“Esta carta nos dá um exemplo magistral e terno
de amor cristão”.
Martinho Lutero
“pequena obra-prima da arte de escrever
cartas”.
Ernest Renan
Introdução
Dentro da
organização do cânon neotestamentário a epístola a Filemom encerra o bloco dos
escritos paulinos. O fato de ser a menor correspondência escrita pelo apóstolo,
contendo apenas 335 palavras no texto grego, espalhadas por cerca de 30
versículos e de seu tom muito pessoal de um amigo e irmão para outro tem levado
muitos estudiosos a minimizarem sua importância canônica. O fato de Paulo não
tratar explicitamente de nenhum dos grandes temas doutrinários é outra razão
para que esse documento inspirado seja relegado como um apêndice literário
paulino.
Todavia,
quando tomamos essa pequena carta e a lemos com o coração e a mente abertos
para apreender seus ensinamentos, somos gratificantemente surpreendidos por
seus preciosos e incomparáveis ensinos. Aqui temos um Paulo que escancara seu
coração e sua alma em favor de um escravo fugitivo. O grande apóstolo dos
gentios nunca esteve preso aos grandes temas doutrinários, nunca se preocupou
apenas com as comunidades por ele estabelecidas, mas sempre se preocupou com
pessoas quer fossem seus cooperadores próximos ou mesmo pessoas que ele não
conhecia pessoalmente. Nesses dias de evangelicalismo hedonista onde as
instituições e suas estruturas físicas são prioridades, a preocupação de Paulo
para com Onésimo, um escravo fugitivo, é um modelo e exortação para todos nós
de que devemos prioritariamente nos preocupar com pessoas, pois o Evangelho
somente é de fato Evangelho quando vivenciado.
Autoria
A ordem com que as cartas de
Paulo foram organizadas na composição final do cânon neotestamentário não é
cronológica, mas tudo indica que foi utilizado o critério lógico de
cumprimento, iniciando-se com a mais extensa (Romanos) até a correspondência mais
curta, sendo assim o posicionamento de Filemom no final do corpus paulino faz
sentido.
Historicamente essa pequena
carta foi endossada como escrito paulino desde muito cedo. Existe a
possibilidade de que essa pequena carta seja a única que Paulo escreveu
pessoalmente, e de que as demais, mais extensas, tenham sido escrito por um
amanuense e/ou secretário, o que naquele momento era algo típico de um autor
escrever pessoalmente uma correspondência particular, ditando os tratados mais
gerais ao seu secretário que fazia a redação.
Partes dela ou a carta
inteira aparecem nos códigos de papiros, maiúsculos e minúsculos, bem como nas
versões siríaco antigo e latim antigo. Hoje, no século XXI, há um número
suficiente de manuscritos para fornecer uma certeza justa sobre o texto de Filemom:
Sinaiticus, A (Alexandrinus), C (Ephraimi Rescriptus: apenas versículos 1-2), D
(Claromontanus), F (Augiensis) e G (Boernerianus) são alguns dos códices que
contêm o texto completo da epístola ou partes disso. Crisóstomo e Jerônimo
escreveram alguns dos primeiros comentários sobre essa epístola.
Poucos foram aqueles que
questionaram seriamente a autenticidade da epístola,[1] embora ela seja
aparentemente uma carta particular e não uma missiva dirigida a uma igreja. Há
evidências externas abundantes nos escritos dos chamados “Pais da Igreja” no
período subapostólico, que a citam com frequência. O comentarista bíblico W. Hendriksen
(2007, p. 296) menciona as principais citações:
Não é de se
surpreender, portanto, que Eusébio tenha dado a Filemom um lugar na sua lista
de livros reconhecidos (História Eclesiástica III. xxv; cf. Ill.iii), e que a
tenha considerado como uma das cartas de Paulo: “verdadeira, genuína e
reconhecida”. Orígenes igualmente a aceita como carta de Paulo (Hom. in Jer.
19). Tertuliano estava bem familiarizado com ela e por causa do seu testemunho
sabemos que até Marcião a aceitou, apesar de aquele herege rejeitar 1 e 2
Timóteo e Tito (Tertuliano, Contra Marcião V.xxi). E provável que Inácio tenha
tomado emprestado de Paulo seu jogo de palavras feito em cima do nome próprio
Onésimo (cf. Fm 10,11,20 com Inácio, Aos Efésios, cap. 2). A carta é também
encontrada no Fragmento Muratoriano nas versões em latim e siríaco antigos.
E quando examinadas as
chamadas evidências interna somos levados à conclusão de que essa pequena carta
de fato saiu das mãos do apóstolo Paulo. E por fim, o fato de que sendo um
documento pequeno e dirigido a uma pessoa específica e tratando de um problema
específico, foi inserida no cânon bíblico do Segundo Testamento, só se
justifica pelo fato de que seu autor é o apóstolo dos gentios; visto que o
debate para a definição do cânon levou ao menos três séculos, caso houvesse
dúvidas reais quanto à autoria paulina certamente ela teria ficado fora da
seleção final dos documentos inspirados, como mais de uma centena ficaram ao
longo dos debates.
Ocasião
Em que
momento de seu ministério Paulo escreveu esta pequena missiva? Ao menos cinco
vezes o apostolo faz referência ao fato de estar encarcerado (vv. 1, 9, 10, 13,
23), todavia ele revela poucos detalhes sobre deste aprisionamento, mas deixa
aberta a possibilidade de ser liberto em breve (v. 22), todavia não explicita a
sua localização geográfica. Como em sua epístola aos Colossenses menciona um
Onésimo (4.9) referindo-se a ele como um amado colega de trabalho e como parte
daquela comunidade "um de vocês [colossenses]", concluiu-se
plausivelmente que Filemom e sua igreja doméstica estão localizadas em Colossos,
uma cidade perto da do Rio Lico na Ásia Menor.
Os comentaristas se debruçam
então nos período em que Paulo enfrentou aprisionamentos mais longos para
definir onde e quando o apostolo escreveu essa carta. Aqui temos por ordem de
apreciação: o aprisionamento em Roma (em 60 a 62 AD), nesse caso, a carta teria
sido escrita durante seus dois anos de prisão, provavelmente no início dos anos
60 (Atos 28.16,30); outros indicam seu período de aprisionamento em Éfeso, que
ficava cerca de 160 quilômetros de Colossos, na costa da Ásia Menor, reforçada
pelas afinidades literárias com a epístola maior aos Colossenses, de modo que ambas
as cartas podem ter sido escritas de Éfeso (em 52-55 AD), o que colocaria as
cartas em uma data muito cedo, na metade dos anos 50; a proposta mais recente é
de que Paulo escreveu durante seu encarceramento na cidade de Cesaréia (em 58 a
60 AD), na costa da Palestina (Atos 23.35; 24.26-27), de modo que sua
composição foi feita aproximadamente no final dos anos 50.
Desde a época de Jerônimo e
João Crisóstomo, e talvez até mais cedo, Roma tem sido tradicionalmente o lugar
mais frequentemente sugerido; os que defendem Éfeso, como o local da escrita da
carta, inferem do fato que ela esta a 160 quilômetros de Colossos, o que parece
se encaixar melhor na questão de um escravo fugitivo, do que Roma que está a
quase mil quilômetros de distância; a proposta de Cesaréia é a menos defendida
e cujos argumentos são menos plausíveis. Todavia, a grande e populosa capital Roma
era o melhor lugar para um escravo fugitivo se camuflar na multidão.
Diante das evidências é
possível concluir que Paulo escreveu a carta a Filemom de Roma, durante seu
primeiro período de aprisionamento em 61 ou 62 AD, enquanto aguardava seu apelo
diante de César. Um fator que reforma a tese de Roma é o fato de Lucas está com
Paulo durante sua prisão (ver Cl 4.14; Filemom 24) e tudo indica que Lucas não
estava com o apóstolo durante sua estadia em Éfeso. A opção de que Paulo estava
em Roma quando escreve Filemom ainda é de longe a melhor. Paulo teve dois
períodos de aprisionamento em Roma: 60-62 AD: Efésios, Colossenses, Filipenses
e Filemom; (2) 68 AD: 2 Timóteo, seu último documento canônico escrito.
Uma
Correspondência Pessoal ou Comunitária?
Todas as
correspondências contidas no cânon tornam-se comunitária, pois tem como
objetivo primário a edificação da Igreja. Quando escreveu sua primeira carta
aos tessalonicenses Paulo orienta que fosse lida na presença de toda
congregação (1Ts 5.27) e veio a se constituir em uma prática comum e estendida
a todas as demais correspondências - um bom orador público, podendo ser ou não o
próprio pastor, leria a carta publicamente para toda a congregação.
Filemom era simplesmente uma
carta pessoal ou deveria ser lido publicamente na comunidade? Se ficarmos
apenas com o titulo “Carta à Filemom” podemos pensar que se trata de uma
correspondência pessoal, todavia quando a lida com calma e observadas
devidamente o vocabulário se percebe que a intenção dele é dirigir-se a um
público mais amplo. Na saudação ele cita além de Filemom, Áfia, e a Arquipo e
completa “e à igreja que está em tua casa” (v. 1-2). Desta forma Paulo coloca que
o tema a ser abordado se relaciona diretamente a Filemom, mas implica em toda a
comunidade cristã, da qual todos eles fazem parte. Deste modo Paulo conclama a
todos para serem testemunhas do apelo que ele irá fazer em favor de Onésimo,
bem como a resposta que será dada por Filemom, pois como líder da comunidade a
atitude de dele será um referencial para os demais. Abordando esta questão R.
P. Martin conclui: “essa breve epístola
deve ser vista não apenas como uma carta particular de Paulo como um indivíduo...
mas como uma carta apostólica sobre um assunto pessoal” (1993, p. 706). Em outras palavras, Paulo
está referindo seu caso a toda a igreja e essa natureza pública também pode ser
responsável por seu valor na coleção e no cânone das cartas de Paulo.
Depois de lida na igreja que
funcionava na casa de Filemom, cópias foram feitas e começaram a circular por
todas as igrejas localizadas em Colossos e a todas as igrejas do Império
Romano. A prova definitiva de que essa pequena e singela carta, escrita por um
apostolo preso, intercedendo junto a amigo em favor de um escravo fugitivo
tornou-se um assunto da comunidade cristã é que ela foi incluída no cânon das
Escrituras e tem sido lida e estudada em todas as igrejas ao longo da história
da igreja.
Destinatários
Na
saudação o apóstolo identifica a quem se dirige: inicialmente a Filemom, a Afia,
possivelmente a esposa dele e Arquipo, que muitos estudiosos concluem seja o
filho do casal, ainda que não sejam conclusões indiscutíveis.
Como comentado acima, essa
carta entre Paulo e Filemom deveria ser lida publicamente na comunidade, pois
foram incentivados a participar da decisão de Filemom (v. 1-2).
A partir desta epístola, podemos
delinear que Filemom era uma pessoa de posses, pois tinha uma casa grande o
suficiente para que uma igreja funcionasse nela (v. 2). Esta casa também
fornecia um quarto de hóspedes de acordo com o versículo 22. O fato de possuir um
escravo, e provavelmente ainda outros, é outro indicador de que fosse abastado.
Podemos deduzir que ele viveu em Colossos, pois o Onésimo mencionado no
versículo 10, que é escravo de Filemom, é referido em Colossenses 4.9. Filemom se
converteu ao cristianismo através do ministério de Paulo (v. 19) de maneira que
se estabeleceu uma amizade duradoura e Paulo o tem em grande consideração “nosso
cooperador” e "companheiro de fé" (v. 17), com toda certeza ele estava
envolvido no ministério de Paulo.
Utilização livre
desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências
da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia
Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/
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Filosofia
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Radical
Referências Bibliográficas
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Aires (Argentina), Asociación Editorial la Aurora, 1974.
BROWN, Raymond. Introdução ao Novo Testamento. São
Paulo: Paulinas, 2004 (Coleção Bíblia e história Série Maior).
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BRUCE, F. F. Merece Confiança o Novo Testamento? São
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CARDOSO, José Roberto C. 1 Tessalonicenses:
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GUNDRY, Robert H. Panorama do Novo Testamento.
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HAWTHORNE, G. F.,
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HENDRIKSEN, William. Comentário
do Novo Testamento - 1 e 2 Tessalonicenses, Colossenses e Filemom. São
Paulo: Tradutores Ezia C. Mullins, Hope Gordon Silva, Valter G. Martins. São
Paulo: Cultura Cristã, 2007.
KUMMEL, Werner
Georg. Introdução ao Novo Testamento.
São Paulo: Paulus, 1982.
[1] F.
C. Baur com seu hegelianismo extremo a considerou um documento do século II que
tinha como objetivo ensinar a igreja como lidar com a escravidão, mas a
argumentação dele não resiste a uma análise séria do documento paulino, que
embora seja uma correspondência breve e de caráter pessoal para um amigo, ela consta
nas primeiras listas de cânones (de Marcião e do Moratório).
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