto devemos sempre
depender da graça de Deus!
Utilização livre desde que citando a
fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/
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