segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Evangelhos: A Questão Sinótica – Propostas de Solução (conclusão)


Diante do que foi abordado nos artigos anteriores podemos afirmar com certeza de que os escritores dos Evangelhos Sinóticos não tiveram uma única fonte “mestre” sobre a vida de Jesus.  Ao contrario, eles foram herdeiros de uma variedade de fontes, que se constituíam na mensagem do Evangelho proclamada no transcorrer de muitos anos.  O prefácio com que Lucas abre sua obra confirma que ao menos ele esteve atento para a diversidade de informações, orais e escritas sobre a vida de Jesus,  que existiam e eram de conhecimento público (Lc.1.1-4). Ainda que não possamos inferir muitas coisas desta declaração, podemos ao menos deduzir sobre o que ele não diz:
ü  Ele não define exatamente quem foi os que lhe “transmitiram” estes fatos.  Ele também não esta apenas copilando fatos históricos, mas seu objetivo é instruir o seu leitor sobre a “verdade”, neste contexto uma referência à mensagem do Evangelho que extrapolava as fronteiras da igreja primitiva.  Isto é facilmente perceptível uma vez que este era apenas o primeiro de dois volumes que seria concluído com Atos.
ü  Ele também não diz precisamente como lhe “transmitiram” estes fatos.  Isto abre possibilidade de que ele pudesse ter incluído material advindo de um ou dos dois outros Evangelhos (Marcos e Mateus).  Mas é igualmente possível que ele se referisse a uma ampla tradição oral que se tinha formado no seio da igreja primitiva.  Ou ainda há a possibilidade de que ele se referisse a uma combinação entre a tradição oral e documentos escritos. 
ü  Ele não define também o meio que utilizou para “ordenar” estes fatos.  Apressadamente podemos concluir que ele o fez de forma cronológica, entretanto, a palavra grega por ele utilizada não nos permite esta conclusão – o termo grego apenas indica a ideia de algo que foi “copilado e/ou organizado” sem definir o método utilizado.  Isto indica que o escritor poderia utilizar o seu material conforme os seus objetivos pré-estabelecidos e não apenas dentro da rigidez cronológica dos acontecimentos.  Relacionando com as diferenças encontradas nos Evangelhos, podemos concluir que cada escritor organiza teologicamente este material em função da ênfase que deseja dar à sua mensagem, e não tanto uma preocupação cronológica.
ü  Finalmente, o escritor não reivindica ser uma testemunha ocular dos eventos por ele relacionado.  Ele diz que os fatos por ele utilizados tem origem em testemunhos oculares, ainda que mais uma vez não defina se foram as pessoas que presenciaram estes fatos ou que estas pessoas os haviam registrado e/ou documentado, mas não havia dúvida de sua parte de que as informações eram fidedignas.
Ainda que os demais sinóticos não forneçam detalhes sobre seu escrito, é razoável concluirmos que também trilharam o mesmo processo de Lucas.  Isto nos ajuda a compreendermos que os Evangelhos foram o resultado de um processo deliberado de preservar uma tradição já existente sobre a vida e ensino de Jesus, utilizado pela igreja iniciante. 
Deste modo, os Evangelhos com toda a sua diversidade se constituem num testemunho fiel às fontes oculares.  Os objetivos preliminares proposto por cada escritor faz com que ele omita ou inclua material; coloque um dito dentro de um determinado contexto; acrescente comentários interpretativos; demonstrando não apenas uma criatividade em escrever, mas muito mais um aspecto teológico determinado.  O estudo cuidadoso destes recursos habilitará o estudante sério das Escrituras a escutar e compreender o testemunho dos Sinóticos em um nível mais profundo.
Esta ênfase numa análise redacional que nos leva a esta questão dos Sinóticos também nos possibilita vermos os vários pontos de vista da mensagem do Evangelho através de autores diferentes que foram norteados pelos seus aspectos teológicos preestabelecidos, em vez de simplesmente serem conduzidos por uma tradição estática.  Eles não foram simplesmente editores ou copistas que registraram os fatos sem emitirem nenhum comentário.  Eles desempenharam um papel ativo no esforço de trazerem a mensagem viva do Evangelho, dentro de um contexto determinado e com um propósito definido e provavelmente para um público especifico.
As palavras de Bratcher,[1] conforme abaixo, expressão de forma sucinta este extraordinário trabalho realizado pelos evangelistas.
Os escritores dos Evangelhos não mudaram a verdade básica da tradição em seu testemunho de Jesus como o Cristo e revelação Pessoal de Deus.  Mas eles trataram sua mensagem como uma tradição viva que podia ser aplicada e reaplicada na vida da comunidade da Fé para chamar pessoas a uma resposta fiel àquela revelação e a Deus. Esta deve ser a maior contribuição que podemos tirar do estudo do Problema dos Sinóticos, porque em última instância esta também continua sendo a nossa tarefa hoje e deve se constituir também no propósito pelo qual devemos continuar a estudar a Sagrada Escritura.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Evangelho. Os Herodes no Segundo Testamento
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Referências Bibliográficas
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MIRANDA, O. A., Estudos Introdutórios dos Evangelhos Sinóticos, São Paulo. Cultura Cristã, 1989.
RUSSELL, N. C. ‑ O Novo Testamento Interpretado, ed. 5ª, v. 1. São Paulo. Milenium, 1985.
SHREINER, J & DAUTZENBERG G. Forma e Exigências do Novo Testamento. 2ª ed. São Paulo: Editora Teológica, 2004.
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STEIN, R. H. The Synoptic Problem. an introduction. Michigan. Baker Book House, 1989.
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VERBIN, John S. Kloppenborg. Excavating Q: The History and Setting of the Sayings Gospel. Minneapolis, MN: Fortress Press 2000.




[1] Dennis Bratcher,  Os Evangelhos e o Problema dos Sinóticos, @eletrônico.

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