terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Páscoa: Jesus no Cenáculo - Prelúdio (João 13.1)


            Uma característica muito peculiar da narrativa joanina é que praticamente metade dela descreve a última semana de Jesus. É certo que os demais evangelistas também reservam uma maior parte de seus relatos para descreverem os últimos movimentos de Jesus, mas certamente João é o que disponibiliza um espaço maior.
            Enquanto os três sinóticos compartilham praticamente as mesmas informações, variando aqui e ali, de acordo com suas ênfases, é no texto joanino que haveremos de encontrar diversas peças fundamentais para completarmos o mosaico do que convencionalmente chamamos de semana da paixão ou semana santa.
            Nos capítulos 13-17 João abre uma preciosa janela [aqui a janela não é indiscreta] de onde podemos acompanhar todos os detalhes do que aconteceu naquela última noite de Jesus com seus discípulos no espaço chamado de cenáculo,[1] um amplo salão sobreposto que permitiu a Jesus e seus discípulos compartilharem de suas últimas horas de calmaria, pois lá fora uma terrível e devastadora tempestade esta se formando rapidamente e sobrevirá a eles com toda violência inclemente que somente seres humanos escravizados pelo pecado podem manifestar.
            De forma sucinta podemos descreve toda narrativa do quarto evangelho conforme as divisões acima indicadas no quadro:
          O Prólogo apresenta uma introdução teológica possibilitando aos leitores uma clara compreensão de as palavras e ações de Jesus são as palavras e ações de Deus manifestadas Verbo encarnado. O Livro dos Sinais registra sete milagres que revelam a glória do Pai no Filho. Os milagres com seus discursos explicativos têm como objetivo manifestar nos leitores apenas duas respostas: a ou a incredulidade e o endurecimento
no pecado. Quando o ministério público de Jesus encerra-se, a incredulidade (12.37), transvestida de ódio e ganancia foram a principal resposta do povo. Mas ali no cenáculo Jesus tem a oportunidade de passar suas instruções de despedida e preparar seus discípulos para os eventos subsequentes da Sua própria morte, bem como das perseguições que sobrevirão a todos eles. A culminação da incredulidade é evidente na seção da paixão, e a fé dos discípulos é evidente nos relatos da ressurreição. O Epílogo completa o Evangelho mostrando os planos do Senhor para Seus discípulos.

Síntese do Capítulo Treze
Esta seção, que começa aqui e se estende até o capítulo 20, registra os eventos da última semana, culminando com os fatos relacionados à ressurreição. Estes capítulos de João 13—17 é um dos trechos mais apaixonantes em toda literatura do Segundo Testamento é a manifestação abundante do amor imensurável do Deus eterno em favor dos pecadores.
Uma ruptura dramática no desenvolvimento deste Evangelho aparece aqui. Os capítulos anteriores relacionavam-se com a revelação de Jesus para o povo judeu que o rejeitou, mas a mensagem por Ele proclamada tinha um alcance universal. A partir deste capítulo, a narrativa desenvolve a revelação especial de Jesus aos discípulos que o receberam, apesar da traição de Judas, a negação de Pedro, a incredulidade de Tomé e o abandono por quase todos após o aprisionamento e a morte na cruz (somente João estava aos pés da cruz, com algumas poucas mulheres).
A janela deste capítulo nos permite contemplar o momento em que Jesus lava os pés dos apóstolos (Jo 13.1-11), o compartilhar dele dos momentos terríveis que hão de vir sobre ele (Jo 13.12-20), o momento em que identifica do traidor que está camuflado à mesa (Jo 13.21-30), o novo mandamento (Jo 13.31-35) e a profecia da negação de Pedro (Jo 13.36-38). Mas diferentemente dos evangelistas sinóticos João não registra o momento em que Jesus institui a Ceia, como também não havia registrado o momento do batismo de Jesus. O contexto de João 13 ressoa na narrativa lucana (22.24), onde os discípulos ainda discutiam quem era o maior. Desde o segundo século, se mantém uma grande disputa sobre a aparente discrepância entre João e os sinóticos (Mt, Mc e Lc) em suas narrativas sobre a páscoa. Uma das melhores discussões é a oferecida por William Hendriksen, onde ele aborda praticamente todos os ângulos desta questão e conclui de que há similaridades suficientes para a compreensão de que se trata de um mesmo momento pascoal de Jesus e seus discípulos (2004, p. 595-603).[2]
João 13 - O Discurso no Cenáculo -  Prelúdio (v.1)
ORA, antes da festa da páscoa, sabendo Jesus que já era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai, como havia amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até o fim. (Corrigida Fiel – Português)
Um pouco antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que havia chegado o tempo em que deixaria este mundo e iria para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim. (Nova Versão internacional – Português)
Antes da festa da páscoa, sabendo Jesus que era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai, e havendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim. (Revisada – Português)
Antes da celebração da festa da Páscoa, Jesus já sabia que tinha chegado sua hora para deixar este mundo e voltar para seu Pai. Ele tinha amado os seus que estavam no mundo; ele os amou até o fim. (NT Versão Palavra Viva – Português)
Ao entardecer do Dia da Páscoa, Jesus sabia que aquela seria a última noite dEle sobre a terra, antes de voltar para o Seu Pai. Durante a ceia, o Diabo já havia inspirado Judas Iscariotes, filho de Simão, que aquela era a noite para ele executar o seu plano de trair Jesus. Jesus sabia que receberia do Pai todas as coisas, que tinha vindo de Deus e voltaria para Deus. E como Ele amava aos seus discípulos! (Parafrase – Biblia Viva)

Texto Grego – Textus Receptus
13.1 προ δε της εορτης του πασχα ειδως ο ιησους οτι εληλυθεν αυτου η ωρα ινα μεταβη εκ του κοσμου τουτου προς τον πατερα αγαπησας τους ιδιους τους εν τω κοσμω εις τελος ηγαπησεν αυτους.

Antes de nos permitir ouvir Jesus o evangelista cuidadosamente nos oferece um prelúdio esclarecedor para os acontecimentos que estão por vir acontecer neste momento particular de Jesus com seus discípulos às vésperas dos momentos mais críticos e violentos do ministério terreno de Jesus.
De imediato ao menos três observações devem ser feitas aqui: a primeira é que há uma mudança temporal significativa na construção da narrativa, pois se os doze primeiros capítulos abrangem um período de quase três anos do ministério terreno de Jesus, os próximos seis capítulos abrangem apenas uma noite; a segunda observação é que há uma mudança dramática no vocabulário de João no capítulo 13, que destaca a importância do "amor" nos capítulos 13-17. Uma estatística do vocabulário de João ressalta o fato de que o amor é um termo fundamental da narrativa a partir deste momento: o substantivo grego agapē (amor) e o verbo agapaō (amar) ocorrem apenas oito vezes nos capítulos 1-12, mas trinta e uma vezes nos capítulos 13-17. Portanto, tudo aqui é resultante do amor de Deus que se manifesta na pessoa de Jesus Cristo. A terceira é que João faz um jogo de palavras na construção da expressão introdutória: "Jesus viu que era hora de passar deste mundo para o Pai" (Jn 5.24; 7.3,14), precisamente porque - páscoa (pesah) significa passagem (Ex 12.11), de forma que cria uma relação direta entre o que está por acontecer (morte e ressurreição de Jesus), com o que aconteceu no Êxodo israelita. 
Em outras ocasiões seus adversários desejam prende-lo e mata-lo, mas ainda não
havia chega a hora e nada eles puderam fazer. Mas agora chega o momento em que a ampulheta do tempo messiânico é acionada em contagem regressiva – chegou a hora (cf. Lc 9.31, 51) e seus inimigos finalmente poderão se saciar no poço do ódio e do escarnio (esse foi o primeiro poço a ser perfurado pelos descendentes de Adão e Eva, após o pecado) e com que facilidade nós bebemos dessa água eivada e depois sofremos amargamente suas consequências nefastas – “E gritavam, crucifique-o, crucifique-o! E que o sangue dele caia sobre nós e sobre nossos filhos”.
Deste modo, fica claro que em nenhum momento Jesus foi pego de surpresa em relação a tudo que esta por vir. Ele apenas estará retornando ao seu lugar de origem, junto ao Pai (cf. 5.24; 8.23; 14.12, 28; 16.10, 28; e 17.5). Nunca houve um tempo em que Jesus não soubesse a razão pela qual havia deixado Sua glória e assumido nossa humanidade (2.4; 7.6; 12.23; 13.11,18; 18.4; 19.28).
Então, quando “chegou seu tempode “sair do mundo”[3] - uma forma amena e poética de expressar a morte, como se fosse apenas uma remoção de um lugar para outro.[4] Neste caso Cristo estava prestes a se remover deste mundo presente, ao qual ele veio tendo como objetivo salvar os pecadores; e agora vai “retornar ao Pai”, de cuja companhia havia voluntariamente deixado e pelo qual foi enviado, e pela qual ele veio; retorna para o seu Deus e Pai, e o Deus e Pai de todo aquele que nele vier a crer; retorna para tomar seu lugar de direito à destra de Deus pai na glória eterna. E assim como houve uma “plenitude dos tempos” para sua entrada no tempo-histórico deste mundo, agora se cumpre “a plenitude do tempo”, para sua saída dele.
Então o evangelista João formula uma das mais extraordinárias frases de toda a
Escritura sacra e de toda literatura humana desde quando se começou a escrever alguma coisa: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, ele os amou até o fim”. Ele tinha amado (continuamente, o tempo todo, para sempre[5]) os seus, isto é, os que ele mesmo havia chamado. Ele amou-os até ao fim (eis telos) do seu ministério terrestre e continuará a amá-los por toda a eternidade.[6] Mas a expressão “até o fim” (eis telos) além de indicar a questão temporal, faz alusão ao grau (completamente, plenamente, absolutamente) possibilitando algumas traduções: “Até os limites máximos do amor” (MACGREGOR, 1928, p. 274), e “Ele os amou completa e finalmente, até o final, até a morte” (HOSKYNS, 1947, p. 436).
Deste modo, quando poderia se esperar que Jesus, diante de todo o sofrimento que esta por vir, seria absorvido por suas próprias apreensões e tensões (evidenciadas no Getsemani), no entanto, Ele gasta suas últimas horas se preocupando com seus discípulos, que após sua partida permaneceriam nesse mundo tenebroso (Jo 17.11), ao invés de se preocupar consigo mesmo – Isso é amor!! Isso é muito amor! Isso é amor demais!
 O termo fim [τέλος] tem a ideia de um propósito cumprido, concluido e neste caso é uma referência à obra de redenção efetuada por Jesus na cruz em favor dos pecadores. E o evangelista vai colocar uma forma dessa mesma palavra nos lábios de Jesus na cruz, quando ele pronuncia sua última palavra "Está consumado" (Jo 19.30), e que de acordo com os papiros egípcios, tem a conotação de "pago na íntegra"!
Em nenhum momento o evangelista afirma que Jesus não amava aqueles que não eram dele, ou seja, não faziam parte do grupo dos discípulos, mas que Ele tinha um amor especial por aqueles que o Pai lhe havia confiado. O amor a todos os seres humanos (Jo 3.16) não foi suprimido pelo amor aos seus discípulos, mas são apenas estes que haverão de experimentar esse amor em sua plenitude salvifica: “O amor de Jesus, como ele é, / Só seus amados conhecem”. Seu amor nunca falhou por eles. Seu amor nunca falhará para nós. Na verdade, o amor verdadeiro nunca falha (1Co 13.8).
É aqui no Cenáculo e na intimidade de seus discípulos que podemos contemplar, como em nenhum outro lugar dos evangelhos, as dimensões divinas e humanas de Jesus Cristo. Em nenhum outro momento sentimos a ternura do coração de Deus se manifestando de forma tão doce e preciosa. Cada uma das palavras e expressões inauditas proferidas por Jesus no aposento alto são máximas de sua autorevelação, onde o divino e o humano se sobrepõem.
Como seres humanos o que somos e sentimos pode ser mudado ao sabor das circunstâncias da vida. Quantos que vivam intensamente sua fé cristã e serviam ardorosamente a Cristo e hoje vivem à beira do abismo da incredulidade e se negam veementemente a serem uteis na expansação do Reino. Mas o nosso modelo é Jesus Cristo e nele não há mudança e nem sombra de variação – tendo amado antes, continuo amando durante e depois – cada um de seus discípulos. Nem a traição, nem a negação, nem a incredulidade e nem o abandono, por parte deles, diminuiu a intensidade e a persistência do amor de Jesus Cristo por eles.
E o evangelista João, que tanto se utiliza dos diálogos em sua narrativa, não poderia conclui-la de forma mais sublime do que com o último dialogo de Jesus com Pedro. A pergunta de Jesus a Pedro “tú me amas” continua ressoando aos ouvidos de todo o crente genuinamente nascido de novo. O quanto de fato nós amamos a Jesus Cristo é o que realmente importou, importa e continuara importanto a Ele.
Nestes dias de um evangelicalismo antropocêntrico impulsionado por conceitos hedonistas e materialistas, falar do amor incondicional a Jesus Cristo é algo totalmente anacrônico (velho, retrógrado, morto, quadrado, conservador).
ORA, antes da festa da páscoa, sabendo Jesus que já era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai, como havia amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até o fim.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/


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Referências Bíblicas
BARCLAY, William. El Nuevo Testamento, v. 5. Buenos Aires: La Aurora, 1974.
BETTENCOURT, Estevão. Para Entender os Evangelhos.  Rio de Janeiro: Agir, 1960.
BONNET, Luis y SCHROEDER, Alfredo. Comentário del Nuevo Testamento. Buenos Aires: La Aurora, 1974. [v. 5].
CARSON, D. A. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Ed. Vida Nova, 2001.
HENDRIKSEN, GUILLERMO. Juan – comentário del Nuevo Testamento. Michigan: Subcomission Literatura Cristiana de la Iglesia Cristiana Reformada, 1980.
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento – João. São Paulo: Ed. Cultura Cristã, 2004. [v.1,].
HOSKYNS, Edwyn Clement. The Four Gospel. London: Faber eand Faber, Limited, 1960.
HULL, W. E. Comentário bíblico Broadman, v. 9. Rio de Janeiro: JUERP, 1983.
MAGGIONI, Bruno. Os relatos evangélicos da Paixão. Tradução de Bertilo Brod. São Paulo: Palinas, 2000. [Coleção Espiritualidade sem fronteiras].
MACGREGOR, G. H. C. The Gospel of John. California: Harper and Brothers, 1928. [The Moffatt New Testament Commentary, V. 4].
MCARTHUR, John. Comentário Macarthur del Nuevo Testamento – Juan. Epanha: Kregel, 2011.
MICHAELS, J. Ramsey. Novo Comentário Bíblico Contemporâneo – João. São Paulo: Vida, 1994.
PACK, Frank. O Evangelho Segundo João. São Paulo: Vida Cristã, 1983.
TENNEY, Merrill C. O Novo Testamento – sua origem e análise. 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1972.




[1] Seria uma sala superior em Jerusalém (ou, possivelmente, João 15-17, no caminho de Getsêmani, ver João 14.31), possivelmente a casa da mãe de João Marcos, que muitos identificam como o rapaz que foge semidespido na noite em que Jesus foi traído por Judas.
[2] O exegeta Robertson conclui afirmando: “Não parece haver nenhuma dúvida real de que esta refeição em João 13. 1-30 é a verdadeira refeição da Páscoa descrita pelos sinóticos também (Marcos 14. 18-21, Mateus 26. 21-25, Lucas 22. 21-23), seguida da instituição da Ceia do Senhor”. Por sua vez, o comentarista bíblico Frank Pack trás uma síntese interessante desta problemática (1983, p. 212-214), mas deixa em aberto uma resposta definitiva, acompanhando assim a maioria dos comentaristas, o que os diferenciam de Hendriksen que chega a uma conclusão exegética e histórica plausível.
[3] João usa o termo mundo (kosmos) em vários sentidos diferentes: Este planeta (cf. João 1.10; 11. 9; 16.21; 17. 5,11,24; 21.25); humanidade (cf. João 3.16; 7. 4; 11.27; 12.19; 14.22; 18. 20,37); ser humano rebelde (cf. João 1. 10,29; 3. 16-21; 4.42; 6.33; 7. 7; 9.39; 12.31; 15.18; 17.25).
[4] Na narrativa joanina há um dualismo vertical, acima ou abaixo (cf. João 13.3), desta forma, Jesus foi enviado [para baixo] (João 8.42) pelo Pai e agora Ele retornará [para cima]. Mas nas narrativas sinóticas prevalecem um dualismo horizontal referentes às duas eras, a tensão do já e o ainda não – em relação à presença do Reino de Deus, mas não ainda sua plenitude.
[5] Essa última ideia é encontrada na Septuaginta (Salmos 9.6,18; 44.23) que corresponde no hebraico "para sempre"; é assim traduzido também na versão etíope.
[6] O amor de Jesus por eles (e por nós) continuará após sua morte e ressurreição; em sua intercessão por eles no céu, fortalecendo-os na graça e preservando-os de uma queda final e total; e finalmente os receberá em seu reino e glória, quando eles estarão para sempre com ele – seu amor é eterno.

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