Entre os livros mais vendidos de
todos os tempos estão, pela ordem: a Bíblia, o Peregrino (autor: John Bunyan), o
Livro Vermelho (de Mao Tsé-Tung), o Alcorão e Dom Quixote (de Miguel de
Cervantes). Se não houvesse, mas há,
outras razões para se resgatar essa extraordinária obra literária evangélica, o
fato de ser o segundo livro mais lido em todos os tempos já seria por si razão
suficiente para resgatar e recolocar em seu devido lugar de relevância esta
mais famosa alegoria[1]
cristã evangélica – O Peregrino.
Um resumo sucinto do conteúdo deste
livro pode ser encontrado em seu próprio título estendido: O Progresso do Peregrino deste Mundo Àquele que está
por Vir (The Pilgrim’s Progress from This World to That Which Is To Come).
Ainda que esse livro atraia e
encante crianças e jovens o Progresso do Peregrino não foi escrito objetivando
esse público juvenil, mas sempre mirou os adultos, tanto homens quanto
mulheres. No transcorrer da narrativa os leitores se deparam com as grandes
verdades do Evangelho, ainda que a linguagem seja o mais simples possível, como
todas as grandes obras devem ser. Nos diálogos e discussões entre seus mais
variados personagens encontram-se por vezes pequenos sermões sobre os temas
centrais da mensagem cristã, o que torna essa história não apenas fascinante e
encantadora, mas também pedagógica e teológica.
O Autor
A
história do Peregrino certamente esta entrelaçada com a própria história de seu
autor. John Bunyan nasceu em 1628 na pequena aldeia inglesa de Elstow próxima
de Bedford no coração da Inglaterra. Seu pai era pobre e andarilho, sempre de
aldeia em aldeia oferecendo seus serviços de pequenos consertos dos utensílios domésticos,
chamado de “latoeiro” ou mais popularmente “faz-tudo”, atividade exercida
posteriormente pelo filho. Em seu próprio testemunho declara que viveu uma vida
dissoluta e que não tinha qualquer interesse pela religião – mas tudo isso
haveria de mudar.
Quando
eclodiu a grande Guerra Civil inglesa, em 1642, tendo de um lado o rei Carlos I
e do outro o Parlamento, então liderado pelos Puritanos, Bunyan uniu-se ao
exercito do Parlamento (1644-1646). Com as descobertas recentes dos registros
da guarnição, sabe-se que ele serviu em Newport Pagnell a partir de Novembro,
1644 até o mês de Junho, 1647, estando sob o comando de Sir Samuel Luke,
parlamentar observador geral do Parlamento Puritano.
Em
1648, com a idade de vinte anos, casou-se com uma jovem que não apenas
roubou-lhe o coração, mas o conduziu a uma experiência de uma nova vida. Seu
nome não ficou registrado mas se especula fosse “Mary”, pois havia o costume de
nomear a primeira filha com o nome da mãe e este era o nome da filha cega do
Bunyan. Embora Mary fosse monetariamente pobre, seu dote foi de valor
inestimável para o futuro de Bunyan. Ela trouxe uma fé prática para seu
casamento, bem como o modelo de fé e vida cristã de seu pai. Bunyan escreveu: “Ela estava frequentemente falando-me de como
seu pai tinha sido um homem de Deus e de como ele tinha o respeito de seus
vizinhos e dos de casa por viver uma vida cristã santa na palavra e nas ações”.
Quando veio a falecer, em 1658, a Sra Bunyan deixou o marido com duas filhas e
dois filhos: Mary, Elizabeth, John e Thomas.
Mas
na vida de Bunyan nada era simples ou fácil e em decorrência de sua vida
pregressa enfrentou intensas lutas interiores para voltar-se para Deus. O grito
do apóstolo Paulo poderia ser ouvido em sua boca: “miserável homem que sou, quem me livrara do corpo
desta morte”, pois seus pecados passados eram como uma
insuportável carga em suas costas, como ele mais tarde descreveu tão bem no
personagem do "Peregrino".
Depois
de profundos conflitos espirituais ele escapou desta condição e se tornou um
entusiástico e assegurado evangélico. Ele foi recebido na igreja Batista em
Bedford em 1653. Em 1655 ele se tornou um diácono e começou a pregar, com
marcante sucesso desde o início. As pessoas ficavam encantadas com suas
pregações e logo multidões vieram para ouvi-lo, atraídos pelo seu espírito
sério e sua forma pitoresca impressionante.
Mas,
como na vida dele nada era tão fácil, quando Carlos II tornou-se
rei, baixou um decreto proibindo quaisquer atividades religiosas fora da
jurisdição da Igreja da Inglaterra (Anglicana). Todavia, Bunyan e muitos outros
pregadores denominados de dissidentes[2]
continuaram a pregar, até que ele foi preso e enviado para a prisão em Bedford,
na qual ele permanece por longos 12 anos.
Para encontrar um meio de sobreviver na prisão ele faz trabalhos manuais que
vendidos revertiam em renda para si mesmo e para sua família, incluindo sua
filha cega.[3]
Mas
semelhantemente com a vida de José, a prisão e sofrimentos de Bunyan foram
transformados em bênção para milhões incontáveis, porque foi nesse período que
esteve encarcerado em Bedford que escreveu o Progresso do Peregrino. Esta história
destinava-se a ser uma parábola, como muitos dos ensinamentos de nosso Salvador
(na verdade se constituiu em uma alegoria), isto é, colocar na forma de uma
história a vida daqueles que encontrando a salvação através de Cristo, abandonando
a vida de pecados enfrentam todas as adversidades externas e conflitos internos
na sua jornada através deste mundo em direção ao céu. Mesmo uma criança que lê
ou ouve a leitura do livro compreende em parte essa mensagem, mas é na medida
em que ela amadurece e envelhece que vai se vendo cada vez mais nessa história
e apreendendo melhor suas nuanças e peculiaridades.
Em
1672 Bunyan saiu da prisão e retoma suas atividades como ministro Batista e logo
se tornou um dos pregadores mais populares em toda a Inglaterra. A caminho de
Londres Bunyan foi acometido por um forte resfriado, e morreu de febre na casa
de um amigo em Snow Hill no dia 13 de
Agosto de 1688. Seu túmulo está localizado no cemitério
de Bunhill
Fields em Londres. No mesmo terreno está enterrado outro grande escritor,
Daniel DeFoe, cuja história de "Robinson
Crusoé" se classifica ao lado do Progresso do Peregrino no
número de seus leitores; Também Isaac Watts, autor de muitos hinos cantados em
todas as igrejas, e a Sra. Susanna Wesley, a mãe do grande John Wesley. Quatro pessoas que deixaram uma marca profunda sobre o
mundo estão todos juntos neste pequeno cemitério de Londres.
Contexto da Vida de John Bunyan
Os
anos de 1640 e 1660, que demarcam os conflitos mais prolongados e intensos da
guerra civil inglesa, constituem, no essencial, um intervalo distinto e bem
definido entre a literatura produzida nos dias de Isabel e Tiago e as
literaturas produzidas posteriormente no período denominado de restauração. A
marca distintiva dessa nova
literatura é que o escritor está menos preocupado com a
retórica e o perfeccionismo linguístico literário e mais preocupo com as
necessidades urgentes do momento das pessoas e da sociedade. Seu objetivo é
alcançar a mente do público-leitor diretamente e imediatamente, e assim moldar
a política nacional em momentos críticos na vida da nação. E o contraponto de
Bunyan é o escritor Butler; enquanto Bunyan representa o pensamento e a
literatura puritana, Butler satiricamente deprecia toda forma de puritanismo
bem como suas figuras mais proeminentes.
Quanto
à influência de Bunyan sobre a vida e a literatura inglesa é preciso lembrar
que naquele momento seu propósito é unicamente religioso e que iria contra sua
consciência visar alcançar sucesso e/ou a distinção literária. Todavia, o
Progresso do Peregrino tornou-se um dos poucos livros que se constituíram em um
vínculo religioso para toda a Cristandade inglesa.
Como
um criador de personagens fictícios, ele encantou o mundo, tecendo-os em uma
história de interesse
universal e influência
duradoura. Seu livro não só ganhou os corações das crianças em uma fase
de pouca percepção de suas implicações espirituais, mas também tem sido uma bússola
para vida de milhões de pessoas perplexos com os problemas da vida. Este é o
grande mérito do livro, os adultos encontram respostas para suas vidas e as
crianças se divertem com seus ricos personagens. Com sua linguagem alegórica
Bunyan comunicou muito mais verdades fundamentais da mensagem evangélica do que
tantas outras obras mais pretensiosas produzidas ao longo dos séculos.
Mas
como quase sempre acontece, a classe literária, como um todo, na época e mesmo
muito tempo depois, deu ao livro uma recepção depreciativa. Mas enquanto a
classe instruída diferia amplamente no julgamento, o mundo geral dos leitores
nunca vacilou em sua estimativa favorável do livro. Entre 1678, quando apareceu pela primeira vez, e 1778, trinta e três edições da primeira parte
(livro) e cinquenta e nove edições das duas partes juntas foram produzidas, e
então os editores deixaram de contar.[4]
Calcula-se que cem mil cópias
foram vendidas durante a vida de Bunyan (o primeiro bestseller evangélico
na história).
Sua
influência literária também não ficou confinada apenas à Inglaterra. Três anos
depois de sua publicação, ela foi reproduzida pela colônia puritana da América,
recebido com muito carinho e apresso e permanecendo sendo impresso até os dias
atuais. E, com Shakespeare, faz parte do vínculo literário que une os dois
povos de língua inglesa de cada lado do Atlântico. Outras traduções do sonho de
Bunyan continuaram a se multiplicar até o presente. Existem agora versões do
Progresso do Peregrino em não menos de cento e oito línguas e dialetos
diferentes. E não é exagero afirmar que o Peregrino é o segundo livro mais
popular depois da Bíblia.
O
livro passou por onze edições quando o autor ainda vivia e até hoje continua
sendo editado em grande parte do mundo. Nas edições em inglês passou-se a
publicar as duas partes e/ou histórias em um volume, mas originalmente, como aqui no Brasil, as partes foram
publicadas separadamente. A primeira parte em 1678 e a segunda somente em 1684. A primeira edição em que as duas
histórias apareceram juntas foi publicado em Londres em 1728. Bunyan começou a escrever a primeira parte em 1668, enquanto na prisão, e teve o cuidado
de consultar muitas pessoas sobre o seu conteúdo antes de levá-lo para a
imprensa.
Alguns
críticos literários ingleses consideram o Peregrino como sendo o primeiro
romance (novela) da literatura inglesa e muitas vezes comparada com a obra de
Milton “Paraíso Perdido” (Paradise Lost). O Progresso do Peregrino é
excepcionalmente útil, pois embora amplamente acessível e divertido, ele expõe
de forma critica muitos
aspectos da teologia de seus dias e da teologia do século XXI. A teologia de
Martinho Lutero, um dos arquitetos da Reforma Protestante, é particularmente
proeminente em todo o trabalho de Bunyan.
Concluo esse primeiro artigo com
algumas informações peculiares relacionadas à vida de John Bunyan e à sua obra
O Progresso do Peregrino, extraídas da revista Christian History (Edição 11: John
Bunyan & Pilgrim's Progress; 1986).
Você Sabia?
§ Com a cooperação de seu carcereiro, Bunyan ocasionalmente
foi autorizado a deixar sua cela da prisão para ir e
pregar nos “cultos ilegais” que ocorriam em
segredo, após o que voltava voluntariamente para sua cela na prisão.
§ Bunyan fez cadarços enquanto preso para sustentar sua
família, "muitas centenas de dúzias" por conta própria.
§ Em termos de números, Progresso do
Peregrino teria sido o primeiro bestseller se tivesse
sido escrito em nossos dias, pois somente em 1962 foram impressos 100.000
cópias em inglês.
§ Em janeiro de 1672, a Igreja de Bedford convidou John
Bunyan para ser seu pastor enquanto ele ainda estava na prisão.
§ Enquanto alguns Batistas têm orgulhosamente de Bunyan,
outros Batistas ainda hoje o rejeitam por causa de sua tolerância em relação ao
batismo, exposto em seu artigo: Posição em seu trabalho “Diferenças na
Questão Sobre o Batismo na Água, Nenhuma Barreira para a Comunhão”
(Differences in Judgment About Water Baptism, No Bar to Communion).
§ Quando os magistrados locais condenaram Bunyan à prisão, ofereceram
a ele uma alternativa desde que lhes prometesse que não iria pregar mais nos
cultos clandestinos. Ele recusou, declarando que ficaria na
prisão até que o musgo crescesse em suas pálpebras ao invés de não fazer o que
Deus lhe ordenou que fizesse.
§ Nos dias de Bunyan, grandes pregadores
influenciaram a opinião pública tanto
quanto os meios de comunicação de massa hoje,
o que foi uma das razões pelas quais suas atividades sem licença foram tratadas
como uma ameaça.
§ Um vitral fazendo
referência a John Bunyan foi colocado na abadia de Westminster em Londres.
§ Bunyan combinou sua habilidade como um artesão e seu amor
pela música para criar um violino de ferro; Mais tarde, durante
sua prisão, ele entalhou uma flauta da perna de um banquinho
que fazia parte de seus poucos móveis.
§ Quando o governo comunista
chinês imprimiu o Progresso do
Peregrino como um exemplo Cultural, uma impressão inicial de 200.000
cópias foi vendida em três dias!
§ A igreja que Bunyan pastoreou ainda continua no coração
de Bedford, Inglaterra. Agora chamado de "Assembleia Bunyan", é afiliada tanto
aos batistas bem como aos congregacionais.
§ Entre as idades de 16 e 19, Bunyan serviu no exército
Parlamentar.
§ A posição religiosa que Bunyan defendeu e pela qual foi
preso, finalmente prevaleceu com o Ato de Tolerância de 1689,
que reconheceu na Inglaterra os direitos religiosos de dissidentes e não
conformistas, ou seja, os direitos dos pregadores e igrejas fora do
Anglicanismo.
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes,
Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
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Referências Bibliográficas
Brown, John. John Bunyan, His Life, Times and Works.
Ed. Frank Mott Harrison. London: The Banner of Truth Trust, 1964.
BUNYAN, John. O peregrino: com notas de estudo e ilustrações. Trad. Hope Gordon Silva.
São Paulo: Editora Fiel, 2005.
______________. Grace abounding to the chief of sinners. Disponível em
<http://acacia.pair.com/Acacia.John.Bunyan/Sermons.Allegories/Grace.Abounding/Account.Ministry.html>.
Acesso em abril de 2017.
FOXE,
John. O livro dos mártires. Traduzido
por Almiro Pizetta. São Paulo: Mundo Cristão, 2003.
GREAVES, Robert L. John Bunyan. Grand Rapids: William B.
Eerdmans Publishing Company, 1969.
HARRISON, G. B. John Bunyan, A Study in Personality.
London: J.M. Dent and Sons, 1928
MARGUTTI, Vivian Bernardes. Peregrinos em busca: alegoria, utopia e
distopia em Paul Auster, Nathaniel Hawthorne e John Bunyan. Belo Horizonte:
Faculdade de Letras da UFMG, 2010. (Tese Doutorado em Letras: Estudos Literários,
Orientador: Prof. Dr. Luis Alberto Ferreira Brandão
Santos).
SANTOS,
Tiago. A Peregrinação cristã: sofrimento
e vida de John Bunyan. http://voltemosaoevangelho.com/blog/2014/03/a-peregrinacao-crista-sofrimento-e-vida-de-john-bunyan-tiago-santos/
[1] Uma alegoria (do grego αλλος, allos,
"outro", e αγορευειν, agoreuein, "falar em público", pelo
latim allegoria) é uma figura de linguagem, mais especificamente de uso
retórico, que produz a virtualização do significado, ou seja, sua expressão
transmite um ou mais sentidos além do literal.
[2] Os dissidentes, do partido dos
Puritanos, eram vistos nesse momento como potenciais revolucionários à espera
de uma chance para assassinar o rei Charles II como haviam assassinado Charles
I.
[3] Ele se casou duas vezes. Sua primeira
esposa, uma pessoa tão pobre como ele, trouxe-lhe um dote simples, duas
obras puritanas: de Arthur Dent “The Plain Mans Pathway to Heaven” e de Lewis
Bayly “The Practice of Piety”, infelizmente não se sabe o nome dela, mas desse
casamento nasceram quatro filhos, incluindo uma filha
cega Mary. Sua segunda esposa, Elizabeth, era uma mulher de
forte personalidade que sempre se colocou em oposição aos poderosos e lutou
pela liberdade de Bunyan, quando esteve preso por causa de sua pregação. Elizabeth
e John Bunyan tiveram dois filhos.
[4] Há uma terceira parte falsamente atribuída
a Bunyan que apareceu em 1693, e foi reimpressa em 1852.
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