Em qualquer
literatura, bíblica ou não, o contexto é importante para uma compreensão melhor
do texto e sua mensagem e os evangelhos não são exceção.
A exegese do
evangelho segundo João tem sido muito influenciada pelas diferentes opiniões
sobre o contexto histórico-religioso (Sitz im Leben) tanto do escritor como de
seus primeiros leitores. Em relação ao quarto evangelho há uma ampla escala de
influências proposta pelos estudiosos que poderiam compor o pano de fundo deste
precioso livro. Mencionaremos aqui apenas as mais destacadas nos estudos recentes:
Helenismo:
O
historiador alemão, J. G. Droysen, no século XIX utilizou a expressão “era helenista”, para designar o período
durante o qual a cultura greco-macedônico propagou-se dos Bálcãs para as terras
que margeiam a bacia do mar Mediterrâneo, após a morte de Alexandre, o Grande,
em 323 a.C. (CHAMPLIN, 2006, p.76). Desde então, muitos estudiosos
entendem que o escritor do quarto evangelho está mergulhado nesse contexto
helenista. Para isto eles associam esse evangelho aos escritos de Filo, um dos mais influentes judeus
contemporâneos de Jesus e que tinha sua base em Alexandria, no Egito.
Entretanto, será um equívoco se crer que o autor do quarto evangelho partiu da
filosofia de Filo para interpretar o ensino de Jesus. Os conceitos filosóficos
helenistas tinham ampla circulação no mundo greco-romano, de maneira que o
autor evangélico tão somente se apropriou deles para tornar a mensagem cristã
mais próxima e inteligível aos seus leitores (CHAMPLIN, 2006, p. 524). Outros
como C. H. Dodd (2003, p. 27-80) foram
buscar na literatura Hermética (hermetismo)[1] dentro do helenismo, que
tem suas referências no segundo e terceiro séculos, e que possuiu um
vocabulário muito semelhante ao utilizado no evangelho joanino, tais como luz e
vida, a palavra e salvação através do conhecimento, como também regeneração ou
novo nascimento. Segundo o material contido nos Rolos do Mar Morto é possível chegar-se
à conclusão que estes e outros conceitos penetraram no judaísmo palestino ainda
no primeiro século, de modo que, o escritor evangélico não precisaria estar
fora da Palestina para conhecer tais conceitos. Todavia, as diferenças são
muito maiores do que as semelhanças, pois muitos dos temas teológicos mais
distintivos na Hermética, como gnósis mystêrion, athanasia, demiourgos, nous,
estão ausentes em João, e a linguagem de João, de modo geral, condiz mais com a
LXX do que com a literatura Hermética (KIPATRICK, 1957, p. 36-44). Além do que
o mundo helenístico conhecia muitas outras religiões que propunham uma salvação
além da Hermética, e João parece ter certa familiaridade com o tipo de pensamento
encontrada nas mesmas, pois as religiões de mistério trouxeram às pessoas o
conceito de vida eterna, e algumas fraseologias de João resgata isto (cf.
MORRIS, 1995, p. 57).
Gnosticismo: Outros
estudiosos veem um forte contexto gnóstico permeando o livro, entre eles
Rudolf Bultmann (1956, p. 163-164) que argumenta que neste evangelho Jesus está
representado em termos dos mitos gnósticos.[2] Há uma proposta de
que os leitores são oriundos de alguma seita gnóstica, e que já possuíam uma ideia
de um Redentor Gnóstico pré-Cristão, de maneira que o prólogo do evangelho, com
a figura do Logos, reforça esta ideia. É verdade que no segundo século um tipo
de gnosticismo cristão havia se desenvolvido de forma bem elaborada, e que, não
é difícil aceitar que havia alguma espécie de 'pré-gnosticismo' no primeiro
século, conforme refletido na polêmica de Colossenses e de 1 João. A
pressuposição de Bultmann é de que os pontos fundamentais desse gnosticismo
antedataram o cristianismo e, portanto, influenciaram fortemente a teologia
Joanina.[3] E mais forçoso ainda é se
afirmar, como faz E. F. Scott (1908, p. 29-64), de que o evangelista tenha sido
influenciado por aqueles que estava evangelizando. Desta forma, apesar de todo
o esforço, não se tem alcançado muito sucesso em demonstrar no Evangelho um
gnosticismo desenvolvido. O que se pode afirmar com mais certeza é que os
conceitos gnósticos se desenvolveram mais tardiamente e fora do cristianismo e
não de forma inversa como estes estudiosos gostariam.
Judaísmo: A
influência do judaísmo é evidenciada em todo este evangelho, ao abordar com
total desenvoltura as práticas e conceitos, principalmente messiânicos,
vigentes na Palestina antes de 70 d.C. O livro texto das primeiras comunidades
cristãs era o Antigo Testamento. Pouco menos de um século atrás prevalecia,
entre os estudiosos, a ideia de que a influência helênica (grega) predominava
nesse relato evangélico, mas recentemente retornou com muita força a proposta
de que o evangelista é predominantemente influenciado pelo judaísmo
desenvolvido na Palestina nos dias de Jesus (TENNEY, 2008, p. 663). A linguagem
literária utilizada pelo quarto evangelista revela uma influência semítica: o
vocabulário; os paralelismos (parataxe – com suas frases ligadas pela conjunção
“e”; assíndeto – sem partícula de ligação); os contrastes tão abundantes na
poesia hebraica são encontrados no texto evangélico e até mesmo as construções
literárias manifestam a influência semítica no texto grego do evangelista.[4] Os sinais, tão caro aos
judeus (I Co 1.22), são cuidadosamente alinhavados como parte integrante da
mensagem do livro. E na medida em que se dá a conhecer o judaísmo palestino do
primeiro século, mais se percebe que este evangelho o reflete com mais nitidez.
Os aspectos geográficos demonstram que o autor conhece muito bem toda a região
da Palestina judaica; as referências do Antigo Testamento, ainda que em menor número
do que de seus pares evangélicos, são extraídas do texto da Septuaginta, mas
também do texto hebraico e até mesmo dos Targuns palestinos (traduções
aramaicas). É impossível não perceber a semelhança entre o Prólogo que abre a
narrativa joanina (1.1-18) e o primeiro capítulo do Gênesis, como também os
links com a literatura poética veterotestamentária (Sl 33.6,9). Sem muito
esforço pode-se aperceber os paralelos da experiência do êxodo israelita e a
mensagem deste Evangelho. Somente tendo como pano de fundo o Antigo Testamento
é possível compreender corretamente as referências aos profetas Elias e Isaías,
nos debates de João Batista e os sacerdotes e levitas (1.19-23); ao Cordeiro de
Deus (1.29); a visão de Jacó (1.51, cf. Gn 28.12); à Páscoa judaica; o Poço de
Jacó em Sicar (Samaria); as questões sobre a guardo do sábado estabelecida no
Pentateuco; o maná e a rocha e principalmente a expressão “Eu sou” que permeia toda narrativa evangélica de João, ainda que,
em João as referências sejam mais implícitas do que explícita, como nos colegas
sinóticos, a influência do Antigo Testamento é profunda e persuasiva (TENNEY, 2008,
p. 663). Por fim, os debates entre Jesus e seus adversários são característicos
do período anterior a 70 d.C., e não aqueles que surgiram no seio das
comunidades cristãs do século segundo.[5] Quando o evangelista se
refere aos “judeus” ele se refere
notoriamente aos líderes religiosos, e não ao povo em geral. Esta hostilidade
das lideranças religiosas judaicas em relação a Jesus surge desde o princípio
do seu ministério, de maneira que ele tem que se deslocar permanentemente e
atuar mais nas regiões fora da Judéia, evitando assim a brevidade de seu
ministério. Com a mesma intensidade vemos esta hostilidade nos registros de
Atos, onde a primeira grande perseguição aos cristãos, logo após o
apedrejamento do diácono Estevão, se dá pelos judeus, e não pelo Império
Romano, e continua em relação as atividades missionárias de Paulo, de maneira
que em diversas cidades onde o judaísmo está fortemente estabelecido, Paulo e
seus companheiros precisam fugir para não serem mortos. Portanto, não se
necessitou de um longo período de maturação para que houvesse uma ruptura
definitiva entre judaísmo e cristianismo, ele esteve sempre patente desde o início
do ministério de Jesus.
Cristianismo
Primitivo: Este Evangelho não pode ser considerado de forma
autônoma da história cristã. Os quatro evangelistas produziram seus respectivos
relatos dentro do contexto da história e não pode ser corretamente interpretado
fora dos parâmetros da teologia primitiva. Como entendemos o autor foi uma
testemunha ocular e manteve contato com testemunhas oculares dos fatos narrados.
A relação dos Sinóticos e este quarto Evangelho ainda que gere muitas
controvérsias, tem sido fortemente comprovável. De imediato é preciso afirmar
que não há qualquer conflito entre eles, ainda que o material joanino é
amplamente diferente em sua forma e exposição. Mesmo que as fontes, utilizadas
pelo evangelista, represente uma verdadeira tradição paralela, mantem-se uma
ligação estreita com a tradição primitiva. Há uma evidente e íntima ligação
desse Evangelho com o kerigma (pregação), a didáke (ensino) e a praxe (prática)
da igreja primitiva. O contexto religioso deste livro é facilmente encontrado
tanto no judaísmo palestino quanto no cristianismo primitivo. Evidentemente,
por João escrever próximo do final do primeiro século, sua ênfase e objetivo é
distinto dos seus colegas sinóticos, pois visa esclarecer questões que estão
permeando as comunidades cristãs desse período posterior, como por exemplo a
ascensão do gnosticismo e seu esforço em amalgamar-se com a mensagem cristã.
Paulinismo: Tem
sido afirmado por alguns de que o autor deste evangelho era uma Paulinista, ou
seja, que a teologia desenvolvida nesse quarto evangelho é um estágio mais
desenvolvido do ensino do apóstolo Paulo, assim como este último é um
desenvolvimento do ensino de Jesus. Um dos mais ardorosos defensores desta
proposição é Scott (1908, p. 29-64), mas cujas analises e comparações não são
suficientes para comprovar essa subordinação joanina ao ensino e teologia
paulina. Alguns estudiosos têm sugerido que as duas figuras históricas, Paulo
de Tarso e João, filho de Zebedeu, podem ter-se cruzado na igreja estabelecida
em Éfeso no primeiro século (HARDING, 2011, 169-196, in WILLITS, 2011).[6] Na verdade, foi suposto
que a epístola aos Hebreus estaria entre Paulo e João na linha de
desenvolvimento, e isso coloca o evangelho joanino no final do processo da
teologia cristã. Mas como alerta Guthrie “é mais provável manter a posição de que a teologia cristã não se desenvolveu
por este método, mas que várias vertentes colaterais, da qual Paulo, Hebreus e
João representam manifestações diferentes, desenvolvida numa fase inicial"
(GUTHIRIE, 1980, p. 319-320). Quando Paulo escreve sua epístola mais
madura, aos Romanos, ele estava em Éfeso, e sua leitura comparativa com o
evangelho escrito por João nos revela diversos pontos convergentes e ideias
paralelas. Entretanto, é preciso muita cautela no uso de Paulo para interpretar
João. Ao mesmo tempo, os dois não podem ser separados, pois ambos apresentam
aspectos vitais da teologia cristã nos seus primórdios. Subordinar João à
teologia paulina é um equívoco, pois ambos compartilham do mesmo Jesus e da
mesma mensagem evangélica para também um público e ambiente comum da Ásia
Menor. Assim, as semelhanças tornam-se inevitáveis e a literatura evangélica
joanina deve ser tratada como um documento autônomo e autêntico e estudado em
harmonia com os demais documentos cristãos que compõe o cânon da segunda parte
da Bíblia Cristã.
Utilização
livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan
Pereira
Mestre em
Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana
Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
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Referências
Bibliográficas
BIRD, Michael F. e WILLITS, Joel
(Ed.). Paul and the Gospels: christologies,
conflicts and convergences. London: Published by T&T Clark
International, 2011.
BRUCE, F. F. St. John at Ephesus. A lecture delivered in the John Rylands
University Library on Wednesday, 26th October 1977. Disponível
em: http://biblicalstudies.org.uk/pdf/bjrl/ephesus_bruce.pdf
.
Acesso em: 19 jan. 2016.
BULTMANN, Rudolf. Primitive Christianity in its
contemporary setting.
Translated by R. H. Fuller. London: Thames and Hudson, 1956.
CHAMPLIN,
R. N. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia, v.3, 8ª ed., 2006.
DODD, Charles H. A interpretação do quarto Evangelho. Tradução
José Raimundo Vidigal. São Paulo: Editora Teológica, 2003.
GUTHIRIE, Donald. New Testament Introduction. Illinois: Inter-Varsity
Press, 1980.
HARDING, Mark. Kyrios Christos: Johannine and Pauline perspectives on the Christ event
[p. 169-196], in BIRD, Michael F. e WILLITS, Joel (Ed.), 2011.
KILPATRICK, G. D. The religious background of the Fourth
Gospel, in CROSS, F. L. (Ed.), Studies in the Fourth Gospel, 1957, p.
36-44.
MORRIS, Leon - The Gospel according to John, ed.
William B. Eerdmans Publishing Company Grand Rapids, 1995. [The New
International commentary on the New Testament].
PACK, Frank. O Evangelho Segundo João. São Paulo: Editora Vida
Cristã, 1983.
SCOTT, Ernest F. The Fourth Gospel – its purpose and
theology, 2ª ed. Edinburgh: T&T Clark, 1908.
SKINNER, Christopher W. Virtue in the New Testament: the legacies
of John and Paul in comparative perspective. Atlanta: Society of Biblical
Literature, nº 7, 2012. Disponível em: http://www.sbl-site.org/assets/pdfs/pubs/064507P.front.pdf . Acesso
em: 19 jan.2016.
TENNEY,
Merrill C. (Org.). Enciclopédia da Bíblia.
São Paulo: Cultura Cristã, 2008. v. 5.
[1] Hermetismo é o estudo e prática da
filosofia oculta e da magia associados a escritos atribuídos a Hermes
Trismegisto, "Hermes Três-Vezes-Grande", uma deidade sincrética que
combina aspectos do deus grego Hermes e do deus egípcio Thoth. Estas crenças
tiveram influência na sabedoria oculta europeia, desde a Renascença, quando
foram reavivadas por figuras como Giordano Bruno e Marsilio Ficino. A magia
hermética passou por um renascimento no século XIX na Europa Ocidental, onde
foi praticada por nomes como os envolvidos na Ordem Hermética do Amanhecer
Dourado e Eliphas Levi. No século XX foi estudada por Franz Bardon"
(cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Hermetismo).
[2] O Gnosticismo foi um eclético e
complexo sistema religioso-místico, que se difundiu por todo o Oriente próximo,
mais acentuadamente no inicio do segundo século.
[3] Os elementos essenciais desta teologia
gnóstica consistem no dualismo cosmológico onde a matéria é má e o espírito é
bom. Segundo eles as almas dos seres humanos, que pertencem ao reino celestial
da luz e vida, caíram no mundo material das trevas e morte. Para resolver este
problema, Deus enviou um remidor celestial à terra, para iluminá-los,
outorgando-lhes conhecimento (gnõsis) de sua verdadeira natureza, de maneira a habilita-los,
por ocasião da morte, a escaparem de seu envolvimento no mundo material e
retornarem ao seu verdadeiro lar celestial. O céu é o lar natural do homem; o
mundo é uma prisão. A salvação, portanto, resulta do conhecimento conferido
pela descida e ascensão do remidor celestial. Tem mais de conceito espírita do
que de cristianismo bíblico.
[4] Em relação a hipótese de que o atual
Evangelho (grego) tenha sido uma tradução de um original em aramaico, Frank
Pack conclui: “Apesar desta teoria não ter sido aceita, existem suficientes
influências semíticas tanto na construção como no estilo para fazer com que os
eruditos concluam que o autor foi um judeu acostumado a pensar e falar em
aramaico assim como em grego”. (1983, p. 14).
[5] “As controvérsias entre Jesus e seus
oponentes que continuaram entre cristãos e judeus das sinagogas em fins do
primeiro século, foram mais tarde refletidas no Dialogue with Trypho de Justino
Mártir (PACK, 1983, p.15).
[6] Devemos ter em mente que a igreja em Éfeso
foi estabelecida por Paulo (Atos 19,8-10; cf. 20,31), e foi aqui que o apóstolo
permaneceu por mais tempo, três anos de seu ministério. Éfeso certamente se
constituiu em um centro do pensamento e ensino paulino e a sede da missão durante
os anos 50 d.C., e provavelmente após sua morte, de onde seu trabalho e visão
foi preservada e transmitida a outros pela segunda geração paulina. Somado
temos o testemunho de Irineu, em seu Diálogo de Trífão (Adv. Haer. 3,1,2 – citando
os testemunhos de Policarpo de Esmirna e de Papias) e de Eusébio de Cesaréia,
citando Polícrates (HE, III, 31,3) de que o apóstolo João terminou seus dias
nessa comunidade de Éfeso, de maneira que há um forte argumento, de que, o quarto
Evangelho chegou a sua forma final, no final do primeiro século, nesta cidade permeada
do pensamento paulino. Sobre a presença de João na cidade de Éfeso ver o artigo
produzido por F. F. Bruce – St. John at Ephesus; para comparar as confluências
dos legados de Paulo e João o bom artigo de C. Skinner, conforme referências bibliográficas.
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