sábado, 19 de agosto de 2017

O Olhar de Jesus (Evangelho Marcos)


Uma das características da narrativa desenvolvida pelo evangelista Marcos é a capacidade que ele tem de apreender detalhes que seus colegas sinóticos,[1] Mateus e Lucas, na maioria das vezes são mais econômicos.
Incrustado entre seus dois companheiros mais volumosos[2] Marcos nos cativa justamente pela plasticidade de seu texto[3] repleto de nuanças que torna prazerosa e fascinante a leitura de seu relato evangélico. Ele faz o leitor sentir-se parte do que esta acontecendo - uma espécie de "você estava lá." Podemos dizer até que Marcos desenvolve uma Leitura em Terceira Dimensão - onde o leitor sente-se VENDO e PARTICIPANDO dos acontecimentos como se estivesse presente.
Uma destas peculiaridades é a forma com que Marcos descreve para nós o olhar de Jesus em algumas ocasiões (cf. 3.5, 34; 10.23; 11.11). Vejamos, a título de exemplo, uma destas passagens:
Mc 3.5 - "Olhando-os ao redor, indignado e condoído com a dureza do seu coração, disse ao homem: estende a mão. Estendeu-a, e a mão lhe foi restaurada."
A forma com que Marcos registra é tão vívida que nos possibilita como que vermos o que e como Jesus esta vendo aquela cena. Uma tradução mais literal seria: "e tendo olhado ao redor para eles" e que será semelhante à forma com que Jesus vai olhar também para os seus próprios discípulos.
Este olhar de indignação não é de condenação, mas de um anelo para que aquelas pessoas pudessem entender quais realmente são as coisas mais importantes e aquelas que são secundárias.[4] Jesus em alguns minutos vai restaurar a mão ressequida de um homem, que, portanto, de uma pessoa inútil para o trabalho e para o sustento de sua vida e da família, tornar-se-á uma pessoa útil para viver plenamente sua vida. Mas a reação de parte daqueles que estavam olhando esta mesma cena será de completa reprovação e violência, pois ao saírem começam a planejar a morte de Jesus (3.6).
Antes de curar aquele homem e libertá-lo de sua incapacidade de viver plenamente, Jesus olha para aquelas pessoas que entrincheiradas em sua religiosidade haviam perdido completamente a sensibilidade para com o próximo.
Ao olhar ao redor Jesus é tomado por uma profunda indignação pela insensibilidade deles. Mas diferentemente da nossa ‘indignação' que normalmente é transformada em ações duras e implacáveis, a de Jesus é totalmente revestida por uma tristeza misericordiosa e amorosa,[5] pois Jesus sabia que a dureza do coração dele[6] era decorrente de uma espiritualidade distorcida, permeada pela insensibilidade e obstinação.
Os tempos verbais utilizados por Marcos nos dão a idéia de que o olhar indignado de Jesus foi momentâneo, desvaneceu-se rapidamente, enquanto que seu olhar triste(misericordioso) foi continuo, ou seja, permaneceu. Em sua experiência pessoal com Deus o salmista declara: "Pois a sua ira só dura um instante, mas o seu favor dura a vida toda;" (Sl 30.5). Esta continua sendo a experiência de todo crente.
Evangelho de Jesus é muito mais do que um amontoado de preceitos e normas - é vida. O nosso olhar de indignidade para com aqueles que não compreendem como compreendemos e que não defendem os mesmos valores que nós defendemos jamais podem nos cegar a ponto de incapacitar de olharmos continuamente pelo prisma da misericórdia e do amor - que é a forma permanente com que Jesus olha para nós.
Antes de nos entregarmos à nossa "justa indignação" é preciso nos perguntarestamos indignados, olhando com os olhos de Jesus, ou manifestando nosso preconceito religioso ou uma atitude profundamente egoísta?

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/


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Referências Bibliográficas
ANDERSON, Hugh. The Gospel of Mark. London: Marshall, Morgan & Scott, 1976.
BETTENCOURT, Estevão. Para Entender os Evangelhos.  Rio de Janeiro: Agir, 1960.
CARSON D. A., DOUGLAS, J. Moo & MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo:  ed. Vida Nova, 1997.
CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. São Paulo: Hagnos, 2006, 8ª ed.
CRANFIELD, C. E. B. The Gospel According to St. Mark. Cambridge: Cambridge University Press, 1966. 
GUTHIRIE, Donald. New Testament Introduction. Illinois: Inter-Varsity Press, 1980.
LEAL, João. Os Evangelhos e a Crítica Moderna. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1945.
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento – Marcos. São Paulo: Cultura Cristã, 2003.
MULHOLLAND, Dewey M. Marcos – introdução e comentário. Tradução de Maria Judith Menga. São Paulo: Vida Nova, 1999. [Série Cultura Bíblica].
SOARES, Sebastião Armando Gameleira & JUNIOR, João Luiz Correia. Evangelho de Marcos, v.1, ed. Vozes, Petrópolis, 2002.
TENNEY, Merrill C. (Org.). Enciclopédia da Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2008.
TORREY, C. C. The Four Gospels, 2nd ed. New York: Harper, 1947.
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[1] A palavra "sinótico" (synoptico) vem do grego synoptikós de synopsis (syn, com +ópsis, visão) e significa ‘o que tem a mesma visão, ou mesma perspectiva'. Veja mais sobre este assunto - http://reflexaobiblica.spaceblog.com.br/152863/SINOTICOS-INTRODUCAO/
[2] Nas versões em português Lucas tem 40 páginas, Mateus 37 e Marcos 23; Lucas possui cerca de 1.147 versículos, Mateus tem 1.068, enquanto que Marcos possui quase metade disso, apenas 661 versículos.
[3] A palavra ‘texto' vem do latim ‘tecer' de maneira que o escritor vai tecendo sua história e/ou narrativa. No caso particular de Marcos sua "tapeçaria" trás múltiplas tonalidades e cores tornando seu texto vivido e atrativo de maneira que encanta e fascina seus leitores.
[4] A ira de Deus descreve o desagrado de Deus em relação à maldade humana, mas sempre esta vinculada a um apelo à mudança ou arrependimento (Dt 9.7,8, 22; Is 60.10; Sl 6.1; 38.1).
[5] O particípio "profundamente entristecido" (syllypoumenos), usado somente aqui no NT, é a forma intensiva do verbo "ser triste ou chorar."
[6] O "coração duro" (melaphor) sugere que as pessoas fecharam-se a palavra de Deus(Ez 3.7, Atos 28.27; Rom 2.5), que também descreve os discípulos em 6.52 e 8.17.


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