quinta-feira, 4 de abril de 2019

Evangelho Segundo João: Três Diálogos de Jesus no Feminino



            O papel da mulher no contexto bíblico é um tema sempre envolto em polêmicas onde se sobressaem os extremos. A maioria das discussões acontece por uma ótica moderna e pós-moderna onde os movimentos feministas lutaram por direitos sociais de equidade com os homens e ninguém em sã consciência pode lhes negar esse direito. Todavia, como qualquer outro movimento, incluindo o próprio cristianismo, há os excessos e os extremos que desvirtuam os objetivos mais nobres e justos. Mas se procuramos compreender honestamente o papel da mulher no contexto bíblico é preciso imergir nesse contexto no qual os textos foram produzidos, ou corremos o risco de produzirmos respostas ou conclusões totalmente equivocada e desconectada da verdade bíblica. De Gênesis ao Apocalipse a mulher sempre teve seu papel e sua relevância dentro da ótica divina e se isso foi renegado ou adulterado por interpretações apócrifas dos textos bíblicos não altera um milímetro a verdade de que Deus fez a mulher e o homem exatamente à sua imagem e semelhança e quando Jesus Cristo morreu na cruz foi para salvar mulheres e homens para igualmente inseri-los no Seu reino. No Novo Céu e na Nova Terra haverá total e irrestrita simetria entre a mulher e o homem. Dentro desta perspectiva quero destacar três diálogos de Jesus com três mulheres diferentes e que foram inseridos na narrativa evangélica de João. Ao final do texto espero ter contribuído para uma compreensão mais coerente do papel da mulher no contexto bíblico evangélico.
As Mulheres no Evangelho de João
            É importante nos aproximarmos dos diálogos de Jesus com essas mulheres, despido de quaisquer sentimentos ou preconcepções teológicas ou viés ideológicos, enxergarmos pela mesma ótica de Jesus a importância das mulheres em seu ministério na Palestina e posteriormente na expansão do cristianismo até os confins da terra.
            Dentro da narrativa joanina as mulheres não são um apêndice do grupo de discípulos e/ou apostólico, mas parte integrante. Elas são retratadas de forma ativa dentro do projeto de Jesus e elas são tratadas por ele da mesma forma com que Jesus tratava todos os demais discípulos/apóstolos. Nisso Jesus é totalmente contrastante ao modelo cultural em que estão inseridos. As palavras e ações de Jesus não trazem vestígios de um feminismo modificador da cultura judaizante do papel feminino, mas tudo indica que Ele simplesmente ignora o comportamento social misoginia deles e vocaciona as mulheres inserindo-as como parte integrante de seu ministério público.
            A questão é que lemos as narrativas evangélicas com os olhos do século XXI, mas as atitudes de Jesus em relação às mulheres produziam urticárias nos seus contemporâneos. O papel da mulher na cultura judaica do primeiro século estava totalmente definido como esposa ou aquela que provinha uma vida sexual ativa e licita ao marido, mãe aquela que nutre e cria os filhos. Evidente que havia exceções à regra, mas farta literatura rabínica e talmúdica descreve as mulheres das formas mais depreciativas possíveis e as definem por sua função biológica. O contato com a mulher fora do ambiente do lar era algo que deveria ser totalmente evitado e por esta razão elas não tinha vida pública. Em conexão direta às mulheres era vedado qualquer tipo de iniciação do estudo da Torá destinado exclusivamente aos homens: “É melhor que as palavras da Lei sejam queimadas do que elas sejam dadas a uma mulher” (Talmude de Jerusalém – Rabino Eliezer, apud Hurley, 1981, p. 72). A mulher no sistema jurídico judaico não poderia nem mesmo servir de testemunha, como registra de forma crítica o historiador Flávio Josefo (Antiquities)o testemunho das mulheres não é aceito como válido por causa da tontura e da masculinidade do sexo feminino” (SWIDLER, 1976, p. 115).
            Diante deste quadro tão nebuloso resplandece as atitudes de Jesus em relação às mulheres. Nos três diálogos que vamos analisar veremos que Jesus assume uma postura igualitária com os discípulos masculinos. No primeiro Jesus discute teologia com uma mulher samaritana e lhe revela em primeira mão sua identidade messiânica; no segundo Jesus conversa com Marta sobre a questão da ressurreição e suas implicações; por fim veremos que Jesus escolhe enviar Maria Madalena como portadora das boas novas de sua ressurreição dentre os mortos. 
Jesus Discute Teologia com uma Mulher Samaritana (João 4.4-42)
            Com toda certeza esse é o dialogo mais surpreendente de Jesus em todas as narrativas evangélicas, pois transpassa uma barreira social religiosa que foi erigida por séculos. Ele não apenas conversa com um samaritano, o que já seria escandaloso, mas ao fazê-lo com uma mulher samaritana era algo inimaginável, uma vez que elas eram tidas como perpetuamente impuras ou impuras desde o nascimento.  A própria samaritana é tomada de espanto quando Jesus lhe dirigia a palavra (Jo 4.9). Ao expressar seu espanto ela lembra Jesus de que os judeus não “não se dão com os samaritanos” cujo verbo “sugchraomai” em uma tradução literal “usar junto com”, trazendo a ideia de que não “usam as mesmas vasilhas” no caso especifico aqui o “jarro” que ela estava utilizando para tirar água do poço. Essa pode ser a razão dela ter ficado surpresa que Jesus pedisse água do mesmo vaso (utensílio) que ela está usando;[1] é uma referência ao código que regia o culto judaico que proibia terminantemente que um judeu comesse ou bebesse em qualquer utensílio usado por um samaritano e muito ainda se fosse uma mulher.[2] A reação de surpresa da samaritana é perfeitamente compreensível nesta abordagem de Jesus. Mas muito mais chocados iram ficar os discípulos quando retornam das compras e contempla está cena inconcebível e aqui não é necessariamente pelo fato dela ser samaritana, mas sim por ela ser “uma mulher”, pois um rabino em hipótese alguma deveria se dirigir a uma mulher ainda que fosse em ambiente privativo e muito menos público, se não quisesse perder toda sua credibilidade e respeito.[3]
            O resultado do dialogo e a revelação messiânica de Jesus produz imediata reação de fé na samaritana. Imediatamente ela “deixa” seu jarro de água e retorna à vila para testemunhar desta mensagem evangélica reveladora. Assim como antes Pedro e André e os irmãos Tiago e João que “deixam” suas redes e seguem a Jesus, como também Mateus “deixa” a coletoria e segue após Jesus. Da mesma forma o texto descreve a resposta da mulher samaritana diante da revelação-chamado de Jesus “deixa” tudo e vai cumprir a missão de proclamadora das boas novas.
            Diante da resposta positiva dos moradores da vila samaritana diante do testemunho contundente da mulher que lhes anunciara tudo que Jesus lhe tinha revelado, Jesus volta-se para seus discípulos e lhes fala em tom professoral: “Eu vos enviei a ceifar onde não trabalhastes. Outros trabalharam, e vós entrastes no seu trabalho” (Jo 4.38). O verbo utilizado por Jesus (apesteila – envio) em relação à mulher samaritana é o mesmo utilizado na atividade apostólica quando eles serão enviados a proclamar a mesma mensagem que ela está pregando. O mesmo verbo e a mesma ação!
            O testemunho dos moradores samaritanos que declaram que creram “por causa do testemunho [pregação] da mulher” (episteusan dia ton logon) é semelhante às palavras de Jesus na oração sacerdotal em relação à pregação dos discípulos-apóstolos reunidos no Cenáculo: “mas também por aqueles que pela sua palavra [testemunho-pregação deles] hão de crer em mim” (pisteuontõn dia tou logou - 17.20). O evangelista não faz nenhuma diferença entre o testemunho-pregação da mulher samaritana e o ministério futuro dos discípulos. A samaritana e os discípulos são portadores da mesma mensagem e de igual ministério, sem qualquer distinção entre eles.
            Outro aspecto extraordinariamente maravilhoso é o fato de que Jesus revela pela primeira vez sua messianidade à mulher samaritana, cuja resposta (Jo 4.29) é semelhante a que dará Pedro (Tú és o Cristo...) diante dessa mesma revelação messiânica na última jornada de Jesus em direção à Jerusalém, ou seja, muito posteriormente. Enquanto os judeus ainda perguntavam “Até quando nos manterás em suspenso? Se tú és o Cristo, dize-o abertamente” (10.24), no pequeno vilarejo samaritano, o segredo já tinha sido revelado,(MICHAELS, 1994, p. 85) primeiramente à mulher e depois através dela aos demais moradores.
            Ainda é preciso destacar que o escritor evangélico faz uso de um paralelo literário contrastante entre a figura de Nicodemos e da mulher samaritana. Enquanto Nicodemos é um homem, judeu, fariseu, professor da Torá, e de bom testemunho na comunidade; ela é uma mulher, samaritana, pobre, de vida promiscua. Todavia, Nicodemos não faz nenhum esforço em divulgar seu encontro com Jesus (à noite e em particular), enquanto a mulher samaritana imediatamente proclama tudo quanto Jesus lhe falou à beira do poço (espaço público) em pleno meio dia, à vista de todos.
            Jesus nunca esteve circunscrito aos usos e costumes de seu tempo, mas dirigiu-se a essa mulher da mesma forma com que ele se dirigiu aos demais discípulos. Deu a ela o ensino teológico, ouvindo e respondendo as suas dúvidas e questionamentos, com a mesma seriedade com que tratou, por exemplo, as dúvidas e questionamentos de Nicodemos.
O Dialogo Teológico de Jesus com Marta de Betânia
            O próximo dialogo não é menor ou menos extraordinário, trata-se da conversa entre Jesus e sua amiga Marta, da vila de Betânia tão preciosa para Jesus, irmã de Maria e Lazaro (Jo 11). Ainda que o clímax da narrativa seja a ressurreição de Lazaro, o qual nunca se ouve sua voz e sempre referido em relação às suas irmãs, o evangelista destaca os diálogos travados por Jesus com as duas irmãs.[4] Mas nos concentraremos no dialogo com Marta.
            Os três irmãos são referidos como objeto do amor de Jesus (Jo 11.5), e somente o apóstolo João recebe uma designação semelhante “o discípulo amado”, deixando transparecer que tanto as mulheres quanto os homens todos são discípulos amados de Jesus.
            Ambas as irmãs são imbuídas de fé, pois assim que o irmão adoece elas enviam mensagem solicitando a presença de Jesus (11.3). Essa fé fica explicita nas palavras de Marta ao encontrar-se com Jesus de que se ele estivesse presente o irmão não teria morrido. A afirmação convicta de Marta de que seu irmão haveria de ressuscitar no último dia (11.23), revela que ela tem pleno conhecimento e discernimento do ensino escatológico, rejeitada pelos saduceus (Mc 12.18), mas que fazia parte da fé comum do povo e expresso em diversos documentos do judaísmo, como das Dezoito Bênçãos, orações oficiais do judaísmo: “Tu, ó Senhor, és poderoso para sempre, pois dás vida aos mortos” (PACK, 1983, p. 184).
            Partindo dessa afirmação de Marta é que Jesus vai corrigir sua perspectiva escatológica tradicional judaica, para uma correta crença sobre a ressurreição, portanto, trata-se sem qualquer dúvida de um dialogo altamente doutrinário-teológico (sem forçar tem semelhança ao encontro de Priscila e Áquila [o nome dela vem na frente indicando quem tem a preeminência do ensino] e Apolo, onde o casal corrige e ajusta os princípios doutrinários do segundo).
            Nesse dialogo Jesus profere a uma mulher um de seus famosos “eu sou” (a ressurreição e a vida) o qual Marta responde imediatamente com uma declaração de fé nele “creio que tú és o Cristo, o Filho de Deus”, que o evangelista coloca como razão de ter escrito este volume evangélico (20.30,31). O tempo verbal é o perfeito, de maneira que a confissão de fé dela “tenho crido” indica que ocorrerá em um tempo anterior desse dialogo com Jesus e que antecede a ressurreição de seu irmão morto a três dias e nas palavras de Pack (1983, p. 184) sua confissão de fé “igualou-se à de João Batista (1.34), à de André (1.41), à de Natanael (1.49), foi mais firme do que a da mulher samaritana (4.29), e quando colocada em paralelo com a confissão de Pedro em Mateus 16.16 é possível ver a similaridade entre elas”.
            Um aspecto literário significativo é de que as narrativas que compõem esse capítulo 11 é o texto mais longo, do quarto Evangelho, fora as narrativas da Paixão. O tema é fundamental visto que em poucos dias o próprio Jesus haverá de morrer e ressuscitar vencendo a morte, como está ensinando à Marta. O ensino não é direcionado ao grupo de discípulos ou a um dos discípulos homens, mas exclusivamente a uma mulher (discípula), que posteriormente compartilhará com os demais, incluindo João o evangelista, visto que ele não faz parte do diálogo original. Certamente lhe foi compartilhada posteriormente pela própria Marta, razão pela qual o escritor ao compor sua narrativa inclui em detalhes essa incomparável aula doutrinária ministrada pelo Mestre a uma mulher. Ensino fundamental de todo o conjunto de verdades que compõe a fé cristã em todos os tempos. Tão relevante que o apostolo Paulo declara que se Jesus Cristo não ressuscitou, a fé cristã se torna inútil. Suas palavras mais profundas e teológicas são dirigidas à Marta e não a outros dentre os discípulos, não por ser ela uma mulher, mas apesar dela ser uma mulher. Mas Jesus tinha toda razão para falar com ela sobre esse tema escatológico, visto que a conhecia e sabia da sua capacidade de discernimento e compreensão das verdades eternas, que transparece de forma nítida e contundente na sua pronta resposta <tu és o Cristo, o Filho de Deus>.
            É profundamente significativo que o último dos apóstolos e provavelmente o último a compor uma narrativa evangélica, tenha optado conscientemente, em colocar Marta (mulher) como modelo de discernimento da fé cristã, em vez das palavras de Pedro (homem). A mulher que dentro da moldura judaica não servia como testemunha, é aqui chamada por João como uma testemunha e modelo exemplar do que significa e como se deve confessar Jesus Cristo. O evangelista não tem qualquer dúvida da capacidade das mulheres proclamarem (pregarem) e testemunharem da fé em Cristo, sem qualquer distinção em relação à proclamação (pregação) e testemunho dos homens. O apóstolo João foi testemunha ocular de quantas mulheres proclamaram sua fé em Jesus e por isso foram lançadas no Coliseu romano para serem estraçalhadas e mortas pelas feras e pelos gladiadores, semelhantemente aos homens que mantiveram sua fé no Senhor Jesus. A mesma fé, o mesmo testemunho, o mesmo martírio!
O Dialogo do Jesus Ressurreto e Maria Madalena
            Esse terceiro diálogo preservado na narrativa joanina conclui de forma magistral sua proposta de enfatizar o papel proeminente da mulher no ministério de Jesus (20.1-18). Se Marta anteviu pela fé a ressurreição de Jesus é Maria quem vai se tornar a primeira a contemplá-lo em sua ressurreição.
            São as primeiras horas da manhã de domingo e Maria Madalena se dirige ao túmulo onde o amado Mestre havia sido sepultado na tarde de sexta-feira, antes de se iniciar o sábado judaico.  Seu objetivo, juntamente com as demais companheiras, é embalsamar adequadamente o corpo de Jesus, visto que foi tirado às pressas da cruz, antes do por do sol. Mas para total surpresa delas, a pedra esta removida e o túmulo está vazio. Atônita ela corre para avisar a Pedro e ao Discípulo Amado, que correndo vão constatar as palavras dela, e depois de verem o túmulo vazio dão credito às palavras de Madalena (10.8)[5].
            Enquanto Pedro e João retornam para casa, Maria Madalena permanece à entrada do sepulcro. E o dialogo vai transcorrer nesse momento (20.15-18). Ao olhar novamente para dentro do túmulo ela contempla dois anjos onde antes estivera o corpo de Jesus. Então uma voz atrás dela pergunta: “Mulher, por que choras? A quem procuras?” Ela confunde a voz pensando ser o cuidador dos túmulos, mas novamente Jesus lhe chama pelo nome: Maria! Ela responde em hebraico: Rabôni! (Mestre). Então uma vez mais Jesus lhe fala: “Não me detenhas, pois ainda não voltei ao Pai”. E Jesus vai lhe dar o Grande Comissionamento: “Mas vai ter com meus irmãos, e dize-lhes: Eu volto para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus”. Imediatamente [como a mulher samaritana] ela vai ao encontro dos discípulos e anuncia-lhes: Vi o Senhor! E compartilha (testemunha) o que Jesus lhe havia falado (20.18).
            Que cena maravilhosa! Que dialogo fantástico! A primeira pessoa a conversar com Jesus ressurreto, não foi Pedro, João ou Tiago (o trio que tantas coisas testemunharam), mas uma mulher – Maria Madalena. Ela foi comissionada pelo próprio Cristo para levar as boas novas da sua ressurreição. E o testemunho dela é crido pelos discípulos, pois quando Jesus aparece no meio deles (20.20) não se registra nenhum espanto por parte deles.
            Como sabemos e afirmamos acima a ressurreição é a pedra angular da pregação e de todo o ensino cristão (1 Co 15.12-19; 1 Ts 4.14; Rm 10.9). O que torna ainda mais significativo o fato de que Jesus escolheu deliberadamente depositar em uma mulher a responsabilidade de anunciá-la pela primeira vez. É importante destacar o fato de que Pedro e João vão ao túmulo vazio, mas Jesus não se revela a nem um deles, mas reserva este privilégio e comissionamento apostólico à Maria Madalena. A mulher que não tinha nenhum valor no contexto judaico é revestida por Jesus do mais nobre privilegiado de ser a primeira testemunha ocular de sua ressurreição e de ser a primeira a ser enviada para proclamar essa verdade a todos os demais. O primeiro “ide” foi dado a uma mulher! A primeira a proclamar a boa nova da ressurreição de Jesus foi Maria Madalena. Paulo coloca como marca distintiva do seu e de qualquer outro apostolado o ter visto Jesus ressurreto e o ter sido enviado pessoalmente por Ele para anunciar/proclamar (1 Co 9.1-2, 15.8-11 e Gl 1.11-16) – Maria Madalena viu e foi enviada. Seu anuncio segue o padrão apostólico “Eu vi o Senhor”. Como aconteceu durante todo o seu ministério, aqui na conclusão de sua obra, Jesus uma vez mais recoloca a mulher em seu devido lugar de igualdade e equidade, de maneira que no Seu Reino inexiste qualquer diferença ou hierarquia entre um discípulo feminino e um discípulo masculino.
Para o escritor do Quarto Evangelho, que viveu muito tempo depois do martírio de Pedro e Paulo, não houve diferença alguma entre o comissionamento de Maria Madalena e os demais apóstolos – ela, exatamente da mesma forma que eles, se constitui em uma testemunha ocular do Senhor ressurreto e recebe diretamente dele a comissão de ir e pregar as boas novas de sua ressurreição.
Pare e Pense
            As narrativas joaninas revelam que Jesus em nenhum momento tratou as mulheres de forma diferente ou distinta em relação aos demais discípulos. Jesus nunca as restringiu a um papel especifico e limitante de seus potenciais como portadoras da mensagem evangélica. O Senhor aplica a elas as mesmas exigências que requereu de todos os discípulos. Jesus rejeita abertamente as normas culturais desenvolvidas pelo judaísmo e as rompe frequentemente resgatando o valor intrínseco da mulher inserindo-as integralmente no Projeto da Nova Criação que Ele estará realizando através de sua Igreja.
            Com exceção de Maria, a mãe de Jesus e Maria, a esposa de Cleofas, todas as demais mulheres mencionadas na narrativa joanina são tratadas por Jesus com base em suas próprias personalidades e plenamente capazes de tomarem suas próprias decisões e assumirem seus próprios papéis na economia do Reino.  O evangelista ao contrário faz uma inversão de padrão ao colocar Marta e Maria antes do nome de Lazaro (como vimos). Em vez de ver as mulheres principalmente em termos de sexo ou estado civil, Jesus as vê em termos de seu potencial humano em seu relacionamento com Deus.
            Torna-se bastante relevante o fato de em contraste direto com o sistema rabínico, em que se proibia ou se considerava inadequado oferecer instrução à mulher, Jesus as ensina pessoalmente e discute com elas os temas mais profundos da teologia cristã, como vimos nos casos ilustrados acima. E mais ainda, o testemunho (ensino) delas é tão valido quanto de qualquer outro discípulo ou apóstolo. Foi à Maria Madalena e não a Pedro ou João, que Jesus confiou e designou para proclamar, anunciar, comunicar o fato de sua ressurreição aos demais discípulos.
            Por fim, é facilmente perceptível, menos para aqueles que não querem ver, que as mulheres na narrativa joanina – e insisto no fato de que esse foi o último Evangelho a ser composto (década 80), portanto, a Igreja já está consolidada e atuante em todo o Império Romano, e as epístolas de Paulo e Pedro e demais já estão circulando por todas essas comunidades – e João as descrevem com todas as letras, pontos e vírgulas, como perfeitamente habilitadas não apenas para ouvirem e compreenderam os ensinos e mensagem de Jesus, mas igualmente para proclamar, comunicar e ensinar a outras pessoas. Em toda a narrativa vemos Jesus afirmando sem qualquer dúvida o valor e a relevância da mulher dentro da economia do Reino.
Em resumo, observamos que as mulheres do Quarto Evangelho são apresentadas de maneira positiva e em íntima relação com Jesus. Em muitos casos os homens encontram dificuldade em compreenderem e crerem, o que torna as narrativas femininas joaninas ainda mais extraordinárias. As mulheres são retratadas como compreendendo o ensinamento de Jesus e respondendo entusiasticamente ao seu “ide”, rompendo completamente o estereótipo judaizante de seu tempo e que continua sendo equivocadamente mantido por uma parcela do cristianismo ainda hoje no século XXI.  O que nos leva a duas conclusões excludentes: ou essas pessoas são mais sábias do que Jesus, ou, elas estão equivocadas em suas interpretações.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
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Referências Bibliográficas
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[1] Essa é a opinião de Agostinha em seu comentário de João 4.11: “Você vê que os samaritanos são estrangeiros; na verdade os judeus não usam nem os mesmos utensílios. E quando a mulher trouxe um vaso para tirar água, ela se admirou que um judeu quisesse beber dele – algo que os judeus não costumavam fazer” (Artigo 15 sobre S. João, apud, BRUCE, 1987, p. 98 – nota 183).
[2] Comprar e vender dos samaritanos era permitido, porque isso era considerado uma questão comercial, entretanto, pedir emprestado e emprestar, ou solicitar qualquer favor era terminantemente proibido, pois era considerado uma relação de amizade, que eles entendiam ser inadmissível com aqueles que eles consideravam inimigos de Deus. 
[3] A atitude de Aboth Rabbe Nathan é típica do pensamento rabínico quando ele diz: “Não se fala com uma mulher na rua, nem mesmo com sua própria esposa, e certamente não com outra mulher, por causa de fofoca” (HAENCHEN, 1984, v.1, p. 224).
[4] De acordo com Witherington “a ordem dos nomes (duas mulheres, depois Lázaro) é incomum. Talvez o evangelista esteja insinuando que essas mulheres estavam mais próximas de Jesus do que Lázaro, ou eram mais proeminentes ou importantes do que Lázaro aos olhos do evangelista” (1984, p. 108).
[5] Aqui há uma discussão se João creu na ressurreição de Jesus ou creu (deu crédito) as palavras de Madalena. Dentro da moldura judaica já mencionada de que o testemunho de uma mulher não tinha validade é coerente pensar que João se refere à credibilidade do testemunho inicial dela e não a fé no fato da ressurreição de Jesus, visto que ele faz uma explicação no verso nove “Ainda não haviam (plural, ele se inclui aqui) compreendido (crido) que, conforme a Escritura, [os dois discípulos de Emaús] era necessário que ele (Jesus) ressurgisse dentre os mortos”.

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