quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

PÁSCOA: Discípulos de Emaús - da Decepção para a Alegria (Lucas 24.13-35)



            O professor Jean Guitton, em seu comentário da narrativa evangélica escrita por Lucas, chegando nesta passagem disse: “Se tivesse que dar todo o Evangelho por uma única cena na qual estivesse todo ele resumido, eu dificilmente duvidaria, escolheria a cena dos discípulos de Emaús.
As palavras deste distinto professor, expressa de maneira extraordinária a riqueza teológica deste texto evangélico que narra o encontro do Jesus Ressuscitado com dois de seus discípulos, que voltavam para seu vilarejo chamado Emaús.
Nessa série que iniciamos vamos poder acompanhar esses dois discípulos e percebendo as diversas etapas que demarcam sua jornada; haveremos de aprender com eles o real significado da vida cristã; os percalços do inicio de sua caminhada se contrasta como o resultado final desta jornada – da triste para alegria; da frustração e decepção para a viva convicção e esperança! Esse é o caráter paradoxal da jornada da fé de todo cristão genuíno.
Inicio do Retorno
            Enquanto nos primeiros raios de sol, sem que a escuridão da noite tenha se dissipado completamente, as mulheres se preparam e saem em direção ao túmulo para oferecerem suas últimas homenagens ao Mestre Amado, cujo corpo tinha sido tirado às pressas da cruz (nos últimos minutos antes de se iniciar o Sábado, onde nada poderia ser feito) e depositado em um sepulcro emprestado.
            Nesse exato momento dois discípulos também haviam acordado (se é que conseguiram dormir) e se preparam para sair de Jerusalém e retornarem para suas casas na vila de Emaús. Toda esperança da libertação de Israel que havia acalentado seus corações e os tinha entusiasmado durante o tempo que conviveram com Jesus foram sepultadas com Jesus no túmulo; lentamente eles atravessam os portões de Jerusalém, ainda ouvindo o ressoar dos gritos de Hosana, Hosana que a multidão entoou quando Jesus entrara na cidade no domingo anterior; a cada passo se distanciam da cidade, pois só lhes resta retomarem suas vidas e suas famílias.
            Mas seu "êxodo" às avessas torna-se, paradoxalmente, uma verdadeira "páscoa". O encontro com o Jesus ressuscitado vai operar em Cléopas e em seu companheiro uma experiência profunda e transformadora: da cegueira para a iluminação, do afastamento para a aproximação, da ruptura para a comunhão, do coração frio e vazio para o coração ardente e transbordante. Essa mesma experiência transformadora se realizará em nós com certeza absoluta quando nos deixamos acompanhar por Jesus e por Suas palavras que aquecera o coração e a alma – por mais abatidos ou decepcionados que possamos nos sentir.
O Texto Narrativo
            Tanto do ponto de vista literário como do ponto de vista teológico, o relato da aparição de Jesus aos discípulos de Emaús é um dos mais belos e ricos de todos os relatos evangélicos sobre as aparições de Jesus após sua Ressurreição. Podemos levantar uma perguntar: por que o evangelista dá tanta importância à aparição do Senhor a dois discípulos desconhecidos e dos quais não voltará a falar no livro de Atos?
Uma boa resposta em concordância com a proposta narrativa de Lucas é que a experiência desses dois discípulos é a experiência de todos os demais discípulos em todo o tempo e lugar. Fortalece essa nossa resposta pelo simples fato de que o companheiro de Cléopas por ser um discípulo anônimo (ficamos sem saber seu nome) facilita a identificação do leitor com eles (pois este companheiro desconhecido – poderia ser EU ou VOCÊ ou cada UM de NÓS).
O Evangelista Lucas narra a "história" de tal maneira que a atenção e a tensão do leitor, despertadas no início, são mantidas, num crescendo contínuo, até o fim. Desde o início do relato (v. 15), o leitor sabe que o peregrino que se aproxima dos dois discípulos é Jesus; para eles, porém, é apenas mais um viajante desconhecido (v. 16), que só será reconhecido no fim do relato (v. 31).
Deste modo, Lucas acaba por conduzir também o leitor (eu-você) a vivenciar, com os dois discípulos, a experiência do encontro e do diálogo com o Senhor ao longo do caminho e a experiência do seu reconhecimento no fim do caminho.
Um dos recursos narrativos utilizado pelo evangelista para dramatizar o relato é o dos contrastes de situações em que se encontram os protagonistas no início e no fim. O reconhecimento de Jesus, por parte dos dois discípulos, que é esperado desde o início da narrativa (v. 16), mas que somente acontece no fim (v. 31), será a causa ou razão de uma verdadeira reviravolta na mente, no coração e no restante da vida daqueles dois discípulos:           a situação em que se encontram no fim (vv. 31-33.35) está no extremo oposto da que é descrita no início (vv. 13-16).
Desta forma, na medida em que o leitor torna-se participante da experiência daqueles dois discípulos, também poderá dizer, no fim, que seu coração ardia quando ouvia a explicação das Escrituras feita por Jesus ao longo do caminho (v. 32). Na mesma proporção em que o leitor se identifica, com os dois discípulos ao longo da leitura e estudo do texto, poderá se sentir coparticipante desta mesma jornada percorrida pelos dois discípulos de Emaús.
Aspectos Teológicos
Nesta narrativa da aparição de Jesus Ressuscitado aos discípulos de Emaús temos os três momentos ou etapas que são necessários (podemos dizer indispensáveis) para que alguém se torne de fato e de verdade um verdadeiramente discípulo:
1º) o diálogo no caminho de Jerusalém até Emaús, ao longo do qual o viajante (Jesus) ainda desconhecido explica aos discípulos as Escrituras, fazendo com que superem o escândalo da cruz - o conteúdo dessa primeira etapa pode ser visto como uma longa aula sobre o mistério pascal (paixão/morte/ressurreição) de Jesus (vv. 13-27);
2º) o segundo momento, no qual o relato atinge seu ápice/clímax, é o do reconhecimento de Jesus pelos dois discípulos em Emaús, na hora de partir e repartir o pão (vv. 29-32);
3º) a terceira etapa é a do retorno dos discípulos para Jerusalém, "na mesma hora", e a do anúncio da Ressurreição do Senhor; que ao se encontrarem com os Onze e seus companheiros   "os evangelizadores foram, por sua vez, evangelizados por seus companheiros”, que lhes disseram: "Verdadeiramente o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão!" (vv. 33-35).
Já enfatizei a importância e a riqueza teológica do recurso literário das oposições e contrastes entre o início e o fim do relato. Elas demonstram a conversão/transformação radical operada nos discípulos pelo encontro pessoal com o Senhor Jesus e revelam também as características paradoxais da Fé Salvadora. Nos próximos textos destacaremos e estudaremos cuidadosamente as cenas em que aparecem esses contrastes e paradoxos; agora, porém, importa apreciarmos todo sabor deste banquete teológico.
O relato começa com o afastamento dos dois discípulos de Jerusalém e do grupo dos Onze (v. 13) e termina com o retorno para Jerusalém, onde estão "reunidos os Onze e seus companheiros" (vv. 33-35). No início, Jesus toma a iniciativa de aproximar-se dos discípulos (v. 15) e de dialogar com eles (v. 17), mas só é reconhecido no fim (v. 31); e logo depois de dar-se a conhecer, deixa de ser visto por eles (v. 31).
No inicio do caminho seus passos são lentos e pesados com a carga extra de decepção e da falta de esperança que oprime seus corações; seus rostos estão tristes e sombrios (v. 17); por esta razão seus olhos estão cegados de maneira que ficam temporariamente "impedidos de reconhecê-lo" (v. 16). Quando tiveram “seus olhos abertos” então “o reconheceram” (v. 31); eles se recordam de como seus corações ardiam no caminho, quando lhes explicava as Escrituras (v. 32), então "na mesma hora", no meio da noite, voltam correndo para Jerusalém, com o coração em brasas e a mente iluminada,       para restaurar a comunhão e partilhar com os companheiros o que VIRAM, OUVIRAM E SENTIRAM no encontro com o Senhor.
O caminho dos dois discípulos se constitui na verdadeira "páscoa", isto é, uma passagem de uma situação de incredulidade, para uma fé convicta; do lamento para a alegria incontida; da frustração para uma viva esperança! De um coração vazio e endurecido pelos acontecimentos trágicos, para um coração transbordante e fecundado de boas novas de alegria!
A Finalidade da Narrativa
Lucas tem como propósito primário responder algumas perguntas que os seus leitores estavam fazendo, visto que sua narrativa começa a circular uns vinte anos depois destes acontecimentos: Por que o Jesus ressuscitado, não se manifesta? Por que nossos olhos são incapazes de vê-lo? Por que nossos corações são tão lentos para crer? E com estes acontecimentos de Emaús - Lucas oferece algumas respostas a estas questões levantadas:
- Para ver e reconhecer o Senhor Jesus Ressurreto, é necessário ouvir continuamente o testemunho das Escrituras;
- Não basta, porém, ouvir. Para compreendermos as Escrituras, é necessário que elas nos sejam explicadas pelo próprio Jesus, agora ressuscitado (por meio do Espírito Santo);
- E à luz dessa explicação do mistério de sua morte e ressurreição, os discípulos compreendem que o mistério pascal de Jesus se relaciona diretamente com a eles;
- Reconhecendo que Jesus, o crucificado, ressuscitou, fazem também eles da Fé, a experiência do encontro com aquele que Venceu a Morte por eles.
            O relato dos discípulos de Emaús revela-nos ainda que: o conhecimento de Jesus Cristo, a comunhão, companheirismo e amizade com ele, o fazer parte da comunidade dos discípulos e o testemunho de sua ressurreição são progressivos.
            Para Conhecer o Senhor é necessário caminhar (sempre a ideia de vivência) com Ele; escutar atentamente e continuamente Sua palavra; sentar-se à Mesa com Ele e deixar que Ele parta e reparta o Pão da Vida.
            Mas não se pode estacionar aqui, ainda que seja desejável estar somente com Jesus (Monte da Transfiguração) é preciso como os dois discípulos de Emaús compartilhar as boas novas com os demais e juntos professar a fé comum: “Verdadeiramente o Senhor Ressuscitou”.  
            Esse caminho único e inevitável, estreito, espinhoso e pedregoso da incredulidade para a fé tem que ser percorrido em sua integridade, sem atalhos ou facilidades (talvez essa seja a grande ilusão dessa geração hedonista). O Caminhar de cada um trás suas características peculiares (não há conversão igual) e são essas características que constrói nossa relação pessoal com Jesus e a perenidade e profundidade dessa convivência com Ele.

           
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Referências Bibliográficas
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