quinta-feira, 12 de março de 2020

EVANGELHO SEGUNDO MARCOS: Montando um Quebra Cabeças



            Cada um dos quatros evangelistas tem suas características literárias e ênfases teológicas peculiares, o que os tornam preciosos no que concernem a compreendermos a pessoa e obra de Jesus Cristo. Ler apenas um deles é um equivoco em que muitos leitores incorrem seja por simplicidade ou mera preguiça. Mas por outro lado é fascinante quando examinamos cada um destes relatos evangélicos individualmente explorando suas nuanças, seus detalhes, seus aspectos intrínsecos e peculiares, aprendendo e descobrindo junto com o evangelista quem é e o que fez de Jesus Cristo essa figura única em toda História e Literatura humana.
            Uma primeira leitura da narrativa produzida por Marcos nos deixa desconcertado, pois esperamos uma leitura simples e fácil, mas somos surpreendidos por uma narrativa enigmática. A sua conclusão é ainda mais intrigante, pois na verdade ele não conclui[1] – certamente seria reprovado nas bancas de exame de teses para mestrados e doutorados.
            Ele abre sua narrativa com a expressão “o Filho de Deus”,[2] todavia na medida em que se lê a narrativa essa expressão fica oculta dos leitores. Marcos faz uma referência veterotestamentária do profeta Malaquias (3.1),[3] mas que na verdade encontra-se em Isaías.
            Sua narrativa geográfica é um tanto complexa, como por exemplo, o texto em que Jesus atravessa com os discípulos o chamado Mar da Galiléia (5.1) e desembarca na “terra dos gerasenos”, que na verdade está ao menos 50 quilômetros distante do mar. A menção da morte de João Batista (6.14-29) parece ser uma interpolação visto que (6.30ss) segue uma narrativa mais natural.[4]  
            As peças do seu quebra cabeças literário é ainda mais surpreendente quando em relação ao personagem central – Jesus Cristo. Evidentemente que Jesus não é uma figura ficcional do evangelista, mas o evangelista o envolve em uma penumbra de mistério, ainda que seja uma figura pública que convive diariamente com as pessoas, trajando as mesmas vestimentas e comendo e bebendo com elas, diferente de João Batista que vive nas montanhas do deserto, veste-se de indumentária rustica e come gafanhotos e mel.
            Mas apesar de Jesus ser uma figura pública e notória sua identidade é mantida oculta. O testemunho de sua divindade vem do próprio Deus (Pai e Espírito) no momento de seu batismo (1.9-11) e que o texto deixa transparecer que somente Jesus e o próprio João Batista ouvem; depois somente no chamado monte da transfiguração (9.2-8) onde estão presentes apenas três dos apóstolos Pedro, Tiago e João – ambos os testemunhos na verdade se constituem em teofanias e que servem para demarcar as duas partes principais da narrativa – e que confirmam o que foi declarado na abertura inicial (1.1), que o próprio Jesus tem plena consciência (14.62) e que será testemunhado pela boca do centurião romano no momento derradeiro da crucificação (15.39) – Jesus é o Filho de Deus!
            Uma questão intrigante da narrativa é que os demônios e/ou espíritos imundos são aqueles que possuem o claro entendimento de quem Jesus Cristo é de fato (1.24; 3.11; 5.7) em aberto contraste com a dificuldade dos próprios discípulos em entender o que ele diz e faz. E Marcos não esconde essa dificuldade dos discípulos e nomeia alguns deles como Pedro (8.27-33; 14.26-31 e 66-72), Tiago e seu irmão João (10.35-40) e com toda certeza Judas Iscariotes (14.43-50), esse não entendeu nada mesmo. E não deixar duvidas Marco conclui “todos o abandonaram e fugiram” (14.50). Há exceções como as mulheres que o acompanharam desde a Galileia (15.40-41; 16.1-8) e provavelmente José de Arimatéia (15.42-47), mas nem um deles explicitam uma linguagem confessional como a dos espíritos malignos.
            Durante todo seu ministério público, desde a Galileia até Jerusalém, o que deveria ser explicito torna-se oculto e parte do próprio Jesus esse enigma. Diversas vezes Marcos registra que o próprio Jesus ordena que as declarações de sua divindade fossem silenciadas: os espíritos malignos (1.25, 34; 3.11-12); os que foram curados ou testemunharam a cura (1.44; 5.43; 7.36; 8.26); e até mesmo aos discípulos (8.30; 9.9). E aqui está um dos aspectos mais distintivos da narrativa marqueana.  
            Soma-se a esse silêncio imposto o fato de que Jesus opta por utilizar as parábolas para ensinar os princípios basilares de sua mensagem evangélica, que em suas próprias palavras se constituem no “segredo [mistério] do reino de Deus” (4.11) e mesmos os discípulos a quem ele ensinou diretamente o sentindo dessas parábolas tem dificuldade em compreender esse “mistério” (4.34).
            Assim como os próprios personagens que fazem parte da narrativa, os leitores encontram dificuldade para descobrir quem é esse Jesus e qual sua real missão. O que torna a leitura e o estudo deste evangelho tanto desafiador quanto encantador. A cada palavra, movimento e ação de Jesus somos confrontados com a questão: Quem é este?  
            Assim como aqueles personagens contemporâneos, todos os leitores até hoje, somente conseguirá compreender de fato quem é Jesus Cristo quando concluímos a leitura de toda a narrativa, quando encaixamos a última peça desse extraordinário quebra cabeças elaboradas por João Marcos debaixo da inspiração divina.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/

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Referências Bibliográficas
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BETTENCOURT, Estevão. Para Entender os Evangelhos.  Rio de Janeiro: Agir, 1960.
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TUYA, Manuel de. Biblia Comentada – Evangelios. Texto de la Nácar-Colunga, Parte Va.

[1] Há uma secular discussão de qual realmente venha a ser o final dessa narrativa visto que se encontram manuscritos com pelos três finais diferentes que podemos resumir aqui em curto, médio e longo, ainda que a diferença é de apenas alguns versículos.
[2] O mistério está no fato de que essa expressão podia ser interpretada de várias maneiras: uma pessoa de Deus; uma pessoa enviada por Deus; o Filho de Deus em carne e osso; um homem criado especialmente por Deus como foi Adão.
[3] A explicação é de que naqueles dias do evangelista um único rolo continha os escritos dos Profetas e se iniciava pelas profecias de Isaías, de maneira que era comum se referir a um Rolo das Escrituras por seu primeiro livro.
[4] Papias, bispo de Hierapolis (60-130 AD) referindo-se à narrativa de Marcos observa: “escreveu com precisão, embora não em ordem”.

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