Cada um dos quatros evangelistas tem suas características
literárias e ênfases teológicas peculiares, o que os tornam preciosos no que
concernem a compreendermos a pessoa e obra de Jesus Cristo. Ler apenas um deles
é um equivoco em que muitos leitores incorrem seja por simplicidade ou mera
preguiça. Mas por outro lado é fascinante quando examinamos cada um destes
relatos evangélicos individualmente explorando suas nuanças, seus detalhes,
seus aspectos intrínsecos e peculiares, aprendendo e descobrindo junto com o
evangelista quem é e o que fez de Jesus Cristo essa figura única em toda
História e Literatura humana.
Uma primeira leitura da narrativa produzida por Marcos nos
deixa desconcertado, pois esperamos uma leitura simples e fácil, mas somos
surpreendidos por uma narrativa enigmática. A sua conclusão é ainda mais
intrigante, pois na verdade ele não conclui[1] –
certamente seria reprovado nas bancas de exame de teses para mestrados e
doutorados.
Ele abre sua narrativa com a expressão “o Filho de Deus”,[2]
todavia na medida em que se lê a narrativa essa expressão fica oculta dos
leitores. Marcos faz uma referência veterotestamentária do profeta Malaquias
(3.1),[3]
mas que na verdade encontra-se em Isaías.
Sua narrativa geográfica é um tanto complexa, como por
exemplo, o texto em que Jesus atravessa com os discípulos o chamado Mar da
Galiléia (5.1) e desembarca na “terra dos gerasenos”, que na verdade está ao
menos 50 quilômetros distante do mar. A menção da morte de João Batista
(6.14-29) parece ser uma interpolação visto que (6.30ss) segue uma narrativa
mais natural.[4]
As peças do seu quebra cabeças literário é ainda mais
surpreendente quando em relação ao personagem central – Jesus Cristo.
Evidentemente que Jesus não é uma figura ficcional do evangelista, mas o
evangelista o envolve em uma penumbra de mistério, ainda que seja uma figura
pública que convive diariamente com as pessoas, trajando as mesmas vestimentas
e comendo e bebendo com elas, diferente de João Batista que vive nas montanhas
do deserto, veste-se de indumentária rustica e come gafanhotos e mel.
Mas apesar de Jesus ser uma figura pública e notória sua
identidade é mantida oculta. O testemunho de sua divindade vem do próprio Deus
(Pai e Espírito) no momento de seu batismo (1.9-11) e que o texto deixa
transparecer que somente Jesus e o próprio João Batista ouvem; depois somente
no chamado monte da transfiguração (9.2-8) onde estão presentes apenas três dos
apóstolos Pedro, Tiago e João – ambos os testemunhos na verdade se constituem
em teofanias e que servem para demarcar as duas partes principais da narrativa –
e que confirmam o que foi declarado na abertura inicial (1.1), que o próprio
Jesus tem plena consciência (14.62) e que será testemunhado pela boca do
centurião romano no momento derradeiro da crucificação (15.39) – Jesus é o
Filho de Deus!
Uma questão intrigante da narrativa é que os demônios e/ou
espíritos imundos são aqueles que possuem o claro entendimento de quem Jesus
Cristo é de fato (1.24; 3.11; 5.7) em aberto contraste com a dificuldade dos
próprios discípulos em entender o que ele diz e faz. E Marcos não esconde essa
dificuldade dos discípulos e nomeia alguns deles como Pedro (8.27-33; 14.26-31
e 66-72), Tiago e seu irmão João (10.35-40) e com toda certeza Judas Iscariotes
(14.43-50), esse não entendeu nada mesmo. E não deixar duvidas Marco conclui “todos
o abandonaram e fugiram” (14.50). Há exceções como as mulheres que o
acompanharam desde a Galileia (15.40-41; 16.1-8) e provavelmente José de
Arimatéia (15.42-47), mas nem um deles explicitam uma linguagem confessional
como a dos espíritos malignos.
Durante todo seu ministério público, desde a Galileia até
Jerusalém, o que deveria ser explicito torna-se oculto e parte do próprio Jesus
esse enigma. Diversas vezes Marcos registra que o próprio Jesus ordena que as
declarações de sua divindade fossem silenciadas: os espíritos malignos (1.25,
34; 3.11-12); os que foram curados ou testemunharam a cura (1.44; 5.43; 7.36;
8.26); e até mesmo aos discípulos (8.30; 9.9). E aqui está um dos aspectos mais
distintivos da narrativa marqueana.
Soma-se a esse silêncio imposto o fato de que Jesus opta
por utilizar as parábolas para ensinar os princípios basilares de sua mensagem
evangélica, que em suas próprias palavras se constituem no “segredo [mistério]
do reino de Deus” (4.11) e mesmos os discípulos a quem ele ensinou diretamente
o sentindo dessas parábolas tem dificuldade em compreender esse “mistério”
(4.34).
Assim como os próprios personagens que fazem parte da
narrativa, os leitores encontram dificuldade para descobrir quem é esse Jesus e
qual sua real missão. O que torna a leitura e o estudo deste evangelho tanto
desafiador quanto encantador. A cada palavra, movimento e ação de Jesus somos
confrontados com a questão: Quem é este?
Assim como aqueles personagens contemporâneos, todos os
leitores até hoje, somente conseguirá compreender de fato quem é Jesus Cristo
quando concluímos a leitura de toda a narrativa, quando encaixamos a última
peça desse extraordinário quebra cabeças elaboradas por João Marcos debaixo da
inspiração divina.
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes,
Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Historiologia
Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/
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Marcos)
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Comentada – Evangelios. Texto de la Nácar-Colunga, Parte
Va.
[1] Há uma secular discussão de qual
realmente venha a ser o final dessa narrativa visto que se encontram
manuscritos com pelos três finais diferentes que podemos resumir aqui em curto,
médio e longo, ainda que a diferença é de apenas alguns versículos.
[2] O mistério está no fato de que essa
expressão podia ser interpretada de várias maneiras: uma pessoa de Deus; uma
pessoa enviada por Deus; o Filho de Deus em carne e osso; um homem criado
especialmente por Deus como foi Adão.
[3] A explicação é de que naqueles dias
do evangelista um único rolo continha os escritos dos Profetas e se iniciava
pelas profecias de Isaías, de maneira que era comum se referir a um Rolo das
Escrituras por seu primeiro livro.
[4] Papias, bispo de Hierapolis (60-130
AD) referindo-se à narrativa de Marcos observa: “escreveu com precisão, embora
não em ordem”.
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