terça-feira, 2 de abril de 2019

Contexto Religioso da Palestina Judaica: Os Fariseus


            Durante seu ministério poucas vezes Jesus se irritou tanto com alguém como com os chamados fariseus. Nas narrativas evangélicas as palavras mais duras e contundentes que Jesus pronunciou foram dirigidas a este grupo religioso judaico. Jesus foi pacientemente amoroso com as mais diversas pessoas, incluindo algumas de caráter duvidoso: prostitutas, publicanos, ladrões (na cruz) - mas é duramente implacável com os fariseus.
Quem eram eles? Como surgiram? Por que esta reação tão radical de Jesus para com eles?
Vamos examinar algumas referências encontradas nos Evangelhos com o objetivo de conhecermos um pouco mais sobre quem eram e o que ensinavam e por que eles batiam de frente com Jesus.
Origem
            Aparentemente há muitas informações sobre os fariseus e sua origem, todavia, as fontes primárias não são tão claras e precisas quanto parece. A fonte mais abundante são os escritos rabínicos (nem todos rabinos eram fariseus) e depois os escritos neotestamentários e por fim o historiador judeu Josefo.
            As informações anteriores ao período neotestamentário dependem das informações contidas nos escritos produzidos pela tradição rabínica. Aqui frequentemente se identificam determinadas pessoas ou grupos pelo termo “perushim”, que posteriormente pode ter sido traduzida para o grego por “pharisaioi” (fariseus) tanto pelos escritores evangélicos quanto por Josefo.[1] A questão aqui é que quando se faz referências a tais personagens é relacionado com acusações de           cismáticos ou hipócritas pelos rabinos. Desta forma como entende John Bowker:
Nada poderia ser mais enganador do que referir-se aos fariseus sem mais verificação como predecessores dos rabinos, pois o fato é que ‘fariseus’ são atacados em fontes rabínicas tão vigorosamente quanto ‘fariseus’ são atacados nos Evangelhos, e frequentemente por semelhantes razões” (1973, p. 1).
Por outro lado eles são colocados como contraponto aos saduceus, o que os fazem mais semelhantes aos fariseus do tempo de Josefo e do escritos evangélicos.
            Nos escritos de Josefo os fariseus surgem no século II a.C., e o historiador é duro as descrição deles como políticos ardilosos que não tem pudor em utilizar-se de meios truculentos em relação aos seus oponentes, podendo chegar até mesmo ao homicídio, por isso fazem parte do complô para matar Jesus. Após o termino da dinastia hasmonéia (Macabeus) eles perderam sua relevância política e histórica, retornando à cena no período evangélico e nos acontecimentos que antecederam a queda de Jerusalém (67-70 d.C.), onde a revolta contra o Império atinge seu clímax.
É desnecessária qualquer dúvida sobre a ênfase política dos fariseus, em detrimento de suas ideias teológicas, pois todos os movimentos internos do judaísmo possuíam esta dupla característica politico-teológico, com exceção dos que optaram por formar outra comunidade como os essênios de Qunran. Lembrando que a revolução dos hasmoneus (Macabeus) iniciou-se por motivos teológicos – purificação do templo – e se tornou um movimento político-bélico.
Tanto Josefo quanto os escritos cristãos retratam os fariseus como pessoas estritamente vinculadas as Leis religiosas, mas como Jesus denunciou diversas vezes, eles se arraigavam nas Tradições produzidas pelos rabinos em detrimento da Torá em si.
O objetivo destas Tradições (comentários rabínicos) era “proteger” a Torá da negligencia ou transgressão por parte do populacho judaico. Esses ensinos tinham ênfase nas normas de pureza (alimentos, bebidas e utensílios) e as leis do dízimo. Mas todo esse zelo foi desassociado da solidariedade e amor ao próximo e se tornou uma espada afiada e mortífera da hipocrisia legalista.
Tudo indica que o farisaísmo foi um movimento forte em Jerusalém, pois para sua formação farisaica Saulo (Paulo) teve ir a Jerusalém para seus estudos aos cuidados de Gamaliel. Isso não significa que eles se restringiam à Capital, uma vez que tinham um projeto mais amplo de influência, não apenas em relação à Palestina Judaica, vemos cenas deles debatendo com Jesus na região da Galiléia, como também em relação aos judeus da Diáspora – Jesus diz que eles rodeavam a terra para fazerem discípulos e os encontramos instigando os da Sinagoga a perseguirem e até matarem Paulo e seus companheiros de viagem missionária.
A ênfase dos fariseus na questão da Lei (Torá e Tradições) facilitavam suas incursões fora de Jerusalém, pois não estavam circunscritos às atividades do Templo, como os sacrifícios diários. Nisso concordavam com os profetas que ensinavam que os sacrifícios perderiam seu valor quando desacompanhados de uma contrição genuína e a disposição de obediência e prática da justiça. Consciente ou não eles estavam mais preparados para destruição do Templo (70 d.C.) do que aqueles que faziam do Templo sua razão de fé (Saduceus e Zelotes). Os judeus ortodoxos são um exemplo de farisaísmo que perdura até os dias atuais, onde em Jerusalém é possível encontrar bairros inteiros que vivem o modelo por eles idealizado e somente se alimento de produtos chamados “kosher”, ou seja, indicação de que foi preparado em conformidade com a lei judaica. Por outro lado, eles mantêm acesa a expectativa de que o Templo será reconstruído e muitos enviam ofertas para um fundo que tem este objetivo. Nos dias de Jesus, eles tinham várias escolas que se distinguiam doutrinariamente, entre as quais as de Hilel e Samai eram as mais notáveis.
A Fé e o Ensino dos Fariseus
O conceito deles em relação às Escrituras (AT) determinava seus ensinos e práticas:
- A "tradição dos anciãos" formava junto com os escritos do Primeiro Testamento sua base normativa e ética (Mt 15.2-3; Mc 7.3).   
- Reconheciam o cânon completo do Primeiro Testamento (Lei, Profetas e Salmos e/ou Escritos) e em seus argumentos e respostas a Jesus há citações de todas estas partes do AT (Lei: Mt 12.5; 15.4; 19.45; Profetas: Mt 9.13; 12.40; 15.7-9; Salmos: Mt 22.44; Escritos: Mt 23.35).     
- Viviam arraigados nas minúcias extraídas dos mandamentos estabelecidos pela Lei de Moisés (Mc 7.3-4; tinham em relação a guarda do Sábado seus argumentos mais radicais (Mc 3.2; Mc 6.1-2; 7.8-13). A primeira parte do Talmud, chamada de Mishna ou "segunda lei", contém essa lei oral que se referem à conduta e modo de vida dos judeus conforme interpretadas pelos rabinos
e na prática farisaica chegou a ser estimado muito acima do texto sagrado. A Lei que fora dada para conduzir o israelita a Deus, tornou-se um fardo insuportável e a consequência direta foi que a prioridade não era mais humilhar-se na presença de Deus, mas orgulhar-se da sua autojustiça. O pomo da discórdia entre Jesus e os fariseus era justamente o fato de que as suas pretensões à piedade, eram na realidade avarentas, sensuais e dissolutas ( Mt 23.25; Jo 13.7). Qualquer semelhança com os evangélicos atuais não é mera coincidência.
- Seus Ensinos
- Criam na ressurreição e no mundo espiritual (Mt 22.34; 22.23; cf Atos 23.6-8)
- Ensinavam que os ímpios receberiam condenação após a morte, e os justos, sua retribuição.
- Eles tinham uma concepção de Providência Divina, atuando lado a lado com o livre arbítrio do homem.
- Também, possuíam uma hierarquia de anjos e demônios bastante desenvolvida. 
- Suas práticas
- Cultivavam uma religiosidade extrema, centrada principalmente nos jejuns e orações (Lc 5.33; Mt 6.2).           
- Tinham grande orgulho de serem judeus e descendentes de Abraão e por esta razão rejeitavam o batismo de arrependimento pregado por João Batista (Mt 3.8-9; Lc 7.30).
- Mantinham-se totalmente isolados daqueles que segundo eles não cumpriam estritamente os preceitos da Lei, principalmente os que eles denominavam publicanos e pecadores (prostitutas, adúlteros, cobradores de impostos, pessoas que tinham profissões indignas [criadores de porcos], e pessoas comuns que não eram zelosos dos mandamentos), tais pessoas eram amaldiçoadas (Mt 9.11; Jo 7.49).       
- Aceitavam o divórcio, segundo Moisés, ainda que mantivessem restrições em relação a outros grupos e escolas rabínicas judaicas (Mt 19.3,7).
            Nem todos os fariseus foram radicais e nem todos perseguiram Jesus e seus discípulos. A dureza de Jesus era para com aqueles que hipocritamente exigiam do outro o que eles próprios não estavam dispostos a fazer (alguma semelhança atual?). Nas narrativas evangélicas encontramos alguns nomes preciosos de fariseus, como por exemplo, Nicodemos que à noite procura Jesus (Jo 3.1-21) e posteriormente foi duramente criticado por defender Jesus e os discípulos (Jo 7.40-52); José de Arimatéia que ajuda a retirar o corpo de Jesus da cruz e o deposita em seu próprio túmulo (Jo 19.39); Gamaliel que faz parte do Sinédrio e intercede por Pedro (At 5.34-40) e finalmente o mais famoso deles, Saulo de Tarso, fariseu dos fariseus, rigoroso e justo no cumprimento da Lei (Fp 3.5-6) e que após sua conversão assumira o nome de Paulo, o grande missionário dos gentios.
Jesus e os Fariseus nas Narrativas Evangélicas
            Como acabamos de destacar nem todos os fariseus tinham uma índole hipócrita e belicosa para com Jesus e seus discípulos. Todavia, dentre os diversos grupos que perfaziam o judaísmo no contexto histórico evangélico, os que mais se opõem à Jesus saíram das fileiras farisaica. As passagens abaixo não estão em ordem cronológica, mas nos oferece um painel dos embates entre eles e o Senhor Jesus:
- Tentaram prendê-lo: Jo 7.32, Jo 11.57
- Tentaram descaracterizar seus ensinos: Mt 19.3, Mt 22.15
- Tentaram deturpar seu ministério: Mt.16.1
- O acusaram de estar endemoniado ou a serviço do diabo: Mt 12.24
- Não o aceitaram como profeta: Lc 7.39, 45-46
- Acusaram-no de não guardar o sábado: Lc 6.2,7
- Conspiraram para matá-lo: Mc 3.6.
Atitude de Jesus:
- contou uma parábola em que chama o fariseu, seu hóspede, de credor desonesto: Lc 7.41-50
 - usa a figura de um fariseu para ilustrar a forma de como não se deve orar Lc 18.10-14
- Em algumas ocasiões quando inquerido pelos fariseus opta por permanecer em silêncio: Mt 22.41-46
- Afirma que eles são cegos tentando conduzir outros cegos: Jo 9.39-41.
            Em um dos seus discursos mais longos registrado na narrativa de Mateus (23), Jesus faz uma serie de afirmações contundentes em relação aos fariseus:
- não praticam o que pregam (v.3)
- desejam serem admirados (vistos) pelas pessoas (v.5)
- agem de forma hipócrita (v.14)
- exploraram os pobres (v.14)
- produzem um falso ensino (v.15)
- são cegos guiando outros cegos (v.16)
- almejam conseguirem vantagens financeiras (v.17)
- são pecadores [tanto ou mais do que aqueles de quem se separavam] (v.23)
- eram gananciosos e cobiçosos (v.25)
- sepulcros caiados [brancos por fora e podres por dentro] (v.27)
- eram semelhantes as serpentes, raça de víboras, condenados ao inferno (v.33)
 - assassinos (v.35)
            De acordo com essa descrição feita por Jesus o farisaísmo nunca saiu de modo e continua vivo no evangelicalismo atual.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Referências Bibliográficas
AUSUBEL, Nathan (Org.). Biblioteca de cultura judaica – enciclopédia, v. 1. Rio de Janeiro: Editora Tradição, 1967. [verbete: Fariseus, p. 259-262].
BOWKER, John. Jesus and the Pharisees. Cambridge: Cambridge University Press, 1973.
BRAKEMEIER, Gottfried, Mundo Contemporâneo do Novo Testamento.  São Leopoldo: Sinodal, 1984.
BRUCE, F. F. História do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2019.
CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de bíblia, teologia e filosofia, v. 2. São Paulo: Hagnos, 2006 [1991].
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JEREMIAS, Joachim. Jerusalém no Tempo de Jesus: pesquisa de história econômico-social no período neotestamentário. 4 ed. São Paulo: Paulus, 1983.
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OTZEN, Benedikt. O Judaísmo na Antiguidade: a História política e as correntes religiosas de Alexandre Magno até o Imperador Adriano. São Paulo: Paulinas, 2003.
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SCARDELAI, Donizete. Da religião bíblica ao judaísmo rabínico: origens da religião de Israel e seus desdobramentos na história do povo judeu. São Paulo: Paulus, 2008.
SCHUBERT, Kurt. Os Partidos Religiosos Hebraicos da época Neotestamentária. 2 ed. São Paulo: Paulinas, 1979.
SKARSAUNE, Oskar. À sombra do templo – as influência do judaísmo no cristianismo primitivo. Tradução Antivan Mendes. São Paulo: Editora Vida, 2004.


[1] É geralmente aceito que os fariseus descendiam dos Hasidim [ou Chassidim] (devotos) que passaram a serem conhecidos como prushim, que significa “separados” que lutaram ao lado dos Macabeus pela liberdade religiosa (166-42 a.C.). Talvez derivassem do grupo de escribas empregados pelos jasídeos (1Macabeus 7.12ss). O nome pharisaioi aparece pela primeira vez no contexto do período dos Macabeus (ca. 150 a.C., Josefo, Antigüedades XIII.x.5-9). O termo trás a ideia de “separados” (cf. Ed 6.21; Ne 10.28s). No caso deles provavelmente era uma alcunha dada por seus adversários pelo fato deles se acharem superiores às demais pessoas, eles preferiam se chamarem de “companheiros”.

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