quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Evangelhos: A Questão Sinótica – Propostas de Solução (2ª parte)


A Hipótese dos Dois Documentos ou Duas Fontes
Esta teoria começou a ser construída pelos trabalhos realizados por Friedrich Ernst Daniel Schleiermacher (1836) onde ele via um Proto Marcos e uma coleção de ditos de Jesus denominado de Logia. Karl Lachmann (1835) e C. A. Credner (1836) avançam nestes estudos e coube a Christian Hermann Weise (1838) estabelecer o arcabouço desta teoria das Duas Fontes. Foi sobre as conclusões de Weise que H.J. Holtzmann (1863) a estabeleceu como uma teoria sinótica.
Esta proposta tem alcançado larga aceitação nos últimos cem anos, ainda que com grandes variações, e seus aspectos mais importantes são.
O evangelho segundo Marcos foi de fato o primeiro a ser redigido e posteriormente utilizado pelos outros dois sinóticos como fonte;
Mateus Lucas utilizaram‑se também de uma segunda fonte, distinta do evangelho de Marcos, que continha o registro de ditos de Jesus, denominada de "lógia" e posteriormente de documente "Q" (Quelle = "fonte" em alemão).
primeiro ponto desta hipótese pode ser facilmente percebido conforme os dados abaixo.
A estrutura dos evangelhos revela que Marcos deve ter servido de modelo aos dois outros sinóticos.
Mateus e Lucas divergem em suas narrativas iniciais, mas coincidem depois, no relato sobre João Batista, que é o ponto de partida de Marcos. Repete‑se a mesma coisa no final, aonde as semelhanças entre Mateus e Lucas vão até o ponto a que conduz Marcos 16.8, e depois cada um toma seu próprio caminho narrativo. Deduz‑se disto, que o Evangelho de Marcos lhes serviu como uma fonte referencial.
Nas sequências das perícopes temos mais um reforço da primazia de Marcos. Quando Mateus abandona a ordem de Marcos, Lucas a utiliza; quando Lucas diverge de Marcos, é Mateus quem segue o mesmo caminho. E o mais importante é que Mateus e Lucas, em momento algum, concordam com sequência diferente da que propõem Marcos.
Outro argumento muito forte é o fato de quase a totalidade do material de Marcos estar contido em Mateus [ dos 661 vv. de Mc, 606 vv. (92%) se acham em Mt]; em Lucas encontraremos aproximadamente 350 vv. de Marcos [53%].
Em muitas ocasiões o registro de Marcos e ampliado ou explicado pelos outros dois evangelistas     Mc 8.29 – Mt 16.16 – Lc 9.20 ‑ aqui caracterizando um acréscimo ou comentário; Mc 15.39 – Mt 27.54 – Lc 23.47 ‑ enquanto Mateus altera por causa de reflexões teológicas [evitando chamar Jesus de "homem"], Lucas procura descrever a situação com maior exatidão do ponto de vista histórico [pois dificilmente um gentio poderia dar de imediato um testemunho cristão completo].
segundo ponto desta hipótese procura explicar o fato de que Mateus e Lucas compartilham aproximadamente uns 200 vv., que não são encontrados em Marcos, e que contém quase sem exceção palavras de Jesus. Esta segunda fonte é denominada de "Lógia" ou fonte “Q”.
Foi o alemão Friedrich Schleiermacher em 1832, que interpretando uma declaração enigmática de um dos primeiros escritores cristãos, Papias de Hierápolis (125 d.C.): "Mateus compilou os oráculos (em grego: logia) do Senhor de uma forma hebraica de expressão". Mais do que a interpretação tradicional que Papias estava se referindo à escrita de Mateus em hebraico, Schleiermacher acreditavam que Papias estava realmente dando testemunho de uma coleção de ditos que de alguma forma esteve disponível para os Evangelistas (Mt e Lc). O termo "lógia", oráculos [de Deus], se refere mais a uma coleção de narrativas, declarações e ensinos, tais como aqueles apropriados pelos dois evangelistas. Esta fonte Q seria o material comum de Mt e Lc do qual Marcos não fez uso em sua narrativa primária.
Um dos maiores críticos e céticos com relação à teoria da fonte Q tem sido Mark Goodacre, um professor neotestamentário da Universidade de Duke, Carolina do Norte. Segundo ele a omissão do que deveria ter sido um documento cristão altamente precioso, de todas as referências da Igreja primitiva, e que não é mencionado ou citado por parte dos padres da Igreja antiga, parece ser algo estranho para a moderna erudição bíblica. Os defensores da existência desta fonte Q replicam que no transcorrer do processo de canonização, iniciado no segundo século, não se fizeram cópias da fonte Q, pois seu conteúdo já estava inserido nas narrativas evangélicas canônicas de Mateus e Lucas, onde as palavras de Jesus extraídas da fonte Q haviam sido ajustadas para evitar mal entendidos ou interpretações equivocadas, de modo que se pudesse compreender sem qualquer dúvida o que realmente Jesus queria expressar ou ensinar. Abaixo transcrevemos um quadro que indica o possível escopo desta fonte "Q".[1]
Mateus                                            
Conteúdo
Lucas                                            
3.7b‑12                          
Pregação de João Batista
3.7‑9,16-17
4.2‑11a
As Tentações
4.2‑13a
5.3‑6,11,12,39‑42,45‑58
Sermão da Montanha I
6.20‑23,27,30,32‑36
5.15; 6.22,23
Luz
11.33‑35
6.9‑13
A Oração do Pai Nosso
11.1‑4
6.25‑33, 19‑21
Ansiedade Bens Materiais
12.22‑34
7.1‑5,16‑21,24‑27
Sermão da Montanha II
6.37,38,41‑49
7.7‑11
Acerca da Oração
11.9‑13
9. 8.5‑13
O Centurião de Cafarnaum
7.1‑10
8.19‑22
Natureza do Discipulado
9.57‑60
9.37‑10.11
Envio dos Setenta
10.1‑12
10.26‑33
Exortação à Confissão
12.2‑10
11.2‑19
A Pergunta de João
7.18‑35
11.21,23,25,26
Gritos de Ais e Alegria
10.13‑15,21,22
12.22‑30
Beelzebu
11.14‑23
12.38‑42
Recusa de Dar Sinais
11.29‑32
12.43‑45
Retomo de Demônios
11.24‑26
13.31‑33
Mostarda e Fermento
13.18‑21
23.4,23‑25,29‑36
Contra os Fariseus
11.39‑52
23.37,38
Lamentação sobre Jerusalém
13.34,35
24.26‑28,37‑41
O Tempo do Fim
17.22‑37
24.43‑51
Vigilância
12.39‑46
23.14‑30
Parábola dos Talentos 
19.11‑28
Essa Teoria de Dois Documentos é a solução mais fácil e mais simples para o problema dos Sinóticos, pois ela fala em termos de documentos "escritos". Todavia, há algumas questões que ela não responde satisfatoriamente:
Dos 1.068 versículos de Mateus, talvez cerca de 500 vieram de Marcos e em torno de 250 da "Q"; isto deixa cerca de 300 vv. não explicados.
Em Lucas, com a mesma lógica, restam cerca de 580 vv. que não são encontrados nem em Marcos nem na "Q".
Numa tentativa de se explicar estes pontos alguns argumentam que a fonte "Q" foi um documento muito maior que aqueles versículos encontrados em Mateus e Lucas, e que os autores, além de usar os versículos partilhados, escolheram os versículos peculiares ao seu Evangelho, dentre o restante deste documento. Mas esta explicação tem muito pouca aceitação nos dias atuais. A razão é que tal argumentação acaba por criar um documento desajeitado, e o vocabulário e a gramática do material não partilhado é diferente para proporem uma mesma origem.
Outra dificuldade em relação ao documento "Q" é que aqueles estudiosos que tentam reconstituir positivamente as notas características da fonte "Q" não concordam entre si, o que demonstra sua fragilidade. Diversas são estas diferenças entre os críticos:
Em que época este documento "Q" foi elaborado (antes da morte de Jesus? Por volta do ano 50. de 60?).
Em que língua original foi escrita (aramaico ou grego?).
Quem foi seu autor (Mateus, um anônimo?)
Em que se fundamenta sua fidelidade histórica?
Qual era de fato seu conteúdo total (apenas sermões de Jesus ou também algumas narrativas?)
Diante de tantas questões e principalmente pelo fato de não haver nenhuma cópia deste documento "Q" torna‑se muito difícil coloca‑lo como um fato real, deixando‑o apenas como uma possível hipótese para se explicar esta questão dos Evangelhos Sinóticos.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http.//historiologiaprotestante.blogspot.com.br/


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Referências Bibliográficas
BETTENCORT, Estevão.  Para Entender os Evangelhos. Rio de Janeiro. Livraria Agir Editora, 1960.
BITTENCOURT, B. P. A Forma dos Evangelhos e a Problemática dos Sinóticos. São Paulo. Impressa Metodista, 1969.
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CARSON, D. A., MOO, Douglas J. e MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo. Vida Nova, 1997.
DOUGLAS, J. D. O Novo Dicionário da Bíblia. São Paulo. Vida Nova, 1995.
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HORSTER, Gerhard. Introdução e Síntese do Novo Testamento. São Paulo: Editora Evangélica Esperança, 1996.
MACK, Burton L. Mack. The Lost Gospel: The Book of Q & Christian Origins. San Francisco, CA: HarperCollins, 1993.
MILLER, Robert J. (ed). The Complete Gospels: Annotated Scholars Version. Sonoma, CA: Polebridge Press, 1992.
MIRANDA, O. A., Estudos Introdutórios dos Evangelhos Sinóticos, São Paulo. Cultura Cristã, 1989.
RUSSELL, N. C. ‑ O Novo Testamento Interpretado, ed. 5ª, v. 1. São Paulo. Milenium, 1985.
SHREINER, J & DAUTZENBERG G. Forma e Exigências do Novo Testamento. 2ª ed. São Paulo: Editora Teológica, 2004.
SICRE, José Luis. Introdução aos Evangelhos - Um encontro fascinante com Jesus, v.1. São Paulo: Editora Paulinas, 2004.
STEIN, R. H. The Synoptic Problem. an introduction. Michigan. Baker Book House, 1989.
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VERBIN, John S. Kloppenborg. Excavating Q: The History and Setting of the Sayings Gospel. Minneapolis, MN: Fortress Press 2000.




[1] Na verdade não existe uma tabela completa, pois todos os defensores desta hipótese da Fonte Q não são unanimes na inclusão ou exclusão do material que a comporia. Uma mais breve como a que citamos pode ser encontrada em The Synoptic Gospels: Structural Outlines and Unique Materials by Felix Just, S.J., Ph.D; e no site early christian writings (The Lost Sayings Gospel Q) encontra-se vários propostas de Fonte Q elaboradas por diversos estudiosos contemporâneos e que podem ser comparadas.

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