Da mesma forma que a Galeria
Natalina tem entre seus quadros alegres, festivos e
coloridos, um quadro com sombras escuras e sombrias: a mortandade dos infantes,
por ordem de Herodes, na tentativa desesperada de matar o menino Jesus; da
mesma forma em meio aos quadros tensos e sombrios da Galeria da Páscoa irrompe
um quadro maravilhoso que irradia sua luz de beleza singular de uma das maiores
expressões de amor registrado nas páginas bíblicas – a unção de Jesus por
Maria!
Apenas Lucas não registra esta extraordinária cena,
provavelmente por que havia registrado uma cena semelhante anteriormente (Lc
7:36-50.). Mas João (12.1-8), Marcos
(14.3-9) e Mateus (26.6-13) emolduram com detalhes
peculiares esse momento maravilhoso. Das três narrativas a mais econômica é a
de Mateus, a de João é a mais longa e a que nos fornece mais detalhes
singulares e Marcos fica entre os dois com seu estilo sucinto. Marcos e João
oferecem diversos detalhes da cena que não constam no quadro de Mateus que
haveremos de especificar enquanto observamos esses belos quadros. O
quadro moldurado por Marcos será nosso referencial.
Somos informados por Marcos que o clima que antecede a páscoa
judaica está cada vez mais tenso. Nunca antes no judaísmo adversários políticos
e grupos religiosos antagônicos haviam se aliado, nem mesmo contra o Império Romano.
Estas autoridades religiosas judaicas procuram persistentemente quaisquer motivos
para prenderem e matarem Jesus, mas ao mesmo tempo estão temerosos diante da
acolhida de Jesus pela multidão que continua chegando à cidade de Jerusalém
para a comemoração da maior e mais popular festa do calendário religioso do judaísmo
(Mc 14.1-2).
No verso
três o evangelista vai narrar a cena que ocorrera
alguns dias antes, mais precisamente na noite de sábado anterior, quando Jesus e seus discípulos
foram convidados para participarem de um jantar na vila de Betânia.
O que na verdade o evangelista deseja é contrastar essa cena anterior com duas outras a
dos versos 1 e 2 onde
as autoridades maquinam a prisão e morte de Jesus e a cena mais cruel dos versos 10 e 11 em que
Judas vende seu mestre por algumas moedas de prata. A cena de Maria ungindo
Jesus com perfume caríssimo e enxugando seus pés com os próprios cabelos
expressa e materializa um amor sem medida e sem preço, tornando as duas outras
cenas ainda mais vil e mesquinha. Se a cena de Maria revela o amor mediante a
graça salvadora operada por Jesus na sua vida, as outras duas cenas revelam o ódio
e a covardia dos corações desprovidos desta graça maravilhosa. Nada de bom se
pode esperar daqueles que permanecem escravizados pela natureza pecaminosa e
que em sua rejeição a Jesus ficam desprovidos da única fonte genuína de amor e
graça, que poderia mudar-lhes a natureza decaída. Autoridades religiosas
responsáveis não apenas pelos sacrifícios e cultos no Templo, mas de guiar o
povo a Deus e um discípulo que acompanhou Jesus por toda Palestina, que
participou de eventos miraculosos sem precedentes, revelam em seus atos asquerosos
e sórdidos que seus corações jamais
haviam experimentado dessa maravilhosa graça de Jesus! Infelizmente ainda hoje
assim continua a viver grande parte dos religiosos de plantão e a multidão de
cristãos nominais.
A mesa esta posta
e os mais de quinze convidados se inclinam ao redor como era
costume na época. O jantar foi oferecido como expressão de amor e gratidão a
Jesus pela cura do anfitrião denominado de Simão, o leproso e o ressuscitado
Lázaro. Tanto a lepra quanto a morte
são representativos das consequências da entrada do pecado na raça humana,
razão pela qual Jesus tem que continuar sua jornada até a cruz.
Estão presentes as irmãs Marta e
Maria (Jo
12.2) que também moram em Betânia. Como sempre Marta está servindo a mesa
enquanto Maria vai se colocar aos pés de Jesus. A cena vai registrar a quebra
de diversos paradigmas dos costumes judaicos, pois onde se manifesta a graça e
o amor os paradigmas perdem seu valor e relevância. O vinho novo rompe os
lacres dos velhos barris, que não suportam sua fermentação.
O evangelista não especifica em que momento da refeição,
uma mulher, identificado por João como sendo Maria de Betânia (12.3), em um
gesto inesperado e incomum começa a derramar sobre a cabeça de Jesus um
precioso perfume de nardo puro, que ela trazia em um vaso de alabastro.[1] O
perfume é caríssimo, pois o nardo é uma raiz cujas folhas secas são cultivadas
no Himalaia e, portanto ao chegar à Palestina seu preço é muito elevado. Mas
Maria não é econômica, pois ao quebrar o recipiente só lhe resta derramá-lo
todo sobre Jesus de maneira que chega até os pés do Mestre. Em um gesto ainda
mais escandaloso ela solta seus cabelos e começa a enxugar os pés de Jesus com
eles. Toda a casa é tomada pelo perfume agradável do nardo, de maneira que era
impossível não senti-lo. Mas ela não está derramando apenas o perfume
caríssimo, mas muito mais, ela derrama seu coração que não encontrou outra
forma de expressar seu imenso amor e gratidão pelo Senhor Jesus. Quanto
mais um coração é cheio da graça salvadora, mais ele transborda em
manifestações de amor incalculáveis. E continua sendo raríssimas aqueles
que experimentam da abundante graça de Deus e transbordam em amor!
A reação por parte dos discípulos revelam toda
mesquinhez e secura de seus corações. A voz de contestação de tão grande “desperdício”
de perfume tão raro e caro não podia ser outra a não ser Judas
Iscariotes. Sua mente materialista e seu coração insensível rapidamente
calculou o valor monetário derramado, em torno de trezentos denários[2]
(Jo 12.5) ou ainda mais conforme Marcos (14.5). Mas Judas não está sozinho,
pois as expressões “se indignaram” e “murmuravam
contra ela” estão no plural. Os olhares de indignação e os murmúrios repreensivos
contrasta abertamente a ação amorosa de Maria. Somente na
vida em que superabundou a graça haverá de encontrar genuínas expressões de
amor.
O argumento de Judas endossado pelos demais discípulos é
que o dinheiro derramado em forma de perfume poderia ter sido usado para ajudar
os pobres e necessitados. A falácia dessa argumentação será revelada
plenamente quando esse mesmo “altruísta” discípulo venderá seu próprio Mestre
por trinta moedas de prata. Quantas vezes nos escondemos por trás de expressões
e fraseologias totalmente estéreis e inócuas. O evangelicalismo brasileiro está
totalmente contaminado por pregações e discursos com as quais seus porta-vozes
não têm qualquer disposição de praticá-las. Nunca se valorizou
tanto a “teologia” nesse país, mas também nunca se desvalorizou tanto o amor
como nos dias atuais. O que falta aos crentes hoje não é mais teologia,
mas um retorno urgente ao primeiro amor.
Jesus é obrigado a sair em defesa de Maria (Mc 14.6-7). “Deixai-a
em paz”; “parem de molesta-la” porque ela praticou boa
ação (uma ação bonita) para comigo. O Getsêmani
e o Calvário já estão sendo antevistos por Jesus, mas
seus discípulos não conseguem ver além de seus próprios interesses. Mesmo
depois de mais de dois mil anos essa atitude mesquinha e materialista dos discípulos
continuam sendo manifestas nas vidas da maioria dos cristãos atuais. Para
camuflar os corações esvaziados da graça amorosa enaltecemos e premiamos
aqueles raros entre nós que como Maria expressão abundante amor pelo Senhor
Jesus. Os crentes que oram e leem a bíblia são premiados, pois são tão raros
quanto Maria, em meio aos discípulos que não tem disposição para viverem uma
vida piedosa.
Mesmo depois de Jesus afirmar que Maria esta antecipando
seu embalsamento os discípulos conseguem sair de seu estado de letargia. A ação
amorosa de Maria é sua última oportunidade de expressar o quanto amava e era
agradecida a Jesus por tudo que lhe havia feito. O amor que
transborda em Maria em abundância, não se vê vestígios algum nos discípulos. A
atitude dela deveria fazê-los corar de vergonha, mas seus corações estão tão
secos da graça amorosa que reagem com indignação e murmuração
contra sua ação.
E esta cena maravilhosa de amor e graça é concluída com
as palavras de Jesus: onde esse Evangelho for proclamado, será lembrado o
que Maria fez aqui. E aqui estamos nós contemplando esse quadro maravilhoso
e recordando o que aquela mulher fez!
Portanto, a Páscoa que produz quadros cujas cores sombrias
e nefastas predominam, também é a oportunidade para essa cena de graça e amor.
Maria continua sendo um modelo para todos aqueles que verdadeiramente têm
experimentado da graça transbordante da salvação e que não conseguem reter para
si mesmo, mas a manifestam em toda sua força e multiplicidade de ações e
atitudes amorosas.
O que o Brasil carece nesse tempo de depravação e
corrupção deslavada, que revelam toda maldade dos corações, não é de mais
pregações e discursos, mas de atitudes e ações que revelem a graça que emana da
cruz, expressão maior do amor eterno e imensurável de Deus por nós.
Somente quando essa sociedade hedonista e consumista vir
em nós um genuíno amor pelo Senhor Jesus, ela começará a dar crédito à nossa
pregação. Podemos multiplicar por mil os esforços evangelísticos
por todo o país, mas se não manifestarmos abundantemente o nosso amor por
Jesus, seremos apenas sons como de um sino. O ato amoroso de Maria tem
rasgado os séculos e permanecido como um modelo do verdadeiro discipulado.
Utilização
livre desde que citando a fonte
Guedes,
Ivan Pereira
Mestre
em Ciências da Religião.
Universidade
Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro
Blog
Historiologia
Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/
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[1] Vasos
ou frascos para contenção de unguentos eram feitas em Alabastron no Egito de
uma pedra encontrada nas montanhas vizinhas, e assim a referência passou a ser utilizada
para identificar as embalagens utilizada para um fim desse tipo.
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