terça-feira, 19 de janeiro de 2016

NT – EVANGELHO JOÃO: Contexto Religioso

Em qualquer literatura, bíblica ou não, o contexto é importante para uma compreensão melhor do texto e sua mensagem e os evangelhos não são exceção.
A exegese do evangelho segundo João tem sido muito influenciada pelas diferentes opiniões sobre o contexto histórico-religioso (Sitz im Leben) tanto do escritor como de seus primeiros leitores. Em relação ao quarto evangelho há uma ampla escala de influências proposta pelos estudiosos que poderiam compor o pano de fundo deste precioso livro. Mencionaremos aqui apenas as mais destacadas nos  estudos recentes:
Helenismo: O historiador alemão, J. G. Droysen, no século XIX utilizou a expressão “era helenista”, para designar o período durante o qual a cultura greco-macedônico propagou-se dos Bálcãs para as terras que margeiam a bacia do mar Mediterrâneo, após a morte de Alexandre, o Grande, em 323 a.C. (CHAMPLIN, 2006, p.76). Desde então, muitos estudiosos entendem que o escritor do quarto evangelho está mergulhado nesse contexto helenista. Para isto eles associam esse evangelho aos escritos de Filo, um dos mais influentes judeus contemporâneos de Jesus e que tinha sua base em Alexandria, no Egito. Entretanto, será um equívoco se crer que o autor do quarto evangelho partiu da filosofia de Filo para interpretar o ensino de Jesus. Os conceitos filosóficos helenistas tinham ampla circulação no mundo greco-romano, de maneira que o autor evangélico tão somente se apropriou deles para tornar a mensagem cristã mais próxima e inteligível aos seus leitores (CHAMPLIN, 2006, p. 524). Outros como C. H. Dodd (2003, p. 27-80) foram buscar na literatura Hermética (hermetismo)[1] dentro do helenismo, que tem suas referências no segundo e terceiro séculos, e que possuiu um vocabulário muito semelhante ao utilizado no evangelho joanino, tais como luz e vida, a palavra e salvação através do conhecimento, como também regeneração ou novo nascimento. Segundo o material contido nos Rolos do Mar Morto é possível chegar-se à conclusão que estes e outros conceitos penetraram no judaísmo palestino ainda no primeiro século, de modo que, o escritor evangélico não precisaria estar fora da Palestina para conhecer tais conceitos. Todavia, as diferenças são muito maiores do que as semelhanças, pois muitos dos temas teológicos mais distintivos na Hermética, como gnósis mystêrion, athanasia, demiourgos, nous, estão ausentes em João, e a linguagem de João, de modo geral, condiz mais com a LXX do que com a literatura Hermética (KIPATRICK, 1957, p. 36-44). Além do que o mundo helenístico conhecia muitas outras religiões que propunham uma salvação além da Hermética, e João parece ter certa familiaridade com o tipo de pensamento encontrada nas mesmas, pois as religiões de mistério trouxeram às pessoas o conceito de vida eterna, e algumas fraseologias de João resgata isto (cf. MORRIS, 1995, p. 57).

Gnosticismo: Outros estudiosos veem um forte contexto gnóstico permeando o livro, entre eles Rudolf Bultmann (1956, p. 163-164) que argumenta que neste evangelho Jesus está representado em termos dos mitos gnósticos.[2] Há uma proposta de que os leitores são oriundos de alguma seita gnóstica, e que já possuíam uma ideia de um Redentor Gnóstico pré-Cristão, de maneira que o prólogo do evangelho, com a figura do Logos, reforça esta ideia. É verdade que no segundo século um tipo de gnosticismo cristão havia se desenvolvido de forma bem elaborada, e que, não é difícil aceitar que havia alguma espécie de 'pré-gnosticismo' no primeiro século, conforme refletido na polêmica de Colossenses e de 1 João. A pressuposição de Bultmann é de que os pontos fundamentais desse gnosticismo antedataram o cristianismo e, portanto, influenciaram fortemente a teologia Joanina.[3] E mais forçoso ainda é se afirmar, como faz E. F. Scott (1908, p. 29-64), de que o evangelista tenha sido influenciado por aqueles que estava evangelizando. Desta forma, apesar de todo o esforço, não se tem alcançado muito sucesso em demonstrar no Evangelho um gnosticismo desenvolvido. O que se pode afirmar com mais certeza é que os conceitos gnósticos se desenvolveram mais tardiamente e fora do cristianismo e não de forma inversa como estes estudiosos gostariam.

Judaísmo: A influência do judaísmo é evidenciada em todo este evangelho, ao abordar com total desenvoltura as práticas e conceitos, principalmente messiânicos, vigentes na Palestina antes de 70 d.C. O livro texto das primeiras comunidades cristãs era o Antigo Testamento. Pouco menos de um século atrás prevalecia, entre os estudiosos, a ideia de que a influência helênica (grega) predominava nesse relato evangélico, mas recentemente retornou com muita força a proposta de que o evangelista é predominantemente influenciado pelo judaísmo desenvolvido na Palestina nos dias de Jesus (TENNEY, 2008, p. 663). A linguagem literária utilizada pelo quarto evangelista revela uma influência semítica: o vocabulário; os paralelismos (parataxe – com suas frases ligadas pela conjunção “e”; assíndeto – sem partícula de ligação); os contrastes tão abundantes na poesia hebraica são encontrados no texto evangélico e até mesmo as construções literárias manifestam a influência semítica no texto grego do evangelista.[4] Os sinais, tão caro aos judeus (I Co 1.22), são cuidadosamente alinhavados como parte integrante da mensagem do livro. E na medida em que se dá a conhecer o judaísmo palestino do primeiro século, mais se percebe que este evangelho o reflete com mais nitidez. Os aspectos geográficos demonstram que o autor conhece muito bem toda a região da Palestina judaica; as referências do Antigo Testamento, ainda que em menor número do que de seus pares evangélicos, são extraídas do texto da Septuaginta, mas também do texto hebraico e até mesmo dos Targuns palestinos (traduções aramaicas). É impossível não perceber a semelhança entre o Prólogo que abre a narrativa joanina (1.1-18) e o primeiro capítulo do Gênesis, como também os links com a literatura poética veterotestamentária (Sl 33.6,9). Sem muito esforço pode-se aperceber os paralelos da experiência do êxodo israelita e a mensagem deste Evangelho. Somente tendo como pano de fundo o Antigo Testamento é possível compreender corretamente as referências aos profetas Elias e Isaías, nos debates de João Batista e os sacerdotes e levitas (1.19-23); ao Cordeiro de Deus (1.29); a visão de Jacó (1.51, cf. Gn 28.12); à Páscoa judaica; o Poço de Jacó em Sicar (Samaria); as questões sobre a guardo do sábado estabelecida no Pentateuco; o maná e a rocha e principalmente a expressão “Eu sou” que permeia toda narrativa evangélica de João, ainda que, em João as referências sejam mais implícitas do que explícita, como nos colegas sinóticos, a influência do Antigo Testamento é profunda e persuasiva (TENNEY, 2008, p. 663). Por fim, os debates entre Jesus e seus adversários são característicos do período anterior a 70 d.C., e não aqueles que surgiram no seio das comunidades cristãs do século segundo.[5] Quando o evangelista se refere aos “judeus” ele se refere notoriamente aos líderes religiosos, e não ao povo em geral. Esta hostilidade das lideranças religiosas judaicas em relação a Jesus surge desde o princípio do seu ministério, de maneira que ele tem que se deslocar permanentemente e atuar mais nas regiões fora da Judéia, evitando assim a brevidade de seu ministério. Com a mesma intensidade vemos esta hostilidade nos registros de Atos, onde a primeira grande perseguição aos cristãos, logo após o apedrejamento do diácono Estevão, se dá pelos judeus, e não pelo Império Romano, e continua em relação as atividades missionárias de Paulo, de maneira que em diversas cidades onde o judaísmo está fortemente estabelecido, Paulo e seus companheiros precisam fugir para não serem mortos. Portanto, não se necessitou de um longo período de maturação para que houvesse uma ruptura definitiva entre judaísmo e cristianismo, ele esteve sempre patente desde o início do ministério de Jesus.

Cristianismo Primitivo: Este Evangelho não pode ser considerado de forma autônoma da história cristã. Os quatro evangelistas produziram seus respectivos relatos dentro do contexto da história e não pode ser corretamente interpretado fora dos parâmetros da teologia primitiva. Como entendemos o autor foi uma testemunha ocular e manteve contato com testemunhas oculares dos fatos narrados. A relação dos Sinóticos e este quarto Evangelho ainda que gere muitas controvérsias, tem sido fortemente comprovável. De imediato é preciso afirmar que não há qualquer conflito entre eles, ainda que o material joanino é amplamente diferente em sua forma e exposição. Mesmo que as fontes, utilizadas pelo evangelista, represente uma verdadeira tradição paralela, mantem-se uma ligação estreita com a tradição primitiva. Há uma evidente e íntima ligação desse Evangelho com o kerigma (pregação), a didáke (ensino) e a praxe (prática) da igreja primitiva. O contexto religioso deste livro é facilmente encontrado tanto no judaísmo palestino quanto no cristianismo primitivo. Evidentemente, por João escrever próximo do final do primeiro século, sua ênfase e objetivo é distinto dos seus colegas sinóticos, pois visa esclarecer questões que estão permeando as comunidades cristãs desse período posterior, como por exemplo a ascensão do gnosticismo e seu esforço em amalgamar-se com a mensagem cristã.

Paulinismo: Tem sido afirmado por alguns de que o autor deste evangelho era uma Paulinista, ou seja, que a teologia desenvolvida nesse quarto evangelho é um estágio mais desenvolvido do ensino do apóstolo Paulo, assim como este último é um desenvolvimento do ensino de Jesus. Um dos mais ardorosos defensores desta proposição é Scott (1908, p. 29-64), mas cujas analises e comparações não são suficientes para comprovar essa subordinação joanina ao ensino e teologia paulina. Alguns estudiosos têm sugerido que as duas figuras históricas, Paulo de Tarso e João, filho de Zebedeu, podem ter-se cruzado na igreja estabelecida em Éfeso no primeiro século (HARDING, 2011, 169-196, in WILLITS, 2011).[6] Na verdade, foi suposto que a epístola aos Hebreus estaria entre Paulo e João na linha de desenvolvimento, e isso coloca o evangelho joanino no final do processo da teologia cristã. Mas como alerta Guthrie “é mais provável manter a posição de que a teologia cristã não se desenvolveu por este método, mas que várias vertentes colaterais, da qual Paulo, Hebreus e João representam manifestações diferentes, desenvolvida numa fase inicial" (GUTHIRIE, 1980, p. 319-320). Quando Paulo escreve sua epístola mais madura, aos Romanos, ele estava em Éfeso, e sua leitura comparativa com o evangelho escrito por João nos revela diversos pontos convergentes e ideias paralelas. Entretanto, é preciso muita cautela no uso de Paulo para interpretar João. Ao mesmo tempo, os dois não podem ser separados, pois ambos apresentam aspectos vitais da teologia cristã nos seus primórdios. Subordinar João à teologia paulina é um equívoco, pois ambos compartilham do mesmo Jesus e da mesma mensagem evangélica para também um público e ambiente comum da Ásia Menor. Assim, as semelhanças tornam-se inevitáveis e a literatura evangélica joanina deve ser tratada como um documento autônomo e autêntico e estudado em harmonia com os demais documentos cristãos que compõe o cânon da segunda parte da Bíblia Cristã.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
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Referências Bibliográficas
BIRD, Michael F. e WILLITS, Joel (Ed.). Paul and the Gospels: christologies, conflicts and convergences. London: Published by T&T Clark International, 2011.
BRUCE, F. F. St. John at Ephesus. A lecture delivered in the John Rylands University Library on Wednesday, 26th October 1977. Disponível em: http://biblicalstudies.org.uk/pdf/bjrl/ephesus_bruce.pdf . Acesso em: 19 jan. 2016.
BULTMANN, Rudolf. Primitive Christianity in its contemporary setting. Translated by R. H. Fuller. London: Thames and Hudson, 1956.
CHAMPLIN, R. N. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia, v.3, 8ª ed., 2006.
DODD, Charles H. A interpretação do quarto Evangelho. Tradução José Raimundo Vidigal. São Paulo: Editora Teológica, 2003.
GUTHIRIE, Donald. New Testament Introduction. Illinois: Inter-Varsity Press, 1980.
HARDING, Mark. Kyrios Christos: Johannine and Pauline perspectives on the Christ event [p. 169-196], in BIRD, Michael F. e WILLITS, Joel (Ed.), 2011.
KILPATRICK, G. D. The religious background of the Fourth Gospel, in CROSS, F. L. (Ed.), Studies in the Fourth Gospel, 1957, p. 36-44.
MORRIS, Leon - The Gospel according to John, ed. William B. Eerdmans Publishing Company Grand Rapids, 1995. [The New International commentary on the New Testament].
PACK, Frank. O Evangelho Segundo João. São Paulo: Editora Vida Cristã, 1983.
SCOTT, Ernest F. The Fourth Gospel – its purpose and theology, 2ª ed. Edinburgh: T&T Clark, 1908.
SKINNER, Christopher W. Virtue in the New Testament: the legacies of John and Paul in comparative perspective. Atlanta: Society of Biblical Literature, nº 7, 2012. Disponível em: http://www.sbl-site.org/assets/pdfs/pubs/064507P.front.pdf . Acesso em: 19 jan.2016.
TENNEY, Merrill C. (Org.). Enciclopédia da Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2008. v. 5.





[1] Hermetismo é o estudo e prática da filosofia oculta e da magia associados a escritos atribuídos a Hermes Trismegisto, "Hermes Três-Vezes-Grande", uma deidade sincrética que combina aspectos do deus grego Hermes e do deus egípcio Thoth. Estas crenças tiveram influência na sabedoria oculta europeia, desde a Renascença, quando foram reavivadas por figuras como Giordano Bruno e Marsilio Ficino. A magia hermética passou por um renascimento no século XIX na Europa Ocidental, onde foi praticada por nomes como os envolvidos na Ordem Hermética do Amanhecer Dourado e Eliphas Levi. No século XX foi estudada por Franz Bardon" (cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Hermetismo).
[2] O Gnosticismo foi um eclético e complexo sistema religioso-místico, que se difundiu por todo o Oriente próximo, mais acentuadamente no inicio do segundo século.
[3] Os elementos essenciais desta teologia gnóstica consistem no dualismo cosmológico onde a matéria é má e o espírito é bom. Segundo eles as almas dos seres humanos, que pertencem ao reino celestial da luz e vida, caíram no mundo material das trevas e morte. Para resolver este problema, Deus enviou um remidor celestial à terra, para iluminá-los, outorgando-lhes conhecimento (gnõsis) de sua verdadeira natureza, de maneira a habilita-los, por ocasião da morte, a escaparem de seu envolvimento no mundo material e retornarem ao seu verdadeiro lar celestial. O céu é o lar natural do homem; o mundo é uma prisão. A salvação, portanto, resulta do conhecimento conferido pela descida e ascensão do remidor celestial. Tem mais de conceito espírita do que de cristianismo bíblico.
[4] Em relação a hipótese de que o atual Evangelho (grego) tenha sido uma tradução de um original em aramaico, Frank Pack conclui: “Apesar desta teoria não ter sido aceita, existem suficientes influências semíticas tanto na construção como no estilo para fazer com que os eruditos concluam que o autor foi um judeu acostumado a pensar e falar em aramaico assim como em grego”. (1983, p. 14).
[5] “As controvérsias entre Jesus e seus oponentes que continuaram entre cristãos e judeus das sinagogas em fins do primeiro século, foram mais tarde refletidas no Dialogue with Trypho de Justino Mártir (PACK, 1983, p.15).
[6] Devemos ter em mente que a igreja em Éfeso foi estabelecida por Paulo (Atos 19,8-10; cf. 20,31), e foi aqui que o apóstolo permaneceu por mais tempo, três anos de seu ministério. Éfeso certamente se constituiu em um centro do pensamento e ensino paulino e a sede da missão durante os anos 50 d.C., e provavelmente após sua morte, de onde seu trabalho e visão foi preservada e transmitida a outros pela segunda geração paulina. Somado temos o testemunho de Irineu, em seu Diálogo de Trífão (Adv. Haer. 3,1,2 – citando os testemunhos de Policarpo de Esmirna e de Papias) e de Eusébio de Cesaréia, citando Polícrates (HE, III, 31,3) de que o apóstolo João terminou seus dias nessa comunidade de Éfeso, de maneira que há um forte argumento, de que, o quarto Evangelho chegou a sua forma final, no final do primeiro século, nesta cidade permeada do pensamento paulino. Sobre a presença de João na cidade de Éfeso ver o artigo produzido por F. F. Bruce – St. John at Ephesus; para comparar as confluências dos legados de Paulo e João o bom artigo de C. Skinner, conforme referências bibliográficas. 

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