Uma característica muito peculiar da narrativa joanina é
que praticamente metade dela descreve a última semana de Jesus. É certo que os
demais evangelistas também reservam uma maior parte de seus relatos para
descreverem os últimos movimentos de Jesus, mas certamente João é o que
disponibiliza um espaço maior.
Enquanto os três sinóticos compartilham praticamente as
mesmas informações, variando aqui e ali, de acordo com suas ênfases, é no texto
joanino que haveremos de encontrar diversas peças fundamentais para
completarmos o mosaico do que convencionalmente chamamos de semana da paixão ou
semana santa.
Nos capítulos 13-17 João abre uma preciosa janela [aqui a janela não é
indiscreta] de onde podemos acompanhar todos os detalhes do que aconteceu
naquela última noite de Jesus com seus discípulos no espaço chamado de cenáculo,[1] um amplo salão sobreposto
que permitiu a Jesus e seus discípulos compartilharem de suas últimas horas de
calmaria, pois lá fora uma terrível e devastadora tempestade esta se formando
rapidamente e sobrevirá a eles com toda violência inclemente que somente seres
humanos escravizados pelo pecado podem manifestar.
De forma sucinta podemos descreve toda narrativa do
quarto evangelho conforme as divisões acima indicadas no quadro:
O Prólogo apresenta uma introdução teológica possibilitando aos leitores uma clara
compreensão de as palavras e ações de Jesus são as palavras e ações de Deus manifestadas Verbo encarnado. O Livro dos Sinais registra sete milagres que revelam a glória do Pai no Filho. Os milagres com seus
discursos explicativos têm como objetivo manifestar nos leitores apenas duas respostas:
a fé ou a incredulidade e o endurecimento
no pecado. Quando o ministério público de Jesus encerra-se,
a incredulidade (12.37), transvestida de ódio e
ganancia foram a principal resposta do povo. Mas ali no cenáculo Jesus tem a oportunidade de passar suas instruções de despedida e preparar seus discípulos para os eventos subsequentes
da Sua própria morte, bem como das perseguições que sobrevirão a todos eles. A
culminação da incredulidade é evidente na seção da paixão,
e a fé dos discípulos é evidente nos relatos da ressurreição. O
Epílogo completa o Evangelho mostrando os planos do Senhor para
Seus discípulos.
Síntese do Capítulo Treze
Esta seção, que começa aqui e se estende até o capítulo 20, registra os
eventos da última semana, culminando com os fatos relacionados à ressurreição.
Estes capítulos de João 13—17 é um dos trechos mais apaixonantes em toda literatura do Segundo
Testamento é a manifestação abundante do amor imensurável do Deus eterno em
favor dos pecadores.
Uma ruptura dramática no desenvolvimento deste Evangelho aparece aqui.
Os capítulos anteriores relacionavam-se com a revelação de Jesus para o povo
judeu que o rejeitou, mas a mensagem por Ele proclamada tinha um alcance universal. A partir
deste capítulo, a narrativa desenvolve a revelação especial de Jesus aos
discípulos que o receberam, apesar da traição de Judas, a negação de Pedro, a
incredulidade de Tomé e o abandono por quase todos após o aprisionamento e a
morte na cruz (somente João estava aos pés da cruz, com algumas poucas
mulheres).
A janela deste capítulo nos permite contemplar o momento em que Jesus lava
os pés dos apóstolos (Jo 13.1-11), o compartilhar dele dos momentos terríveis
que hão de vir sobre ele (Jo 13.12-20), o momento em que identifica do traidor
que está camuflado à mesa (Jo 13.21-30), o
novo mandamento (Jo 13.31-35) e a profecia da negação de Pedro (Jo 13.36-38).
Mas diferentemente dos evangelistas sinóticos João não registra o momento em
que Jesus institui a Ceia, como também não havia registrado o momento do
batismo de Jesus. O contexto de João 13 ressoa na
narrativa lucana (22.24), onde os discípulos ainda discutiam quem era o maior. Desde
o segundo século, se mantém uma grande disputa sobre a aparente discrepância entre João e os sinóticos (Mt, Mc e Lc) em suas narrativas sobre a
páscoa. Uma das melhores discussões é a oferecida por William Hendriksen, onde ele
aborda praticamente todos os ângulos desta questão e conclui de que há
similaridades suficientes para a compreensão de que se trata de um mesmo
momento pascoal de Jesus e seus discípulos (2004, p. 595-603).[2]
João
13 - O Discurso no Cenáculo - Prelúdio (v.1)
ORA, antes da festa da páscoa, sabendo Jesus que
já era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai, como havia amado os
seus, que estavam no mundo, amou-os até o fim. (Corrigida
Fiel – Português)
Um pouco antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que havia
chegado o tempo em que deixaria este mundo e iria para o Pai, tendo amado os
seus que estavam no mundo, amou-os até o fim. (Nova Versão internacional
– Português)
Antes da festa da páscoa, sabendo Jesus que era
chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai, e havendo amado os seus
que estavam no mundo, amou-os até o fim. (Revisada – Português)
Antes da celebração da festa da Páscoa, Jesus já sabia que
tinha chegado sua hora para deixar este mundo e voltar para seu Pai. Ele tinha
amado os seus que estavam no mundo; ele os amou até o fim. (NT Versão Palavra Viva – Português)
Ao entardecer
do Dia da Páscoa, Jesus sabia que aquela seria a última noite dEle sobre a
terra, antes de voltar para o Seu Pai. Durante a ceia, o Diabo já havia
inspirado Judas Iscariotes, filho de Simão, que aquela era a noite para ele
executar o seu plano de trair Jesus. Jesus sabia que receberia do Pai todas as
coisas, que tinha vindo de Deus e voltaria para Deus. E como Ele amava aos seus
discípulos! (Parafrase – Biblia Viva)
Texto
Grego – Textus Receptus
13.1 προ δε της εορτης του πασχα ειδως ο ιησους
οτι εληλυθεν αυτου η ωρα ινα μεταβη εκ του κοσμου τουτου προς τον πατερα
αγαπησας τους ιδιους τους εν τω κοσμω εις τελος ηγαπησεν αυτους.
Antes de nos permitir ouvir Jesus o
evangelista cuidadosamente nos oferece um prelúdio esclarecedor para os acontecimentos que estão por vir acontecer neste
momento particular de Jesus com seus discípulos às vésperas dos momentos mais
críticos e violentos do ministério terreno de Jesus.
De imediato ao menos três observações
devem ser feitas aqui: a primeira é que há uma mudança temporal significativa na construção da narrativa,
pois se os doze primeiros capítulos abrangem um período de quase três anos do ministério
terreno de Jesus, os próximos seis capítulos abrangem apenas uma noite; a segunda observação é que há uma mudança dramática no vocabulário de João
no capítulo 13, que destaca a importância do "amor" nos capítulos 13-17. Uma estatística do vocabulário de
João ressalta o fato de que o amor é um termo fundamental da narrativa a partir deste momento: o substantivo grego agapē (amor) e o verbo agapaō (amar) ocorrem apenas oito vezes nos capítulos 1-12, mas trinta
e uma vezes nos capítulos 13-17. Portanto, tudo aqui é resultante do amor de Deus que se manifesta na
pessoa de Jesus Cristo. A terceira é que João faz um jogo de palavras na construção da expressão introdutória: "Jesus viu que era hora de passar deste mundo para o Pai" (Jn 5.24; 7.3,14), precisamente porque - páscoa (pesah) significa passagem (Ex 12.11), de forma que cria uma relação direta entre o que está por acontecer (morte e ressurreição de Jesus), com o que aconteceu no Êxodo israelita.
Em outras ocasiões
seus adversários desejam prende-lo e mata-lo, mas ainda não
havia chega a hora e nada eles puderam fazer. Mas agora chega o momento em que a ampulheta
do tempo messiânico é acionada em contagem regressiva – chegou a hora (cf. Lc 9.31,
51) e seus inimigos finalmente poderão se saciar no
poço do ódio e do escarnio (esse foi o primeiro poço a ser perfurado pelos
descendentes de Adão e Eva, após o pecado) e com que facilidade nós bebemos
dessa água eivada e depois sofremos amargamente suas consequências nefastas – “E gritavam, crucifique-o, crucifique-o! E que o sangue
dele caia sobre nós e sobre nossos filhos”.
Deste modo, fica claro que em nenhum momento Jesus
foi pego de surpresa em relação a tudo que esta por vir. Ele apenas estará
retornando ao seu lugar de origem, junto ao Pai (cf. 5.24; 8.23; 14.12, 28;
16.10, 28; e 17.5). Nunca houve um tempo em que Jesus não soubesse a razão pela
qual havia deixado Sua glória e assumido nossa humanidade (2.4; 7.6; 12.23;
13.11,18; 18.4; 19.28).
Então, quando “chegou seu tempo” de “sair do
mundo”[3]
- uma forma amena e poética de expressar a morte, como se fosse apenas uma
remoção de um lugar para outro.[4]
Neste caso Cristo estava prestes a se
remover deste mundo presente, ao qual ele veio tendo como objetivo salvar os
pecadores; e agora vai “retornar ao Pai”, de cuja companhia havia voluntariamente deixado
e pelo qual foi enviado, e pela qual ele veio; retorna para o seu Deus e
Pai, e o Deus e Pai de todo aquele que nele vier a crer; retorna para tomar seu
lugar de direito à destra de Deus pai na glória eterna. E assim como houve
uma “plenitude dos tempos” para sua entrada no
tempo-histórico deste mundo, agora se cumpre “a plenitude do tempo”,
para sua saída dele.
Então o
evangelista João formula uma das mais extraordinárias frases de toda a
Escritura sacra e de toda literatura humana desde quando se começou a escrever
alguma coisa: “Tendo amado os seus
que estavam no mundo, ele os amou até o fim”. Ele tinha
amado (continuamente,
o tempo todo, para sempre[5])
os seus, isto é, os que ele mesmo havia chamado. Ele amou-os até ao fim (eis telos) do
seu ministério terrestre e continuará a amá-los por toda a eternidade.[6]
Mas a expressão “até o fim” (eis telos) além de indicar a questão temporal, faz
alusão ao grau (completamente, plenamente, absolutamente) possibilitando
algumas traduções: “Até os
limites máximos do amor” (MACGREGOR, 1928, p. 274), e “Ele os amou completa e finalmente, até o final, até a
morte” (HOSKYNS, 1947, p. 436).
Deste modo, quando
poderia se esperar que Jesus, diante de todo o sofrimento que esta por vir, seria
absorvido por suas próprias apreensões e tensões (evidenciadas no Getsemani), no
entanto, Ele gasta suas últimas horas se preocupando com seus discípulos, que
após sua partida permaneceriam nesse mundo tenebroso (Jo 17.11), ao invés de se preocupar
consigo mesmo – Isso é amor!! Isso é muito amor! Isso é amor demais!
O termo fim [τέλος] tem a ideia de um propósito cumprido, concluido e neste caso é uma referência à obra de redenção efetuada por Jesus
na cruz em favor dos pecadores. E o evangelista vai colocar uma forma
dessa mesma palavra nos lábios de Jesus na cruz, quando ele pronuncia sua última
palavra "Está consumado" (Jo 19.30), e que de acordo com os papiros egípcios, tem a
conotação de "pago na
íntegra"!
Em nenhum momento o evangelista afirma
que Jesus
não amava aqueles que não eram dele, ou seja, não faziam parte do grupo dos
discípulos, mas que Ele tinha um amor
especial por aqueles que o Pai lhe havia confiado. O
amor a todos os seres humanos (Jo 3.16) não foi suprimido pelo amor aos seus discípulos,
mas são apenas estes que haverão de experimentar esse amor em sua plenitude
salvifica: “O amor de Jesus, como ele é,
/ Só seus amados conhecem”. Seu
amor nunca falhou por eles. Seu amor nunca falhará para nós. Na verdade, o amor
verdadeiro nunca falha (1Co 13.8).
É aqui no Cenáculo e na intimidade de seus discípulos
que podemos contemplar, como em nenhum outro lugar dos evangelhos, as dimensões
divinas e humanas de Jesus Cristo. Em nenhum outro momento sentimos a ternura
do coração de Deus se manifestando de forma tão doce e preciosa. Cada uma das
palavras e expressões inauditas proferidas por Jesus no aposento alto são
máximas de sua autorevelação, onde o divino e o humano se sobrepõem.
Como seres humanos o que somos e sentimos pode ser
mudado ao sabor das circunstâncias da vida. Quantos que vivam intensamente sua
fé cristã e serviam ardorosamente a Cristo e hoje vivem à beira do abismo da
incredulidade e se negam veementemente a serem uteis na expansação do Reino.
Mas o nosso modelo é Jesus Cristo e nele não há mudança e nem sombra de
variação – tendo amado antes, continuo amando durante e depois – cada um de
seus discípulos. Nem a traição, nem a negação, nem a incredulidade e nem o
abandono, por parte deles, diminuiu a intensidade e a persistência do amor de
Jesus Cristo por eles.
E o evangelista João, que tanto se utiliza dos diálogos
em sua narrativa, não poderia conclui-la de forma mais sublime do que com o
último dialogo de Jesus com Pedro. A pergunta de Jesus a Pedro “tú me amas”
continua ressoando aos ouvidos de todo o crente genuinamente nascido de novo. O
quanto de fato nós amamos a Jesus Cristo é o que realmente importou, importa e
continuara importanto a Ele.
Nestes dias de um evangelicalismo antropocêntrico impulsionado
por conceitos hedonistas e materialistas, falar do amor incondicional a Jesus
Cristo é algo totalmente anacrônico (velho, retrógrado, morto, quadrado, conservador).
ORA, antes
da festa da páscoa, sabendo Jesus que já era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai, como havia amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até o fim.
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/
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A Cristologia no Evangelho Segundo João
Evangelho de João: Contexto Religioso
Referências
Bíblicas
BARCLAY, William. El Nuevo Testamento, v. 5. Buenos
Aires: La Aurora, 1974.
BETTENCOURT, Estevão. Para Entender os Evangelhos. Rio
de Janeiro: Agir, 1960.
BONNET, Luis y SCHROEDER, Alfredo. Comentário del Nuevo
Testamento. Buenos Aires: La Aurora, 1974. [v. 5].
CARSON, D. A. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Ed.
Vida Nova, 2001.
HENDRIKSEN, GUILLERMO. Juan – comentário del Nuevo Testamento. Michigan:
Subcomission Literatura Cristiana de la Iglesia Cristiana Reformada, 1980.
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento
– João. São Paulo: Ed. Cultura Cristã, 2004. [v.1,].
HOSKYNS,
Edwyn Clement. The Four Gospel.
London: Faber eand Faber, Limited, 1960.
HULL, W. E. Comentário bíblico Broadman, v. 9. Rio de
Janeiro: JUERP, 1983.
MAGGIONI, Bruno. Os relatos evangélicos da Paixão. Tradução
de Bertilo Brod. São Paulo: Palinas, 2000. [Coleção Espiritualidade sem
fronteiras].
MACGREGOR,
G. H. C. The Gospel of John. California:
Harper and Brothers, 1928. [The Moffatt New Testament Commentary, V. 4].
MCARTHUR, John. Comentário Macarthur del Nuevo Testamento –
Juan. Epanha: Kregel, 2011.
MICHAELS, J. Ramsey. Novo Comentário Bíblico Contemporâneo –
João. São Paulo: Vida, 1994.
PACK, Frank. O Evangelho Segundo João. São Paulo: Vida
Cristã, 1983.
TENNEY, Merrill C. O Novo Testamento – sua origem e análise. 2ª
ed. São Paulo: Vida Nova, 1972.
[1] Seria uma sala superior em Jerusalém
(ou, possivelmente, João 15-17, no caminho de Getsêmani, ver João 14.31),
possivelmente a casa da mãe de João Marcos, que muitos identificam como o rapaz
que foge semidespido na noite em que Jesus foi traído por Judas.
[2] O exegeta Robertson conclui
afirmando: “Não parece haver nenhuma dúvida real de que esta refeição em João
13. 1-30 é a verdadeira refeição da Páscoa descrita pelos sinóticos também (Marcos
14. 18-21, Mateus 26. 21-25, Lucas 22. 21-23), seguida da instituição da Ceia
do Senhor”. Por sua vez, o comentarista bíblico Frank Pack trás uma síntese
interessante desta problemática (1983, p. 212-214), mas deixa em aberto uma
resposta definitiva, acompanhando assim a maioria dos comentaristas, o que os
diferenciam de Hendriksen que chega a uma conclusão exegética e histórica
plausível.
[3] João usa o termo mundo (kosmos) em vários sentidos diferentes: Este planeta (cf.
João 1.10; 11. 9; 16.21; 17. 5,11,24; 21.25);
humanidade (cf. João 3.16; 7. 4; 11.27; 12.19; 14.22; 18.
20,37); ser humano
rebelde (cf. João 1. 10,29; 3. 16-21; 4.42; 6.33; 7.
7; 9.39; 12.31; 15.18; 17.25).
[4] Na narrativa joanina há um dualismo vertical, acima ou abaixo (cf.
João 13.3), desta forma, Jesus foi enviado [para baixo] (João 8.42) pelo Pai e
agora Ele retornará [para cima]. Mas nas narrativas sinóticas prevalecem um
dualismo horizontal referentes
às duas eras, a tensão do já
e o ainda não – em relação à presença do Reino de Deus, mas
não ainda sua plenitude.
[5] Essa última ideia é encontrada na Septuaginta (Salmos
9.6,18; 44.23) que corresponde no hebraico "para sempre"; é assim
traduzido também na versão etíope.
[6] O amor de Jesus por eles (e por nós)
continuará após sua morte e ressurreição; em sua intercessão por eles no
céu, fortalecendo-os na graça e preservando-os de uma queda final e
total; e finalmente os receberá em seu reino e glória, quando eles estarão
para sempre com ele – seu amor é eterno.
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