Nada tem a maior capacidade de
perscrutar a nossa intimidade do que o período de crise. O apóstolo Pedro entendia
bem disso e compartilha em sua carta aos cristãos judeus espalhados em várias
regiões do Império Romano, de que a fé genuína somente se manifesta depois que
é provada pelo fogo, onde as impurezas da hipocrisia, dos interesses
hedonistas, da arrogância e tantas outras são queimadas e a fé é mantida em sua
essência.
Os discípulos haviam acompanhado
Jesus por quase três anos e até esse momento, a última semana, tudo transcorria
relativamente bem; quantos milagres eles contemplaram; quantos ensinos
preciosos eles ouviram e muitas vezes Jesus lhes explicava em particular o significado
desses ensinos; e quando Jesus lhes enviou de dois em dois para anunciarem sua
mensagem evangélica por toda a Palestina Judaica, seus relatórios ao retornarem
foram espetaculares – curas, exorcismo de espíritos demoníacos; e agora quando
Jesus entra na cidade de Jerusalém, montado em um jumentinho, ovacionado pela
multidão que cantam “Hosana, Hosana, bendito aquele que vem em nome do Senhor”,
eles pensaram – é a nossa hora – valeu a pena todo nosso sacrifício, termos
deixado tudo para segui-lo; agora as coisas vão mudar e nós vamos estar por
cima da carne seca. Mal sabiam eles que ao final daquela semana, todos eles
seriam reprovados! Nenhum deles havia realmente entendido o significa e as
implicações de serem discípulos de Jesus. Na verdade desde então poucos são
aqueles que realmente entenderam e entendem o que significa crer em Jesus e
segui-lo.
Os relatos evangélicos da última
semana de Jesus ou como comumente é chamada, da semana da paixão de Cristo,
foram escritos e preservados para que nós possamos de fato avaliar nossa fé
cristã e nosso compromisso com Cristo. Para sondarmos o que realmente preenche
nosso coração e molda nosso caráter: firmeza, confiança, generosidade, orgulho,
fraqueza, ganância, medo, fuga....
No grande e último teste os discípulos foram
vergonhosamente reprovados; pois a verdadeira prova do discipulado é a cruz: "Se
alguém [realmente] quiser tornar-se meu seguidor, precisa primeiramente negar a
si mesmo, depois deve ter disposição para tomar a cruz e somente então estará
apto para me seguir” (Marcos 8.34).
Assim como os discípulos nós formulamos um “evangelho”
que reflete a nossa própria imagem e semelhança; um “evangelho” ao nosso gosto;
um “evangelho” legalista que se satisfaz com uma rotina religiosa mediana ou
porque não dizer medíocre; um “evangelho” hedonista elaborado por nós para
nossa autossatisfação; um “evangelho” com o máximo de vantagens e o mínimo de
desconfortos; um “evangelho” antropocêntrico que minimiza a glória de Deus.
Esse tipo de “evangelho” não é capaz de produzir uma genuína fé e muito menos
um genuíno discipulado e no final, como aconteceu com os discípulos seremos
reprovados por Jesus.
Fomos ensinados a lermos essas narrativas da paixão de
Cristo pelo prisma daquilo que Jesus fez por nós; mas além desse aspecto é
preciso lermos essas passagens bíblicas pelo prisma do discipulado, daquilo que
é exigido dos que pretendem seguir Jesus. Portanto, ao lermos essas narrativas
da paixão temos a oportunidade de descobrir o significado da cruz em nossas
próprias vidas e desta forma dar qualidade ao nosso discipulado.
Os evangelistas vão pontilhando em cada texto os aspectos
fundamentais da genuína fé evangélica e o preço alto que se exige de um discipulado
autentico. Os personagens que preenchem as cenas são representativos de como as
pessoas reagem diante da cruz e será pela ótica delas que haveremos de ver o desenrolar
desta semana crucial de Jesus e dos discípulos – as lutas e os desafios – que compõe
o preço da fé e do discipulado. Qual a reação delas? Compreenderam? Creram?
Fracassaram? Fugiram?
Um aspecto muito importante é que os evangelistas não
centralizam suas narrativas nos personagens centrais, mas polvilham seus
registros de personagens “invisíveis”; muitas delas nem mesmo ficamos sabendo
seus nomes; algumas são citadas por mais de um evangelista e outras apenas por
um deles; alguns ocupam vários parágrafos e outros apenas em um único verso.
Outro aspecto peculiar dessas narrativas da páscoa cristã
é que os evangelistas não amenizam ou suavizam o papel dos discípulos; a
narrativa é nua e crua. Elas expõem toda a fragilidade e insuficiência dos discípulos;
a dificuldade em entenderem as implicações da fé e do discipulado; eles fogem
da cruz; hesitam e temem diante do sofrimento e da dor; é aqui em Jerusalém que
eles são testados. Durante a última ceia Jesus vai pontilhando o que esta por
vir sobre eles e qual vai ser a reação deles diante de tudo que esta por
acontecer algumas horas mais tarde. Um deles vai traí-lo e outro vai negá-lo seguidamente;
no Getsêmani enquanto Jesus agoniza em oração, os discípulos dormem; e quando
Judas vem com uma turba e soldados do templo para prendê-lo, os discípulos revelam
todo seu despreparo e acovardados fogem. E quando Jesus é levado para o
Calvário e levantado na cruz, somente as mulheres e João estão ali presentes,
os demais permanecem distantes.
Em contraste com as atitudes e comportamentos dos discípulos
temos as figuras quase invisíveis e que não fazem parte do circulo intimo de
Jesus, mas que se constituem em modelos genuínos da fé e do discipulado. Os
excluídos e rejeitados resplandecem em fé, enquanto os discípulos escondem sua
luz; estes que não carregam as insígnias de discípulos ou apóstolos, e que muitas
vezes nem mesmo são identificados pelos seus nomes, são justamente aqueles que
recebem a mensagem, que expõe suas vidas, que se constituem nos verdadeiros
crentes. Uma vergonha ainda hoje para todos aqueles que se escondem atrás de
títulos e nomenclaturas eclesiásticas, mas que não tem coragem para tomar a
cruz; para vivenciar as verdades do Evangelho em meio a uma Sociedade hostil e
belicosa. Não os discípulos, mas os “invisíveis” se constituem em modelos para
uma vida cristã aprovada por Jesus.
Na medida em que formos contemplando as narrativas da
paixão haveremos de nos confrontarmos com manifestações extraordinárias de amor
e fé: a mulher no jantar em Betânia que derrama todo o perfume sobre Jesus, a
viúva pobre que oferta tudo que tem; as mulheres que permanecem aos pés da
cruz, o centurião romano que revela a divindade do crucificado, o criminoso que
professa sua fé horas antes de morrer, José de Arimatéia e Nicodemos que
corajosamente retiram o corpo e sepultam Jesus. Estes e outros vão expondo e
contrastando, para vergonha dos discípulos e nossa, a fé e a vida cristã materialista
e hedonista que não suporta e foge covardemente diante das consequências da
cruz.
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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