As narrativas referentes aos eventos
da paixão (páscoa) são compartilhadas pelos quatro evangelistas e cada um deles
destacam tais acontecimentos de maneira que ao lê-los conjuntamente temos um
quadro riquíssimo em detalhes e peculiaridades.
Outra característica e que todos
eles ocupam mais páginas sobre esses últimos acontecimentos do que com outros
momentos do ministério de Jesus. Por exemplo, o evangelista Marcos não trás uma
única informação sobre o nascimento (natividade) de Jesus, iniciando sua
narrativa a partir da pregação de João Batista e em seguida o batismo de Jesus
que demarca o inicio do ministério terreno de Jesus. Mas mesmo Mateus e Lucas
que relatam sobre o nascimento e infância o fazem de forma extremamente
sucinta, enquanto João inicialmente relaciona Jesus à Criação e praticamente
metade de sua narrativa refere-se à última semana de Jesus. Assim, podemos claramente perceber que as
narrativas sobre a paixão são de grande relevância para os quatro evangelistas.
A sequência da prisão de Jesus é um
dos acontecimentos tratados pelos quatro evangelistas. No caso específico de
Marcos desde quando Jesus inicia sua última subida à Jerusalém eles são
preparados para esses últimos acontecimentos culminando com sua prisão e morte
(Mc 8.31; 9.31 e 10.33). Para os leitores posteriores desta narrativa isso era
muito importante, visto que grande parte dos cristãos desde o inicio sofrem
intensa perseguição, prisão e morte, primeira por parte das autoridades
judaicas e depois pelo Império Romano – tomar conhecimento de que seu Salvador
foi perseguido, preso e morto por seus algozes lhes trazia conforto e consolo
em seus próprios sofrimentos.
Como é característica de seu estilo
narrativo Marcos é econômico nas palavras, mas rico nas imagens e ações de
maneira que reproduz toda tensão que permeia esses últimos momentos de Jesus.
Em apenas oito frases interligadas apenas pelas simples conjunções “e” (kai) e
“mas” (dè) que expressam ações continuadas e adversativas, pois seu objetivo é
revelar o contraste existente entre as varias ações aqui narradas. As
sequências de ações desta perícope são: o sinal combinado de Judas com aqueles
que deveriam prender Jesus (o beijo); a prisão, o gesto abrupto da espada e a
fuga do jovem desnudado.[1]
Até esse momento, mesmo atemorizados
ou sem a plena compreensão do que esta por vir (dormem enquanto Jesus ora no
Getsemâni), os discípulos permanecem próximos a Jesus. Mas o seu aprisionamento, abrupto para eles, porém não para Jesus que tinha consciência dos movimentos
traiçoeiros de Judas Iscariotes e que antes que ele e a turba do Sinédrio,
armados com paus e espadas e em grande número,[2]
chegassem Jesus já estava preparado: “o
meu traidor está chegando”... “Levantai-vos!
Vamos!” (Mc 14.42); aqui temos um terrível divisor de águas entre os
discípulos e Jesus – o abandono!
A narrativa que se abre com a
traição conclui-se com o abandono – “Então,
abandonando-o, fugiram todos” (Mc 14.50). O evangelista é taxativo em
afirmar que TODOS, sem exceção –
abandonaram Jesus na hora derradeira. O evangelista e nós sabemos que Pedro e João ainda
permaneceram seguindo-o, porém de longe. Mas em sua narrativa Marcos quer
deixar claro que Jesus foi abandonado por todos seus discípulos – é na completa
solidão que Jesus irá caminhar em direção à cruz.
O evangelista na utilização de dois
termos “abandonar” e “fugir” enfatiza a fuga dos discípulos.
Aqui temos um contraste irônico: os mesmos discípulos que “abandonaram” – trabalho, família e tudo (Mc 1.18, 20 e 10.28) para
seguirem a Jesus – agora são os mesmos que o abandonam. Eles tiveram a coragem inicial de abandonarem tudo, mas não conseguiram abandonar a si mesmos,
tomados de medo por suas próprias vidas “fugiram”
– os dois termos fazem o contraste do seguimento. Temos um hino antigo que
revela bem esse quadro: “Quantos, que
corriam bem, de Ti longe agora vão!” A contradição daqueles primeiros
discípulos é o reflexo da nossa própria contradição – entre o que professamos e
o que realmente fazemos. O apóstolo Paulo vivenciou esse contraditório em sua
própria vida – as coisas boas e certas eu
não faço, mas as coisas ruins e erradas eu faço – miserável homem que sou!
Na continuidade da leitura da
narrativa de Marcos e demais evangelistas, descobrimos que esta contradição
somente será resolvida pela graça de Jesus, que mesmo tendo sido abandonado
JAMAIS abandou seus discípulos – ao abandono Ele responde com um NOVO chamado.
Ele já havia predito esse reencontro algumas horas antes: “Todos vós vos escandalizareis, porque está escrito: Ferirei o pastor e
as ovelhas se dispersarão.” MAS, depois que eu ressurgir, eu vos precederei na
Galileia” (Mc 14.27-28).”
Essas palavras de Jesus revelam não
apenas uma predição, mas também uma promessa – esse afastamento não era
definitivo – todos os discípulos o abandonaram, mas Jesus jamais os abandonou.
É com base em sua própria fidelidade e não das deles que se encontra a certeza
absoluta de um reencontro permanente
e definitivo – “Estarei com vocês todos
os dias”.
Mas agora é tempo de abandono, já
manifestado no fato de que enquanto Jesus ora intensamente, eles dormem – e agora diante da prisão, eles fogem amedrontados. Mas tudo isso
acontece por uma única razão: “para que
as Escrituras se cumpram” (Mc 14.49). Nada do que está acontecendo é
coincidência ou casualidade; tudo e cada detalhe complexo ou simples envolvendo
os acontecimentos da Paixão estão dentro da moldura da vontade soberana de
Deus, que é na verdade o grande protagonista dessa História. Entre as
Escrituras antigas e os fatos evangélicos não existem contradições ou rupturas;
a Cruz foi e continua sendo o ponto
de convergência de toda a Escritura – Jesus sabia disso desde o princípio e caminhou
firme e obediente ao encontro da cruz.
O verbo “cumprir” (pleroo –
literalmente, “encher”) é utilizado apenas aqui por Marcos e trás a ideia de um
recipiente que está sendo preenchido até completar – portanto, a Paixão não
apenas se conforma com as Escrituras, mas é a plena conclusão delas. Sem a Cruz o projeto salvífico de Deus ficaria
incompleto – um projeto interrompido. E aqui o verbo está no passivo (“sejam
cumpridas”), deixando claro que Aquele que as cumpre, não é os
discípulos, mas o próprio Deus. O evangelista não especifica uma passagem, mas
abrange todas as Escrituras, pois na realidade, os eventos da Paixão expressam o
cumprimento de todas as Escrituras e
não apenas de uma ou outra passagem messiânica.
Toda a cena ocorre à luz tênue do
luar e das tochas acesas; aqui temos a manifestação da maldade humana que se
manifesta na violência da turba que com espadas o prendem; o medo que
acovarda e se revela na fuga e abandono dos discípulos; mas realça-se o
cumprimento de todo o desígnio do Pai e a perfeita submissão do Filho:
A traição de Judas e a
violência dos guardas
A plena submissão de Jesus aos desígnios do Pai
O abandono e a fuga dos discípulos
Nesse pequeno quadro da coleção da
Paixão temos como moldura a manifestação da natureza corrompida do ser humano e
no centro irradiação do amor imensurável de Deus. Não é um quadro fácil de
contemplar: a traição, a violência e o abandono tornam-se o pano de fundo que coloca em
evidência a extraordinária obediência e entrega de Jesus.
Mas a narrativa (quadro) tem como
objetivo deixar claro ao que lê (contempla) que Jesus é concomitantemente
objeto e protagonista – as duas faces da Paixão: Jesus está traído, preso e
abandonado, entretanto, Ele é o protagonista (não a traição do Iscariotes, não a
violência dos guardas; não o abandono dos discípulos), pois são as palavras de
Jesus que ecoam e iluminam toda a cena – como declara um dos nossos hinos: mas seu
amor aos homens perdidos, das maravilhas é sempre a maior!
Reflexões
- O abandono em relação aos discípulos: eles revelam toda
fragilidade humana diante das adversidades da vida. As convicções teológicas
são reveladas quando a morte se manifesta. A debanda deles revela também que
não haviam compreendido a mensagem do Evangelho de Jesus – no caminho suas
discussões eram sobre que tipo de vantagem teria no Reino a ser instaurado por
Jesus e qual deles receberia maiores honras (qualquer semelhança com o
evangelicalismo brasileiro não é mera coincidência). A falsa percepção dos
valores do Reino e da mensagem do Evangelho tornam tais pessoas presas fáceis
de suas próprias concupiscências e das ilusões do diabo. Todos os “impérios” eclesiásticos
são distorções da proposta original de Jesus. O abandono deles também revela
que não há qualquer mérito pessoal em relação à salvação, pois todos, até mesmo
os mais íntimos do grupo apostólico, o abandonaram.
- O abandono em relação a Jesus: aqui podemos ver em
duas vertentes – intensifica seu sofrimento, pois seus discípulos receberam
toda sua atenção, afeição, foram testemunhas oculares de seus milagres, ouviram
em primeira mão seus ensinos e em diversas ocasiões anteriores reiteraram sua
fidelidade a Ele, mas no momento decisivo – todos o abandonaram! Jesus sente a
dor da traição de Judas; das reiteradas negações de Pedro; das dúvidas de Tomé
e do abandono de todos eles. Mas por outro lado, a cena revela o imensurável
amor de Jesus! Mesmo as maiores decepções e ingratidão puderam diminuir seu
amor pelos seus – “Tendo amado os seus
que estavam no mundo, amou-os até o fim”. Desta forma ninguém pode dizer
que seus pecados são grandes demais ou que seu coração é demasiadamente depravado
que não possa ser alcançado pela graça salvadora de Jesus Cristo. Até mesmo
para aqueles que o abandonaram recebem uma palavra de esperança: logo após sua
ressurreição, suas primeiras palavras são plenas de ternura e amor, sem qualquer
traço de ressentimento – disse Ele a Maria Madalena, "vá a meus irmãos e diga-lhes: Subo para meu Pai e vosso Pai; para o meu
Deus e vosso Deus”. E para as
outras mulheres: “Ide, dize a meus
irmãos que se dirijam para a Galileia e lá me verão”.
- Jesus é o nosso modelo: aprendamos com Jesus
a dependermos mais do Pai do que das pessoas; a depender menos das
circunstâncias externas e mais da graça de Deus; a continuarmos amando nossos
amigos mais fiéis, mesmo quando não conseguirem nos entender e até mesmo se
afastarem momentaneamente de nós. Lembremo-nos diariamente de que o nosso único
Amigo que jamais falará conosco e jamais nos abandonara é Jesus Cristo!
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Historiologia Protestante
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[1] É muito interessante que apenas neste
evangelho de Marcos encontramos a inclusão deste aspecto incomum, o que faz
muitos comentaristas a concluírem de que Marcos deveria estar contando a
história porque ele é esse jovem.
[2] Mc fala em “uma multidão” (ochlos),
um vocábulo grego genérico que indica multidão e anonimato e aqui trás ideia de
um grupo numeroso e reunido às pressas, certamente convocados pelos três grupos
que compunham o Sinédrio (chefes dos sacerdotes, escriba e anciãos) em
conformidade com as narrativas anteriores (Mc 8.31; 9.31 e 10.33-34).
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