A Hipótese dos Dois Documentos ou Duas
Fontes
Esta teoria começou a ser construída pelos trabalhos realizados por
Friedrich Ernst Daniel Schleiermacher (1836) onde ele via um Proto Marcos e uma coleção de ditos de Jesus denominado de Logia. Karl Lachmann (1835) e C. A. Credner (1836) avançam nestes estudos e coube
a Christian Hermann Weise (1838) estabelecer o arcabouço desta teoria das Duas
Fontes. Foi sobre as conclusões de Weise que H.J. Holtzmann (1863) a
estabeleceu como uma teoria sinótica.
Esta proposta tem alcançado larga aceitação nos últimos cem anos,
ainda que com grandes variações, e seus aspectos mais importantes são.
O evangelho segundo Marcos foi de fato o primeiro a ser redigido e posteriormente
utilizado pelos outros dois sinóticos como fonte;
Mateus e Lucas utilizaram‑se também de uma segunda fonte, distinta do
evangelho de Marcos, que continha o registro de ditos de Jesus, denominada de "lógia" e posteriormente de documente
"Q" (Quelle = "fonte" em
alemão).
O primeiro ponto desta hipótese pode ser facilmente
percebido conforme os dados abaixo.
A estrutura dos evangelhos revela que Marcos deve ter servido de modelo
aos dois outros sinóticos.
Mateus e Lucas divergem em suas narrativas iniciais, mas
coincidem depois, no relato sobre João Batista, que é o ponto
de partida de Marcos. Repete‑se a mesma coisa no final, aonde as
semelhanças entre Mateus e Lucas vão até o ponto a que conduz Marcos 16.8, e depois cada um toma seu
próprio caminho narrativo. Deduz‑se disto, que o Evangelho de Marcos lhes
serviu como uma fonte referencial.
Nas sequências das perícopes temos mais um reforço da primazia de
Marcos. Quando Mateus abandona a ordem de Marcos, Lucas a utiliza; quando Lucas
diverge de Marcos, é Mateus quem segue o mesmo caminho. E o mais importante é
que Mateus e Lucas, em momento algum, concordam com sequência diferente da que
propõem Marcos.
Outro argumento muito forte é o fato de quase a totalidade do material de Marcos estar contido em
Mateus [ dos 661 vv. de Mc, 606 vv. (92%) se acham em Mt]; em Lucas
encontraremos aproximadamente 350 vv. de Marcos [53%].
Em muitas ocasiões o registro de Marcos e ampliado ou explicado pelos
outros dois evangelistas Mc 8.29 – Mt 16.16 – Lc 9.20 ‑ aqui caracterizando um acréscimo ou comentário; Mc 15.39 – Mt 27.54 – Lc 23.47 ‑ enquanto Mateus altera por causa de reflexões teológicas [evitando
chamar Jesus de "homem"], Lucas procura descrever a situação com
maior exatidão do ponto de vista histórico [pois dificilmente um gentio poderia
dar de imediato um testemunho cristão completo].
O segundo ponto desta hipótese procura explicar o fato
de que Mateus e Lucas compartilham aproximadamente uns 200 vv.,
que não são encontrados em
Marcos, e que contém quase sem exceção palavras de Jesus. Esta segunda fonte é
denominada de "Lógia" ou fonte “Q”.
Foi o alemão Friedrich Schleiermacher em 1832, que
interpretando uma declaração enigmática de um dos primeiros escritores
cristãos, Papias de Hierápolis (125 d.C.): "Mateus
compilou os oráculos (em grego: logia) do Senhor de uma forma hebraica de
expressão". Mais do que a interpretação tradicional que Papias
estava se referindo à escrita de Mateus em hebraico, Schleiermacher acreditavam
que Papias estava realmente dando testemunho de uma coleção de ditos que de
alguma forma esteve disponível para os Evangelistas (Mt e Lc). O termo "lógia", oráculos [de
Deus], se refere mais a uma coleção de narrativas, declarações e ensinos, tais como aqueles apropriados pelos dois evangelistas.
Esta fonte Q seria o material comum de Mt e Lc do qual Marcos não fez uso em sua narrativa
primária.
Um dos maiores críticos e céticos com relação à teoria da fonte Q tem sido Mark Goodacre, um professor neotestamentário
da Universidade de Duke, Carolina do Norte. Segundo ele a omissão do que deveria ter sido
um documento cristão altamente precioso, de todas as referências da Igreja
primitiva, e que não é mencionado ou citado por parte dos padres da Igreja antiga,
parece ser algo estranho para a moderna erudição bíblica. Os defensores da existência
desta fonte Q replicam que no transcorrer do processo de canonização,
iniciado no segundo século, não se fizeram cópias da fonte Q, pois seu
conteúdo já estava inserido nas narrativas evangélicas canônicas de Mateus e
Lucas, onde as palavras de Jesus extraídas da fonte Q haviam
sido ajustadas para evitar mal entendidos ou interpretações equivocadas, de
modo que se pudesse compreender sem qualquer dúvida o que realmente Jesus
queria expressar ou ensinar. Abaixo transcrevemos um quadro que indica o possível escopo
desta fonte "Q".[1]
Mateus
|
Conteúdo
|
Lucas
|
3.7b‑12
|
Pregação
de João Batista
|
3.7‑9,16-17
|
4.2‑11a
|
As Tentações
|
4.2‑13a
|
5.3‑6,11,12,39‑42,45‑58
|
Sermão
da Montanha I
|
6.20‑23,27,30,32‑36
|
5.15;
6.22,23
|
Luz
|
11.33‑35
|
6.9‑13
|
A
Oração do Pai Nosso
|
11.1‑4
|
6.25‑33,
19‑21
|
Ansiedade Bens Materiais
|
12.22‑34
|
7.1‑5,16‑21,24‑27
|
Sermão
da Montanha II
|
6.37,38,41‑49
|
7.7‑11
|
Acerca da Oração
|
11.9‑13
|
9. 8.5‑13
|
O Centurião
de Cafarnaum
|
7.1‑10
|
8.19‑22
|
Natureza do Discipulado
|
9.57‑60
|
9.37‑10.11
|
Envio
dos Setenta
|
10.1‑12
|
10.26‑33
|
Exortação à Confissão
|
12.2‑10
|
11.2‑19
|
A
Pergunta de João
|
7.18‑35
|
11.21,23,25,26
|
Gritos de Ais e Alegria
|
10.13‑15,21,22
|
12.22‑30
|
Beelzebu
|
11.14‑23
|
12.38‑42
|
Recusa de Dar Sinais
|
11.29‑32
|
12.43‑45
|
Retomo
de Demônios
|
11.24‑26
|
13.31‑33
|
Mostarda e Fermento
|
13.18‑21
|
23.4,23‑25,29‑36
|
Contra
os Fariseus
|
11.39‑52
|
23.37,38
|
Lamentação sobre Jerusalém
|
13.34,35
|
24.26‑28,37‑41
|
O Tempo
do Fim
|
17.22‑37
|
24.43‑51
|
Vigilância
|
12.39‑46
|
23.14‑30
|
Parábola
dos Talentos
|
19.11‑28
|
Essa Teoria de Dois Documentos é a solução mais fácil e
mais simples para o problema dos Sinóticos, pois ela fala em termos de documentos
"escritos". Todavia, há
algumas questões que ela não responde satisfatoriamente:
Dos 1.068 versículos de Mateus, talvez
cerca de 500 vieram
de Marcos e em torno de 250 da
"Q"; isto deixa cerca de 300
vv. não explicados.
Em Lucas, com a mesma lógica, restam cerca de 580 vv. que não são encontrados nem em Marcos nem na "Q".
Numa tentativa de se explicar estes pontos alguns argumentam que a fonte
"Q" foi um documento muito maior que aqueles versículos
encontrados em Mateus e Lucas, e que os autores, além de usar os versículos
partilhados, escolheram os versículos peculiares ao seu Evangelho, dentre o
restante deste documento. Mas
esta explicação tem muito pouca aceitação nos dias atuais. A razão
é que tal argumentação acaba por criar um documento desajeitado, e o
vocabulário e a gramática do material não partilhado é diferente para proporem
uma mesma origem.
Outra dificuldade em
relação ao documento "Q" é que aqueles estudiosos que tentam
reconstituir positivamente as notas características da fonte "Q"
não concordam entre si, o que demonstra sua fragilidade. Diversas são estas
diferenças entre os críticos:
Em que época este documento "Q" foi elaborado (antes da
morte de Jesus? Por volta do ano 50. de 60?).
Em que língua original foi escrita (aramaico ou grego?).
Quem foi seu autor (Mateus, um anônimo?)
Em que se fundamenta sua fidelidade histórica?
Qual era de fato seu conteúdo total (apenas sermões de Jesus ou também
algumas narrativas?)
Diante de tantas questões e principalmente pelo fato de não haver
nenhuma cópia deste documento "Q" torna‑se muito difícil
coloca‑lo como um fato real, deixando‑o apenas como uma possível hipótese para
se explicar esta questão dos Evangelhos Sinóticos.
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http.//historiologiaprotestante.blogspot.com.br/
Artigos
Relacionados
Evangelhos. A Questão Sinótica - Uma Introdução
Evangelhos: A Questão Sinótica – As semelhanças
Evangelhos: A Questão Sinótica – As diferenças
Evangelhos: A Questão Sinótica – Propostas de Solução
(1ª parte)
Evangelho. Gênero Literário
NT – Pôncio Pilatos
NT – Páscoa. O Julgamento de Jesus
A Ordem dos Livros do Novo Testamento
Evangelho. Os Herodes no Segundo Testamento
Contexto Histórico dos Evangelhos
Referências Bibliográficas
BETTENCORT,
Estevão. Para Entender os Evangelhos. Rio de Janeiro.
Livraria Agir Editora, 1960.
BITTENCOURT,
B. P. A Forma dos Evangelhos e a Problemática dos
Sinóticos. São Paulo. Impressa Metodista, 1969.
BORNKAMM,
Gunther. Bíblia – Novo Testamento.
São Paulo: Editora Teológica e Paulus, 3ª ed., 2003.
BRUCE, F. F. Merece Confiança o Novo
Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, 1965.
CARSON, D. A., MOO, Douglas
J. e MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo.
Vida Nova, 1997.
DOUGLAS, J. D. O
Novo Dicionário da Bíblia. São Paulo. Vida Nova, 1995.
EDWARDS, Richard A. A Theology of Q: Eschatology, Prophecy, and Wisdom. Philadelphia,
PA: Fortress Press, 1976.
HALE,
Broadus David. Introdução
ao estudo do Novo Testamento. Rio de Janeiro. JUERP, 1983.
HORSTER,
Gerhard. Introdução e Síntese do
Novo Testamento. São Paulo: Editora Evangélica Esperança, 1996.
MACK, Burton L. Mack. The Lost Gospel: The Book of Q &
Christian Origins. San Francisco, CA: HarperCollins, 1993.
MILLER, Robert J. (ed). The Complete Gospels: Annotated Scholars
Version. Sonoma, CA: Polebridge Press, 1992.
MIRANDA, O. A., Estudos
Introdutórios dos Evangelhos Sinóticos, São Paulo. Cultura Cristã,
1989.
RUSSELL, N. C. ‑ O
Novo Testamento Interpretado, ed. 5ª, v. 1. São Paulo. Milenium, 1985.
SHREINER, J & DAUTZENBERG G. Forma e Exigências do Novo Testamento. 2ª
ed. São Paulo: Editora Teológica, 2004.
SICRE, José
Luis. Introdução aos Evangelhos -
Um encontro fascinante com Jesus, v.1. São Paulo: Editora Paulinas, 2004.
STEIN, R. H. The Synoptic Problem. an introduction.
Michigan. Baker Book House, 1989.
TENNEY,
Merrill C. O Novo
Testamento – Sua Origem e Análise. São Paulo: Shedd Publicações, 2007. (Edições
Vida Nova, 1972).
WALTERS, Patricia. “The Synoptic Problem”. In. AUNE, David
E. The Blackwell Companion to the New Testament. Malden, MA. Blackwell
Publishing, 2010.
VERBIN, John S. Kloppenborg.
Excavating Q: The History and Setting of
the Sayings Gospel. Minneapolis, MN: Fortress Press 2000.
[1] Na verdade não existe uma tabela
completa, pois todos os defensores desta hipótese da Fonte Q não são unanimes
na inclusão ou exclusão do material que a comporia. Uma mais breve como a que
citamos pode ser encontrada em The Synoptic Gospels: Structural
Outlines and Unique Materials by
Felix Just, S.J., Ph.D; e no site early christian writings (The Lost Sayings Gospel Q) encontra-se
vários propostas de Fonte Q elaboradas por diversos estudiosos contemporâneos e
que podem ser comparadas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário