segunda-feira, 25 de março de 2019

Os Personagens “Invisíveis” nas Narrativas da Paixão e Sua Função



            Nada tem a maior capacidade de perscrutar a nossa intimidade do que o período de crise. O apóstolo Pedro entendia bem disso e compartilha em sua carta aos cristãos judeus espalhados em várias regiões do Império Romano, de que a fé genuína somente se manifesta depois que é provada pelo fogo, onde as impurezas da hipocrisia, dos interesses hedonistas, da arrogância e tantas outras são queimadas e a fé é mantida em sua essência.
            Os discípulos haviam acompanhado Jesus por quase três anos e até esse momento, a última semana, tudo transcorria relativamente bem; quantos milagres eles contemplaram; quantos ensinos preciosos eles ouviram e muitas vezes Jesus lhes explicava em particular o significado desses ensinos; e quando Jesus lhes enviou de dois em dois para anunciarem sua mensagem evangélica por toda a Palestina Judaica, seus relatórios ao retornarem foram espetaculares – curas, exorcismo de espíritos demoníacos; e agora quando Jesus entra na cidade de Jerusalém, montado em um jumentinho, ovacionado pela multidão que cantam “Hosana, Hosana, bendito aquele que vem em nome do Senhor”, eles pensaram – é a nossa hora – valeu a pena todo nosso sacrifício, termos deixado tudo para segui-lo; agora as coisas vão mudar e nós vamos estar por cima da carne seca. Mal sabiam eles que ao final daquela semana, todos eles seriam reprovados! Nenhum deles havia realmente entendido o significa e as implicações de serem discípulos de Jesus. Na verdade desde então poucos são aqueles que realmente entenderam e entendem o que significa crer em Jesus e segui-lo.
            Os relatos evangélicos da última semana de Jesus ou como comumente é chamada, da semana da paixão de Cristo, foram escritos e preservados para que nós possamos de fato avaliar nossa fé cristã e nosso compromisso com Cristo. Para sondarmos o que realmente preenche nosso coração e molda nosso caráter: firmeza, confiança, generosidade, orgulho, fraqueza, ganância, medo, fuga....
No grande e último teste os discípulos foram vergonhosamente reprovados; pois a verdadeira prova do discipulado é a cruz: "Se alguém [realmente] quiser tornar-se meu seguidor, precisa primeiramente negar a si mesmo, depois deve ter disposição para tomar a cruz e somente então estará apto para me seguir” (Marcos 8.34).
Assim como os discípulos nós formulamos um “evangelho” que reflete a nossa própria imagem e semelhança; um “evangelho” ao nosso gosto; um “evangelho” legalista que se satisfaz com uma rotina religiosa mediana ou porque não dizer medíocre; um “evangelho” hedonista elaborado por nós para nossa autossatisfação; um “evangelho” com o máximo de vantagens e o mínimo de desconfortos; um “evangelho” antropocêntrico que minimiza a glória de Deus. Esse tipo de “evangelho” não é capaz de produzir uma genuína fé e muito menos um genuíno discipulado e no final, como aconteceu com os discípulos seremos reprovados por Jesus.
Fomos ensinados a lermos essas narrativas da paixão de Cristo pelo prisma daquilo que Jesus fez por nós; mas além desse aspecto é preciso lermos essas passagens bíblicas pelo prisma do discipulado, daquilo que é exigido dos que pretendem seguir Jesus. Portanto, ao lermos essas narrativas da paixão temos a oportunidade de descobrir o significado da cruz em nossas próprias vidas e desta forma dar qualidade ao nosso discipulado.
Os evangelistas vão pontilhando em cada texto os aspectos fundamentais da genuína fé evangélica e o preço alto que se exige de um discipulado autentico. Os personagens que preenchem as cenas são representativos de como as pessoas reagem diante da cruz e será pela ótica delas que haveremos de ver o desenrolar desta semana crucial de Jesus e dos discípulos – as lutas e os desafios – que compõe o preço da fé e do discipulado. Qual a reação delas? Compreenderam? Creram? Fracassaram? Fugiram?
Um aspecto muito importante é que os evangelistas não centralizam suas narrativas nos personagens centrais, mas polvilham seus registros de personagens “invisíveis”; muitas delas nem mesmo ficamos sabendo seus nomes; algumas são citadas por mais de um evangelista e outras apenas por um deles; alguns ocupam vários parágrafos e outros apenas em um único verso.
Outro aspecto peculiar dessas narrativas da páscoa cristã é que os evangelistas não amenizam ou suavizam o papel dos discípulos; a narrativa é nua e crua. Elas expõem toda a fragilidade e insuficiência dos discípulos; a dificuldade em entenderem as implicações da fé e do discipulado; eles fogem da cruz; hesitam e temem diante do sofrimento e da dor; é aqui em Jerusalém que eles são testados. Durante a última ceia Jesus vai pontilhando o que esta por vir sobre eles e qual vai ser a reação deles diante de tudo que esta por acontecer algumas horas mais tarde. Um deles vai traí-lo e outro vai negá-lo seguidamente; no Getsêmani enquanto Jesus agoniza em oração, os discípulos dormem; e quando Judas vem com uma turba e soldados do templo para prendê-lo, os discípulos revelam todo seu despreparo e acovardados fogem. E quando Jesus é levado para o Calvário e levantado na cruz, somente as mulheres e João estão ali presentes, os demais permanecem distantes.
Em contraste com as atitudes e comportamentos dos discípulos temos as figuras quase invisíveis e que não fazem parte do circulo intimo de Jesus, mas que se constituem em modelos genuínos da fé e do discipulado. Os excluídos e rejeitados resplandecem em fé, enquanto os discípulos escondem sua luz; estes que não carregam as insígnias de discípulos ou apóstolos, e que muitas vezes nem mesmo são identificados pelos seus nomes, são justamente aqueles que recebem a mensagem, que expõe suas vidas, que se constituem nos verdadeiros crentes. Uma vergonha ainda hoje para todos aqueles que se escondem atrás de títulos e nomenclaturas eclesiásticas, mas que não tem coragem para tomar a cruz; para vivenciar as verdades do Evangelho em meio a uma Sociedade hostil e belicosa. Não os discípulos, mas os “invisíveis” se constituem em modelos para uma vida cristã aprovada por Jesus.
Na medida em que formos contemplando as narrativas da paixão haveremos de nos confrontarmos com manifestações extraordinárias de amor e fé: a mulher no jantar em Betânia que derrama todo o perfume sobre Jesus, a viúva pobre que oferta tudo que tem; as mulheres que permanecem aos pés da cruz, o centurião romano que revela a divindade do crucificado, o criminoso que professa sua fé horas antes de morrer, José de Arimatéia e Nicodemos que corajosamente retiram o corpo e sepultam Jesus. Estes e outros vão expondo e contrastando, para vergonha dos discípulos e nossa, a fé e a vida cristã materialista e hedonista que não suporta e foge covardemente diante das consequências da cruz.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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