terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Evangelho Segundo Marcos: Personagens Anônimos (1.29-30)


            Todos os filmes além dos atores principais há sempre um numero expressivo de “figurantes”, aquelas pessoas que passam pelas cenas, mas normalmente não falam absolutamente nada e por isso seus nomes acabam não sendo mencionados. Mas sem a participação destes “figurantes” as cenas ficaram vazias e sem sentido.
            No evangelho redigido por Marcos encontramos uma pequena lista de personagens cujos nomes ficaram desconhecidos. Mas alguns deles participam efetivamente das cenas, todavia ficamos sem saber quem eram. Na literatura extra bíblica alguns desses personagens têm sido identificados e nomeados, todavia, na maioria das vezes são no mínimo questionáveis, quando não totalmente inverossímil.  Abaixo indicamos esses personagens anônimos e as respectivas referências.
Personagens Anônimos no Evangelho Segundo Marcos
Um homem endemoninhado na Sinagoga (1.21-28)
A Sogra de Pedro (1.29-30)
O Geraseno endemoníado (5.1-20)
Uma mulher com fluxo de sangue (5.25-34)
A mãe de Herodias (6.24, 28)
Um soldado da guarda de Herodes (6.27)
Uma mulher síria-fenícia (7.24-30)
Dois dos discípulos de Jesus (11.1-7; 14.13-16)
Um escriba (12. 28-34)
Um dos discípulos de Jesus (13.1)
Uma Mulher que unge a cabeça de Jesus (14.3-9)
Um escravo do sumo sacerdote (14.47)
Um jovem que foge do Getsêmani nu (14.51-52)
Uma serva do sumo sacerdote (14.66-69)
[dois discípulos anônimos] - ([somente 16.12-13], cf. Lucas 24.13-35)

A Sogra de Pedro (1.29-30)
            É muito significativo que os dois primeiros milagres ou ação sobrenatural de Jesus na narrativa marcana são de duas pessoas anônimas, ou seja, não sabemos seus nomes. Se no primeiro caso, um homem possesso na Sinagoga, era negativo, neste caso da sogra de Pedro é uma cura, portanto de aspecto positivo. Mas em nenhum dos dois casos os personagens são nomeados.
            Apressadamente alguns haverão de gritar que as mulheres não tinham valor naquela época e que os escritores bíblicos são influenciados por está atitude discriminatórios para com as mulheres. Uma simples olhada na lista acima fragiliza muito tais críticas por parte de muitos comentaristas bíblicos atuais. Ali se encontram diversos homens e mulheres, incluindo discípulos, cujos nomes não são mencionados nos referidos textos evangélicos.
            Por que então Marcos inicia sua narrativa com dois milagres de personagens anônimos? Entendo que o evangelista deseja deixar bem claro desde o principio de que Jesus veio realmente para todas as pessoas independentes de seus nomes, ou seja, para Jesus toda e qualquer pessoa precisa ser liberta e ser sarada. O apóstolo Paulo em uma de suas cartas vai declarar que Jesus (Evangelho) veio para aqueles que nada eram e nada tinham, para confundir os que acham que são e acham que têm. O pecado trouxe como consequência as possessões e as doenças e Jesus veio buscar e salvar o ser humano, independente de quem sejam.
            Diferentemente do primeiro milagre em que somente Lc acompanha a narrativa de Mc, o segundo milagre é também mencionados por Mt 8.14-15 e Lc 4.38-39, demonstrando assim que sua repercussão foi significativa. Na verdade a partir destes dois milagres públicos o ministério de Jesus alcançara uma dimensão crescente e seu nome será proclamado por toda Palestina judaica e muito além. Mas também atrairá a atenção e crescente indignação e ódio por parte das lideranças eclesiásticas judaicas, cujo clímax ocorrerá não muito tempo depois, quando esses grupos religiosos antagônicos pela primeira e talvez esta única vez se unissem no propósito de matar Jesus – inimigo do inimigo meu é meu amigo – assim sacerdotes, escribas, fariseus, saduceus, herodianos e zelotes fazem um pacto silencioso de morte contra Jesus.

E imediatamente[1] depois eles de saírem da sinagoga, eles foram para a casa de Simão e André, com Tiago e João (1.29).
            As reuniões sabáticas na Sinagoga podiam ser pelo período da manhã, no máximo até o meio dia, ou pelo período da tarde, antes de encerrar o dia ao por do sol. Para harmonizar com a narrativa lucana que informa que “ao por do sol” muitas pessoas começaram a virem para Cafarnaum para verem Jesus, os acontecimentos anteriores foram no oficio religioso da tarde e quando acabou se dirigiram à casa mais próxima, havia um limite para se caminhar no sábado, que seria a casa de Pedro e André.[2]
E a sogra[3] de Simão estava enferma com uma febre;
            Ao adentrar a casa Jesus toma conhecimento de que a sogra de Pedro esta prostrada com febre, ao qual Lucas acrescenta, utilizando um termo médico apropriado, que era “intensa ou alta”, portanto, ela corria risco de morte. Este tipo de febre alta não era incomum em certas épocas do ano ao redor do lago Tiberíades.[4] A construção da frase no grego (tempo imperfeito) revela que ela estava enferma havia um tempo considerável (vários dias). Esta febre intensa e mortífera da sogra de Pedro, diferentemente do acontecimento na Sinagoga, nada tem haver com ação de espíritos maus e Mc vai fazer uma clara distinção entre enfermidades e possessões (verso 32). Assim, nem toda enfermidade é ação diabólica e nem toda possessão traz enfermidades, pois não se informa que aquele homem da Sinagoga tinha alguma doença.
E Ele chegou até ela e a levantou pela mão, e a febre a deixou;
            Toda ação sobrenatural e curativa de Jesus se constituía em um sinal de Sua divindade e sua missão Messiânica. Marcos registra mais milagres do que sermões de Jesus; em toda narrativa até o capítulo onze, a partir de quando Jesus é preso, julgado e executado, contém pelo menos o registro de um milagre (1.29-34,40-45; 2.1-12; 3.1 -12; 4.35-41; 5.1-43; 6.30-56; 7.24-37; 8.1-10,22-26; 9.17-29; 10.46-52; 16.1-8). Em cada um destes milagres há um duplo propósito: abençoar os destinatários, como também para revelar aos seus próprios discípulos, aqui restrito aos quatro primeiros que foram chamados, que Ele era quem dizia ser.
            A cura foi imediata: Mc “tomou-a pela mão”; Lc acrescenta que Jesus “repreendeu a febre”; e a febre no mesmo instante, sem qualquer intervalo de tempo, desapareceu por completo e a mulher se levantou, Lc-Mt acrescenta “imediatamente se levantou”. A cena demonstra claramente o poder de Jesus sobre a enfermidade humana.
então ela os serviu
            Os três evangelistas sinóticos ressaltam que após ser curada a mulher reassumiu suas atividades domésticas. Há duas razões para se registrar esse pequeno gesto de que ela passou a servir a Jesus e aos demais que estavam na casa. Primeiramente é para realçar que a cura foi um fato consumado e ela ficou plenamente restabelecida, apesar de ter estado por muitos dias em estado febril; a segunda é a forma que ela encontrou para expressar sua gratidão a Jesus pela sua cura. A maioria dos crentes se esquece de que estavam à beira da morte (em seus delitos e pecados), mas Jesus Cristo os curou (salvou); ao viverem apenas para si mesmos eles desmerecem o quanto Jesus fez por eles – então ela os serviu! Na verdade, a maioria de nós se assemelha mais com os nove leprosos que foram cuidar de suas vidas, do que com aquele único que voltou para agradecer a Jesus pelo fato de ter sido curado.
Quando veio a noite, depois do Sol se por, eles começaram a trazer para Ele todos os que estavam enfermos e aqueles que estavam possuídos por demônios. E toda a cidade se reuniu à porta. E Ele curou muitos dos que estavam enfermos com várias doenças, e expulsou muitos demônios; e Ele não permitiu que os demônios falassem, por que eles sabiam quem Ele era.
O sábado era o dia de adoração e descanso dos judeus, que dura do pôr-do-sol de sexta-feira ao pôr-do-sol de sábado. A lei judaica proibia viajar e carregar peso durante o sábado, assim eles esperaram até o pôr-do-sol.[5] Influenciado pelos fariseus (cf. Mt 3.7), o povo passou a considerar que curar no sábado se constituía em uma violação às leis do Shabat (cf. Mt 12.1).
A palavra grega para trazer significa “carregar” e aqui o tempo verbal denota a ideia de que “continuavam trazendo”. Muitos dos enfermos e dos endemoninhados foram literalmente carregados para a casa de Pedro para que Jesus pudesse curá-los. A impressão, pelo tamanho da multidão à porta da casa de Pedro, era que todo o povo da cidade de Cafarnaum havia se aglomerado ali.[6] Eles não faziam qualquer tipo de tumulto, pois pacientemente esperam que Jesus possa lhes atender. E não são decepcionados, pois Jesus cura-os de toda sorte de enfermidade, pois nenhuma doença estava além de seu poder divino curativa. Todavia, curar e exorcizar demônios nunca foram o propósito central do ministério de Jesus e o texto informa que ele curou e exorcizou a muitos e não a todos, de maneira que logo partiria de Cafarnaum, contrariando seus próprios discípulos que desejavam ficar ali e quem sabe construir uma “catedral da fé”; sua missão era pregar o arrependimento, pois o reino dos céus está próximo. O evangelicalismo brasileiro perdeu completamente o objetivo central da mensagem cristã e se contentou com as questões periféricas – arrependei-vos, pois o reino dos céus está próximo!
 Como havia ocorrido na Sinagoga mais uma vez Jesus exerce seu poder sobre os demônios, de maneira que à sua ordem eles saiam imediatamente das pessoas hospedeiras. Mc registra que Jesus ordenava aos demônios para que se calassem, porque o conheciam (cf 1.25). Esse verso é o primeiro de muitos em Marcos (cf. 1:34,43-44; 3:12; 4:11; 5:43; 7:24,36; 8:26,30; 9:9) onde Jesus proíbe os demônios de fazerem declarações sobre ele, bem como ordena expressamente aos seus discípulos e aos que eram curados para que não propagassem os Seus atos de cura. Os estudiosos se referem a esses textos como o “Segredo Messiânico de Marcos”, pois neste momento inicial de seu ministério Jesus não queria chamar atenção para sua Messianidade (Is 61.1). Mas sua compaixão pelos fracos, enfermos e marginalizados, bem como os oprimidos pelo diabo não lhe permitia ficar inerte diante de um quadro tão deprimente – mas seu propósito era a cruz! Pois sabia que somente na cruz ele traria a reconciliação do ser humano pecador com o Deus justo! Hoje vivemos um cristianismo sem a cruz – que se transformou em um evangelicalismo hedonista e mercantilista.
A partir destas curas começa o desgaste de Jesus com os lideres religiosos judaicos, pois não uma, mas duas vezes Jesus realiza milagre em um dia de sábado, que segundo as intepretações mirabolantes e acrescidas do ensino oral da Torá, não era permitido. Desde seus primeiros movimentos Jesus quer deixar claro que sua autoridade vem diretamente de Deus e não do Templo e nem de seus pseudos interpretes da Lei. Na medida em que Jesus vai contestando o status quo deles a temperatura do ódio deles aumenta ao ponto do insuportável – temos que matar esse nazareno ou ele vai acabar destruindo do esquema religioso que levamos séculos para estabelecer.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
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Referências Bibliográficas
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BETTENCOURT, Estevão. Para Entender os Evangelhos.  Rio de Janeiro: Agir, 1960.
BONNET, L. e SCHROEDER, A. Comentario del Nuevo Testamento – evangelios sinópticos. Argentina: Casa Bautista de Publicaciones, 1970.
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GUTHIRIE, Donald. New Testament Introduction. Illinois: Inter-Varsity Press, 1980.
LEAL, João. Os Evangelhos e a Crítica Moderna. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1945.
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MORRIS, Carlos A. (Editor). Comentario bíblico del continente nuevo - Evangelio según San Marcos. Miami, EUA: Editorial UNILIT, 1992.
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UTLEY, Bob. Marcos, I e II Pedro – comentários. Marshall, Texas: 2003. [Série Guia de estudos e Comentário].




[1] Esta palavra haverá de aparecer frequentemente na narrativa marqueana demonstrando que durante seu ministério itinerante Jesus não tinha tempo nem para descansar, pois ele sabia da urgência de sua mensagem e que seu tempo seria muito curto – pouco menos de três anos.
[2] Em decorrência de suas atividades de pesca, Pedro [João] que era de Betsaida (Jo 1.44) tinha uma casa em Cafarnaum que era um centro comercial de pesca. Jesus e os discípulos provavelmente ficavam nesta casa durante suas visitas a Cafarnaum (2.1; 3.20; 9.33; 10.10). O texto também menciona pela primeira vez a presença do triunvirato (Pedro, Tiago e João), que haverão de presenciarem acontecimentos que os demais apóstolos não viram. André está presente nesta ocasião especifica pois o milagre ocorre em sua própria casa.
[3] Isso mostra que Pedro era casado, ainda que sua esposa nunca tenha sido mencionada no NT, seja porque já estivesse morta, mas I Cor. 9:5 há uma inferência de que ela viajava com Pedro.
[4] Também conhecido como Mar da Galileia ou ainda lago de Genesaré.           
[5] De acordo com o Halachá o sábado termina oficialmente quando três estrelas de porte médio se tornam visíveis.
[6] Só Marcos menciona esse detalhe vívido. Ele está vendo pelos olhos de Pedro. Não há dúvida de que Pedro presenciou a cena maravilhosa com prazer e gratidão, enquanto Jesus ficava à porta e curava as grandes multidões na glória daquele pôr-do-sol. Ele deve ter gostado muito ter descrito esta cena (ROBERTSON, 2011, p. 355).

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