sábado, 16 de fevereiro de 2019

PASCOA – O Abandonado que nunca Abandonou (Mc 14.50-52)



            As narrativas referentes aos eventos da paixão (páscoa) são compartilhadas pelos quatro evangelistas e cada um deles destacam tais acontecimentos de maneira que ao lê-los conjuntamente temos um quadro riquíssimo em detalhes e peculiaridades.
            Outra característica e que todos eles ocupam mais páginas sobre esses últimos acontecimentos do que com outros momentos do ministério de Jesus. Por exemplo, o evangelista Marcos não trás uma única informação sobre o nascimento (natividade) de Jesus, iniciando sua narrativa a partir da pregação de João Batista e em seguida o batismo de Jesus que demarca o inicio do ministério terreno de Jesus. Mas mesmo Mateus e Lucas que relatam sobre o nascimento e infância o fazem de forma extremamente sucinta, enquanto João inicialmente relaciona Jesus à Criação e praticamente metade de sua narrativa refere-se à última semana de Jesus.      Assim, podemos claramente perceber que as narrativas sobre a paixão são de grande relevância para os quatro evangelistas.
            A sequência da prisão de Jesus é um dos acontecimentos tratados pelos quatro evangelistas. No caso específico de Marcos desde quando Jesus inicia sua última subida à Jerusalém eles são preparados para esses últimos acontecimentos culminando com sua prisão e morte (Mc 8.31; 9.31 e 10.33). Para os leitores posteriores desta narrativa isso era muito importante, visto que grande parte dos cristãos desde o inicio sofrem intensa perseguição, prisão e morte, primeira por parte das autoridades judaicas e depois pelo Império Romano – tomar conhecimento de que seu Salvador foi perseguido, preso e morto por seus algozes lhes trazia conforto e consolo em seus próprios sofrimentos.
            Como é característica de seu estilo narrativo Marcos é econômico nas palavras, mas rico nas imagens e ações de maneira que reproduz toda tensão que permeia esses últimos momentos de Jesus. Em apenas oito frases interligadas apenas pelas simples conjunções “e” (kai) e “mas” (dè) que expressam ações continuadas e adversativas, pois seu objetivo é revelar o contraste existente entre as varias ações aqui narradas. As sequências de ações desta perícope são: o sinal combinado de Judas com aqueles que deveriam prender Jesus (o beijo); a prisão, o gesto abrupto da espada e a fuga do jovem desnudado.[1]
            Até esse momento, mesmo atemorizados ou sem a plena compreensão do que esta por vir (dormem enquanto Jesus ora no Getsemâni), os discípulos permanecem próximos a Jesus. Mas o seu aprisionamento, abrupto para eles, porém não para Jesus que tinha consciência dos movimentos traiçoeiros de Judas Iscariotes e que antes que ele e a turba do Sinédrio, armados com paus e espadas e em grande número,[2] chegassem Jesus já estava preparado: “o meu traidor está chegando”... “Levantai-vos! Vamos!” (Mc 14.42); aqui temos um terrível divisor de águas entre os discípulos e Jesus – o abandono!
            A narrativa que se abre com a traição conclui-se com o abandono – “Então, abandonando-o, fugiram todos” (Mc 14.50). O evangelista é taxativo em afirmar que TODOS, sem exceção – abandonaram Jesus na hora derradeira. O evangelista e nós sabemos que Pedro e João ainda permaneceram seguindo-o, porém de longe. Mas em sua narrativa Marcos quer deixar claro que Jesus foi abandonado por todos seus discípulos – é na completa solidão que Jesus irá caminhar em direção à cruz.
            O evangelista na utilização de dois termos “abandonar” e “fugir” enfatiza a fuga dos discípulos. Aqui temos um contraste irônico: os mesmos discípulos que “abandonaram” – trabalho, família e tudo (Mc 1.18, 20 e 10.28) para seguirem a Jesus – agora são os mesmos que o abandonam. Eles tiveram a coragem inicial de abandonarem tudo, mas não conseguiram abandonar a si mesmos, tomados de medo por suas próprias vidas “fugiram” – os dois termos fazem o contraste do seguimento. Temos um hino antigo que revela bem esse quadro: “Quantos, que corriam bem, de Ti longe agora vão!” A contradição daqueles primeiros discípulos é o reflexo da nossa própria contradição – entre o que professamos e o que realmente fazemos. O apóstolo Paulo vivenciou esse contraditório em sua própria vida – as coisas boas e certas eu não faço, mas as coisas ruins e erradas eu faço – miserável homem que sou!
            Na continuidade da leitura da narrativa de Marcos e demais evangelistas, descobrimos que esta contradição somente será resolvida pela graça de Jesus, que mesmo tendo sido abandonado JAMAIS abandou seus discípulos – ao abandono Ele responde com um NOVO chamado. Ele já havia predito esse reencontro algumas horas antes: “Todos vós vos escandalizareis, porque está escrito: Ferirei o pastor e as ovelhas se dispersarão.” MAS, depois que eu ressurgir, eu vos precederei na Galileia” (Mc 14.27-28).”
            Essas palavras de Jesus revelam não apenas uma predição, mas também uma promessa – esse afastamento não era definitivo – todos os discípulos o abandonaram, mas Jesus jamais os abandonou. É com base em sua própria fidelidade e não das deles que se encontra a certeza absoluta de um reencontro permanente e definitivo – “Estarei com vocês todos os dias”.
            Mas agora é tempo de abandono, já manifestado no fato de que enquanto Jesus ora intensamente, eles dormem – e agora diante da prisão, eles fogem amedrontados. Mas tudo isso acontece por uma única razão: “para que as Escrituras se cumpram” (Mc 14.49). Nada do que está acontecendo é coincidência ou casualidade; tudo e cada detalhe complexo ou simples envolvendo os acontecimentos da Paixão estão dentro da moldura da vontade soberana de Deus, que é na verdade o grande protagonista dessa História. Entre as Escrituras antigas e os fatos evangélicos não existem contradições ou rupturas; a Cruz foi e continua sendo o ponto de convergência de toda a Escritura – Jesus sabia disso desde o princípio e caminhou firme e obediente ao encontro da cruz.
            O verbo “cumprir” (pleroo – literalmente, “encher”) é utilizado apenas aqui por Marcos e trás a ideia de um recipiente que está sendo preenchido até completar – portanto, a Paixão não apenas se conforma com as Escrituras, mas é a plena conclusão delas. Sem a Cruz o projeto salvífico de Deus ficaria incompleto – um projeto interrompido. E aqui o verbo está no passivo (“sejam cumpridas”), deixando claro que Aquele que as cumpre, não é os discípulos, mas o próprio Deus. O evangelista não especifica uma passagem, mas abrange todas as Escrituras, pois na realidade, os eventos da Paixão expressam o cumprimento de todas as Escrituras e não apenas de uma ou outra passagem messiânica.
            Toda a cena ocorre à luz tênue do luar e das tochas acesas; aqui temos a manifestação da maldade humana que se manifesta na violência da turba que com espadas o prendem; o medo que acovarda e se revela na fuga e abandono dos discípulos; mas realça-se o cumprimento de todo o desígnio do Pai e a perfeita submissão do Filho:
                        A traição de Judas e a violência dos guardas
                                    A plena submissão de Jesus aos desígnios do Pai
                        O abandono e a fuga dos discípulos
            Nesse pequeno quadro da coleção da Paixão temos como moldura a manifestação da natureza corrompida do ser humano e no centro irradiação do amor imensurável de Deus. Não é um quadro fácil de contemplar: a traição, a violência e o abandono  tornam-se o pano de fundo que coloca em evidência a extraordinária obediência e entrega de Jesus.
            Mas a narrativa (quadro) tem como objetivo deixar claro ao que lê (contempla) que Jesus é concomitantemente objeto e protagonista – as duas faces da Paixão: Jesus está traído, preso e abandonado, entretanto, Ele é o protagonista (não a traição do Iscariotes, não a violência dos guardas; não o abandono dos discípulos), pois são as palavras de Jesus que ecoam e iluminam toda a cena – como declara um dos nossos hinos: mas seu amor aos homens perdidos, das maravilhas é sempre a maior!

Reflexões

- O abandono em relação aos discípulos: eles revelam toda fragilidade humana diante das adversidades da vida. As convicções teológicas são reveladas quando a morte se manifesta. A debanda deles revela também que não haviam compreendido a mensagem do Evangelho de Jesus – no caminho suas discussões eram sobre que tipo de vantagem teria no Reino a ser instaurado por Jesus e qual deles receberia maiores honras (qualquer semelhança com o evangelicalismo brasileiro não é mera coincidência). A falsa percepção dos valores do Reino e da mensagem do Evangelho tornam tais pessoas presas fáceis de suas próprias concupiscências e das ilusões do diabo. Todos os “impérios” eclesiásticos são distorções da proposta original de Jesus. O abandono deles também revela que não há qualquer mérito pessoal em relação à salvação, pois todos, até mesmo os mais íntimos do grupo apostólico, o abandonaram.
- O abandono em relação a Jesus: aqui podemos ver em duas vertentes – intensifica seu sofrimento, pois seus discípulos receberam toda sua atenção, afeição, foram testemunhas oculares de seus milagres, ouviram em primeira mão seus ensinos e em diversas ocasiões anteriores reiteraram sua fidelidade a Ele, mas no momento decisivo – todos o abandonaram! Jesus sente a dor da traição de Judas; das reiteradas negações de Pedro; das dúvidas de Tomé e do abandono de todos eles. Mas por outro lado, a cena revela o imensurável amor de Jesus! Mesmo as maiores decepções e ingratidão puderam diminuir seu amor pelos seus – “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim”. Desta forma ninguém pode dizer que seus pecados são grandes demais ou que seu coração é demasiadamente depravado que não possa ser alcançado pela graça salvadora de Jesus Cristo. Até mesmo para aqueles que o abandonaram recebem uma palavra de esperança: logo após sua ressurreição, suas primeiras palavras são plenas de ternura e amor, sem qualquer traço de ressentimento – disse Ele a Maria Madalena, "vá a meus irmãos e diga-lhes: Subo para meu Pai e vosso Pai; para o meu Deus e vosso Deus”. E para as outras mulheres: “Ide, dize a meus irmãos que se dirijam para a Galileia e lá me verão”.
- Jesus é o nosso modelo: aprendamos com Jesus a dependermos mais do Pai do que das pessoas; a depender menos das circunstâncias externas e mais da graça de Deus; a continuarmos amando nossos amigos mais fiéis, mesmo quando não conseguirem nos entender e até mesmo se afastarem momentaneamente de nós. Lembremo-nos diariamente de que o nosso único Amigo que jamais falará conosco e jamais nos abandonara é Jesus Cristo!

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/


Artigos Relacionados
Pôncio Pilatos: Herói ou Vilão?
Julgamento de Jesus
Páscoa: Jesus no Cenáculo - Prelúdio (João 13.1)
A Crucificação e Morte no Evangelho Segundo João
Galeria da Páscoa: A Negação de Pedro
A Oração que faz Diferença (Getsêmani)
A Última Viagem de Jesus para Jerusalém
BETÂNIA: Lugar de Refrigério e Vida
CONTEXTO SOCIAL E POLITICO DA PALESTINA
CONTEXTO POLITICO-SOCIAL DA JUDEIA – Imperador Tibério

Referências Bibliográficas
BETTENCOURT, Estevão. Para Entender os Evangelhos.  Rio de Janeiro: Agir, 1960.
CARSON, D. A., MOO, Douglas J. e MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997.
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento Interpretado. São Paulo: ed. Milenium, 1985. [v. 1].
DOUGLAS, J. D. O Novo Dicionário da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 1995.
EARLE, Ralph. O Evangelho Segundo Mateus. Rio de Janeiro: CPAD, 2006. [Comentário Bíblico Beacon].
HALE, Broadus David. Introdução ao Estudo do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2001.
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento – Marcos. São Paulo: Cultura Cristã, 2003.
JEREMIAS, Joachim. Jerusalém no Tempo de Jesus: pesquisa de história econômico-social no período neotestamentário. 4 ed. São Paulo: Paulus, 1983.
MAGGIONI, Bruno. Os relatos evangélicos da Paixão. Tradução Bertilo Brod. São Paulo: Paulinas, 2000. (Coleção: Espiritualidade sem fronteiras).
MULHOLLAND, Dewey M. Marcos – introdução e comentário. Tradução de Maria Judith Menga. São Paulo: Vida Nova, 1999. [Série Cultura Bíblica].
REICKE, Bo. História do Tempo do Novo Testamento. São Paulo: Ed. Paulus, 1996.
SAULNIER, Christiane & ROLLAND, BernardA Palestina nos tempos de Jesus. 7ª ed. São Paulo: Paulinas, 1983.
SCHUBERT, Kurt. Os Partidos Religiosos Hebraicos da época Neotestamentária. 2 ed. São Paulo: Paulinas, 1979.
SOARES, Sebastião Armando Gameleira & JUNIOR, João Luiz Correia. Evangelho de Marcos, v.1, ed. Vozes, Petrópolis, 2002.
Walker, Peter. Pelos Caminhos de Jesus. São Paulo: Ed. Rosari, , 2007.
STEGEMANN, Ekkehard W. e STEGEMANN, Wolfgang. História social do protocristianismo. São Leopoldo, RS: Sinodal; São Paulo: Paulus, 2004.




[1] É muito interessante que apenas neste evangelho de Marcos encontramos a inclusão deste aspecto incomum, o que faz muitos comentaristas a concluírem de que Marcos deveria estar contando a história porque ele é esse jovem.
[2] Mc fala em “uma multidão” (ochlos), um vocábulo grego genérico que indica multidão e anonimato e aqui trás ideia de um grupo numeroso e reunido às pressas, certamente convocados pelos três grupos que compunham o Sinédrio (chefes dos sacerdotes, escriba e anciãos) em conformidade com as narrativas anteriores (Mc 8.31; 9.31 e 10.33-34).

Nenhum comentário:

Postar um comentário