Muitos leitores da bíblia perguntam a razão pela qual há
quatro narrativas evangélicas, sendo que os três primeiros, comumente
denominados de sinóticos, praticamente compartilham as mesmas informações.
Uma das respostas que podemos oferecer a está questão é
que cada um deles utiliza suas fontes primárias, muitas delas comuns a eles,
tendo em vista seu objetivo de comunicar a mensagem evangélica de forma eficaz
aos seus leitores primários. Assim, quando examinamos com um pouco mais de
acuidade cada uma das narrativas vamos percebendo suas peculiaridades
narrativas, mesmo quando estão tratando do mesmo acontecimento ou ensino de
Jesus. Vejamos rapidamente o conteúdo geral da narrativa produzida por Mateus,
procurando enfatizar sua proposta peculiar, visto que seus leitores primários
eram os judeus convertidos ao cristianismo e que agora vivem em comunidades
judaico-cristãs.
O Evangelho de Mateus contém 28 capítulos nos
quais ele apresenta Jesus como sendo o novo “Rei” e/ou “Messias” que vem para implantar o “Reino dos céus”. Entretanto, apesar da
expectativa messiânica ter estado ressoando por muitos séculos, através
principalmente da boca dos profetas, como Isaías que é chamado do “Profeta
Messiânico”, e que Mateus haverá de citar insistentemente em sua narrativa, a
chegada do Jesus Cristo [Messias]
não é bem compreendida pelos judeus.
Nos primeiros 12
capítulos o evangelista vai registrando a reação antagônica
e resistente por parte de grande parcela do povo e principalmente pela quase
totalidade das lideranças representada nos seus diversos grupos religiosos e
políticos (os principais sacerdotes, escribas, fariseus e saduceus).
Em determinado momento de seu ministério, diante da
crescente oposição à sua mensagem, o Senhor Jesus (capítulo 13) se retira para as regiões
extremas da Palestina judaica. Cristo é mostrado a partir de então como
rejeitado por seu povo. Todavia, ele persistentemente continua a proclamar
as “Boas Novas”
do Reino dos Céus.
"Naquele dia,
Jesus saiu da casa e sentou-se junto ao lago" onde qualquer e
todos que desejassem poderiam ouvir suas palavras.
Nos capítulos
finais do Evangelho, como nas outras narrativas, a crucificação e a ressurreição de
Jesus são descritas (capítulo
26) com mais detalhes do que qualquer outro evento anteriormente
registrado, pois se
constitui no cerne e no diferencial da mensagem evangélica – Jesus Cristo
morreu e ressuscitou, satisfazendo a justiça divina e oferecendo salvação a
todo que nele crer. E sua promessa "Eis que estou sempre contigo, até a conclusão dos
tempos" é condicionada ao “Ide e
anunciai” até os confins da terra.
Uma característica
peculiar da construção narrativa mateana é que ele
agrupa em forma de grandes
discursos e/ou sermões
os diversos ensinos que Jesus proferiu durante seus quase três anos de
ministério itinerante por todos os vilarejos e pequenas cidades da Palestina
judaica. Jesus como Mestre ensinava enquanto andava, comia ou descansava – ensinava em tempo integral! Ao construir
sua narrativa nesse formato de grandes discursos/sermões Mateus está evocando o
cumprimento de uma profecia do Primeiro Testamento: "Por meio de seu conhecimento, o meu servo justo
mostrará que muitos são justos" (Isaías 53.11). É possível
encontrarmos nestes grandes textos cinco temáticas que se relacionam, se
completam e se harmonizam com o tema central do “Reino dos céus”. Muitos comentaristas
entendem que o número de cinco grandes sermões faz um link direto entre Jesus e
Moisés, o grande legislador de Israel. Vejamos suscintamente cada um deles:
1. O Sermão da Montanha (5,1-7,28)
De todos os discursos mateano, provavelmente esse primeiro
seja o mais popular. Aqui o Senhor Jesus pontua cada um dos princípios do Reino
dos Céus. Esses três capítulos frequentemente são denominados de "Carta Magna do Reino". Aqui
Mateus não inclui nada que esteja relacionado com o sofrimento e a morte de
Jesus, mas a ênfase está no caráter essencial de seu futuro governo: a justiça. Pela primeira vez, um
governo poderá dizer que é justo! Esta constituição elaborada e promulgada por
Jesus é para todos os seus cidadãos, quer sejam judeus ou gentios. Ele não veio
anular a Lei estabelecida por Deus através de Moisés, mas cumpri-la (5.17),[1]
mas por outro lado, sua aplicação espiritual e interiorizada dos princípios da
Lei vai muito além de códigos e manuais legalistas e farisaicos – abrange o ser
humano em sua integridade corpo e alma e/ou espírito. Todos os pensamentos (e
intensões) e todas as ações dos cidadãos do Reino devem ser subordinados aos princípios
basilares aqui promulgados – como tão bem Jesus indicou na oração modelo que
ensinou aos discípulos – seja feito a Tua [Deus] vontade, assim na terra como
nos céus (6.9-13). Ignorar o “Sermão do Monte” é ignorar o próprio Reino dos céus.
Uma vez que Jesus os promulgou esses princípios continuarão sendo validos até que
Ele “volte”! E enquanto Ele não volta devemos ser "o sal da terra" e a "luz do mundo", como? Vivenciando
o “Sermão da Montanha” na prática de nosso discipulado de Cristo.
2. O Sermão do Discipulado (10.1-11.1)
Aqui Mateus reúne diversos ensinos de Jesus específicos
para seus discípulos. Eles estão em treinamento de tempo integral e devem compreender
com muita clareza quem eles são e o que eles devem fazer. Nesse sentido, os
doze apóstolos aqui são os precursores do Senhor e do seu Rei. Inicialmente
será confinado aos limites da Palestina judaica até que se cumpra todas as
etapas de seu ministério terreno, incluindo sua morte e ressurreição. Eles
iniciarão e outros haverão de sucedê-los até que o Reino alcance os confins da
terra (28.19,20). Assim como aqueles discípulos o ensino deste sermão
pedagógico de Jesus é para todos os discípulos em todas as épocas e lugares.
3. O Sermão do “Reino dos Céus” (13.1-53)
O evangelista reúne neste longo capítulo sete ou oito
parábolas que o Senhor proferiu durante seu ministério público. Na "parábola do semeador", o Senhor Jesus deixa
claro que a mensagem dele não frutificara em todos os corações. Na verdade a maioria
das pessoas a rejeitaram, mas todos aqueles que forem alcançados pela graça
salvadora haverão de crer (vv. 1-23). Na sequencias temos três parábolas do
"reino dos céus",
que mostram o desenvolvimento crescente da mensagem do reino depois da partida
do Senhor do Reino (o Senhor Jesus). A "parábola do campo" ilustra como muitos
haverão de distorcer o reino, tirando proveito mesquinhamente pessoal da sua
mensagem (qualquer semelhança com o evangelicalismo brasileiro atual não é mera
coincidência) e também o esforço continuo de Satanás e seus servos para inutilizar
a semente da palavra. A "parábola
da semente de mostarda" mostra a grande extensão do reino dos
céus, de modo que todos encontraram aconchego em seus galhos (as aves do céu).
Na “Parábola do Fermento", o Senhor ensina apesar do crescimento e
expansão do Reino o mal e/ou pecado continuará produzindo suas consequências nefastas
e às vezes até mesmo permeando todo o sistema da cristandade, pois penetra
sutilmente e em pequenas quantidades, mas suficiente para estragar toda a
massa, portanto é preciso estar alerta o tempo todo.
As próximas três parábolas, o Senhor Jesus pronuncia
apenas para seus discípulos, pois trata de coisas que somente os crentes podem
entender corretamente. A questão agora não é mais sobre o caráter externo, mas
sobre o interior desse reino. A "Parábola
do Tesouro" e da “Pérola
de grande Valor” mostra que o valor do Reino é maior do que qualquer
outra coisa neste mundo “vendeu
tudo o que tinha”. Na "Parábola da Rede", a antevisão de
que o Reino incluirá todas as pessoas, povos e etnias (cf. Ap 7.9-17). A
pequena e quase imperceptível oitava parábola "o novo e o velho" é fundamental,
pois deixa muito claro de que os valores do Reino (novos) não se harmonizaram
de forma alguma com os valores vigentes neste mundo (velho), o que para os
ouvintes de Jesus era representativo nas expressões religiosas e facciosas
judaicas, incluindo a religião institucional que tinha no Templo sua expressão
maior. O Reino inaugura um Novo Tempo e as coisas velhas passaram!
4. O Segundo Sermão do Discipulado (18,1-19,1)
Provocado pelos discípulos o Senhor Jesus aborda uma
série de princípios para o comportamento pessoal e comum dos cidadãos do Reino. Aqui
se centraliza nas atitudes que os discípulos devem ter diante das problemáticas
da vida cotidiana. Assim como ele seus discípulos devem ter na mais alta conta o
valor intrínseco de uma vida (a ovelha perdida), eles não foram chamados para construírem
catedrais monumentais e nem uma rede empresarial de denominações, mas para
buscarem incansavelmente os que estão perdidos e sem salvação, completamente à mercê
do mau e da morte (o que o evangelicalismo brasileiro não entendeu e nem quer
entender). No que tange aos que não compreenderem a mensagem e até mesmo a
rejeitarem, nossa atitude deve ser SEMPRE a do perdão! (18.21,22 – 23-35).
5. O Sermão Escatológico (24,1-25,46)
Mateus reúne neste último Sermão a temática escatológica.
Aqui Jesus em momento algum ameniza o que está por vir – assim como ele haverá
de enfrentar toda a maldade humana nas mãos de seus adversários, seus discípulos.
Aqui Jesus demarca com muita nitidez os limites que separam os que creem e os
que rejeitam o Reino. O sistema mundano e secularista jamais aceitara
passivamente a expansão do Reino e colocaram todo o esforço para o destruírem.
A grande tribulação se estendera por todo o período que anteceder sua volta!
Essa perseguição se estenderá por todo o globo terrestre, onde quer que se
estabeleça uma igreja (comunidade) cristã, seja com dois ou três em seu nome.
As grandes instituições religiosas cristãs convivem comodamente bem com o
sistema mundano, pois não expressão os genuínos valores do Reino. Mas o retorno
do Filho do Homem revelará
definitivamente os que são e os que não são parte de seu Reino. devem estar preparados para enfrentar
semelhante perseguição e martírio por causa dele. Neste último grande sermão, o
Senhor Jesus explica aos discípulos os desenvolvimentos que teriam lugar nesta
terra após sua ascensão. Ficou claro que os discípulos de Jesus, assim
como seus mestres, sofrerão rejeição e perseguição. O Senhor Jesus assume
a divisão tripartite que já usou para lidar com a natureza interior do Reino
dos Céus: Israel, os cristãos e as nações.
Na sequencia de parábolas (24.45-25.30) temos o
representativo dos dois grupos de pessoas: dos servos fieis e os infiéis; das virgens
prudentes e das imprudentes, bem como a do homem que saiu do país e entregou
talentos aos seus servos, que eles deveriam administrar em sua ausência. Em
todas elas há os dois grupos – a questão é: em qual destes grupos estamos
inseridos. Quando Jesus retornar tudo será revelado!
Quando Jesus retornar será em poder em glória. Virá não
mais para salvar, mas para julgar. Discursos religiosos estéreis de fé genuína e
compromisso exclusivo com os valores do Reino não livrarão tais pessoas de sua
condenação eterna. As multimilionárias instituições religiosas cristãs
sucumbiram diante do juízo de Cristo, assim com o templo judaico não ficou
pedra sobre pedra. Tanto doutores e mestres em teologia, assim como curandeiros
e exploradores da miséria humana (sejam quais títulos ostentarem), ouviram as
palavras implacáveis daquele que sonda e conhece as mentes e os corações: “NÃO VOS CONHEÇO” e “LANÇAI-OS NAS TREVAS EXTERIORES”. É possível
engar a muitos por muito tempo e até mesmo enganar a si mesmo o tempo todo, mas
NINGUEM poderá enganar JESUS em tempo algum!
“E irão estes para o
castigo eterno,
porém os justos, para a vida eterna”
(Mateus 25.46).
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes,
Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Referência
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Krievin. São Paulo: ABU Editora, 1989, 2ª ed. Série: A Bíblia Fala Hoje.
[Título anterior: Contracultura Cristã].
[1]
O apóstolo Paulo compreendeu perfeitamente esse ponto: "Porque Cristo é o
fim da lei, todo crente na justiça" (Romanos 10.4).
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