quinta-feira, 1 de setembro de 2016

PROFETA OSEIAS: Seu Conflito Conjugal/Familiar e sua Mensagem

            Qualquer estudo do livro do profeta Oséias terá que enfrentar uma das mais problemáticas questões da literatura profética e bíblica: a ordem dada por Deus ao seu profeta: “vai, tome uma mulher de prostituição, e terás filho de prostituição; porque a terra se prostituiu, desviando-se do Senhor”. Seja qual for o ângulo pelo qual se examina essa ordem, ela sempre nos parecerá absurda e incompatível com a concepção de Deus que nos foi passada ou nós mesmos construímos ao longo da nossa leitura e estudo da Bíblia.
            Como devemos interpretar tal ordem de Deus? É um acontecimento histórico, fruto de uma tragédia pessoal do profeta, empregado por Deus para ilustrar da depravada relação dele com seu povo? Ou é apenas uma forma alegórica chocante de impactar os leitores (inicialmente ouvintes) da mensagem que está por ser anunciada/proclamada/lida?
            Incontáveis comentaristas bíblicos têm oferecido sua contribuição, mais ou menos aceita, para resolver essa equação teológica. Em decorrência do espaço limitado que dispomos aqui, restrinjo-me apenas três interpretações mais popular desta narrativa, com suas multiplicas explicações distintas em relação aos detalhes da história.
 Visão ou Sonho: a quase totalidade dos comentaristas hebreus concordam com esta opinião, que o Profeta não esposou realmente uma mulher, mas que lhe foi ordenado a fazer isso em uma visão, de modo que o profeta teve apenas um sonho ou quando muito uma visão de que havia se casado com uma mulher que posteriormente se prostituiu, mas mesmo assim continuou sendo amada pelo marido (profeta), e se utilizou isso para ilustrar a nação de Israel e a sua infidelidade religiosa, sendo eles povo de Deus firmado através da Aliança quando da promulgação da Lei no Sinai.
Parábola ou Alegoria: neste caso o profeta elabora essa introdução de sua mensagem na forma parabólica ou alegórica.[1]
Essas explicações foram elaboradas para se evitar uma interpretação literal do texto que segundo eles impugnaria a santidade de Deus, bem como colocaria o profeta em uma situação moral ambígua com os ensinos éticos religiosos. Apelam para o fato que psicologicamente o profeta ficaria abalado se recebesse tal ordem direta da parte de Deus.
Todavia, há objeções em relação a ambas as propostas. Ferem uma interpretação literal das frases e pormenores da narrativa. Absolutamente nada no texto indica ou sugere que se trata de algo semelhante, pois não há nenhuma menção ou referência a qualquer coisa desse tipo na passagem, nem o contexto suporta uma noção de uma visão/sonho ou mesmo alegoria. Mesmo que o fosse, não estaria livre de implicações morais tanto quanto uma interpretação literal. Talvez fosse até pior, pois colocaria a esposa e os filhos do profeta em uma posição constrangedora diante dos ouvintes da mensagem do profeta. Desta forma, uma compreensão de que se trata de uma experiência trágica do profeta com sua esposa a quem ama genuinamente, nos parece mais coerente e plausível, para servir de genuíno modelo do amor gracioso e imutável de Deus para com seu povo idolatra.
 Literal: Há muitos e competentes estudiosos bíblicos que compreendem se tratar na verdade de uma história verídica e real. A razão alegada é de que o texto apresenta detalhes que nada tem de alegórico, como, os nomes de Gômer e seu pai Diblaim (1.3), bem como o valor pago pelo profeta para resgatar Gômer (3.2). Outro argumento é que pelo simples fato de ser uma alegoria não minimiza o constrangimento da ordem divina. Mas entre esses interpretes há muitas variações na intepretação dos pormenores da narrativa. Entendem alguns que Gômer já era uma prostituta, com filhos ilegítimos quando o profeta Oséias a tomou como esposa, entretanto, essa é a menos popular das palavras do profeta. Alguns entendem que a narrativa indica que Gômer era uma jovem virgem quando se casou com o profeta, mas posteriormente acabou sendo seduzida e cedeu às suas inclinações imorais, presente na religião do baalismo tão popular naqueles dias; então ela acaba engravidando e gerando os três filhos ilegítimos quando ainda coabitava com Oséias. Finalmente acaba por abandonar o profeta, em franca decadência moral, torna-se escrava sexual-sacerdotal, sendo resgatada pelo marido compassivo, mas inicialmente não exerce a posição de esposa. Em uma variação alguns interpretam que de fato Gômer praticava o adultério cultual, mas permaneceu fiel como esposa do profeta.
Evidentemente que refutar cada uma dessas propostas necessitaríamos de um espaço muito maior do que dispomos aqui. Como conclusão é possível afirmarmos que cabe uma interpretação em harmonia com os grandes ensinos da profecia, e plenamente inserido na psicologia dos escritores bíblicos, e livre de problemas morais, evitando força ou mesmo extravasar o sentido do texto profético.
O fato é que as vergonhosas experiências conjugal e familiar do profeta serviram para preparar Oséias para ser o instrumento adequado de Deus para proclamar sua mensagem da fidelidade de Deus e a infidelidade de Israel.
Nenhum dos profetas sentiu o quão terrível era a promiscuidade espiritual dos israelitas, como Oséias. Em suas narrativas/poéticas é perceptível a hediondez da infidelidade de Israel para com Yahweh. O ouvinte/leitor sofre juntamente com o profeta por amar uma mulher iníqua; acompanha a disposição do marido que por amor se dispõe a busca-la de volta, tornando fácil a relação com o amor persistente de Deus que sempre busca seu povo apóstata. Ainda que a cena em sua inteireza pareça absurda é preciso lembrar que a vontade de Deus é sempre norteada por seu propósito imutável, de maneira que apesar de toda loucura e dureza do coração humano, a Sua vontade prevalece. Como expressa tão bem Hubbard:
Ademais, o livro perde algo de sua pungência, força e emoção, caso não estejamos lidando com uma história real, em que um profeta sofredor aprende e ensina imensidades de lições sobre o sofrimento de um Deus traído por Seu povo (1993, p. 60).
            Quando examinamos a segunda parte do relato profético de Oséias (captos 4 a 14), não vamos encontrar referência direta deste contexto familiar/conjugal do profeta, entretanto, é impossível não vermos ali todas as características de um Deus amoroso continuamente em busca de seu povo promiscuo.
            Desta forma uma interpretação mais coerente é classifica-la como sendo uma profecia dramatizada, visto que é resultante de diretrizes divinas (1.2; 3.1), com explicações claras nas ordens (1.2b; 33.1b), pois o profeta haverá de agir no lugar de Deus e falar por Ele. Pois como em outros casos similares (Is cap. 20; Jr caps. 27-28 e Ez caps. 4-5, 12.1-16; 24.15-27) Oséias é o próprio sinal/ilustração de sua mensagem para seus ouvintes (cf. Is 8.18; Ez 24.27), de modo que, Oséias é tanto um símbolo profético da ira de Deus na manifestação do juízo, quanto do amor divino na restauração. E conclui Hubbard:
Isso significa que a história não é uma ilustração compilada da experiência humana e então aplicada como mensagem espiritual, mas um acontecimento pessoal verdadeiro planejado por Javé, em que Oséias executa, a um custo pessoal extremo, os santos propósitos de Deus (1993, p. 61).  
 E Heschel (1962, p. 56) completa: “Só experimentando plenamente em sua própria vida aquilo por que o Consorte divino de Israel passou é que o profeta pôde ser solidário com a situação divina”.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/

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Referências Bibliográficas
BRIGTH, J. História de Israel. São Paulo: Ed. Paulus, 1980.
CHAMPLIN, R. N. Enciclopédia de bíblia, teologia e filosofia, v. 1. São Paulo: Hagnos, 2006.
CRABTREE, A. R. O livro de Amós. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1960.
HESCHEL, A. J. The Prophets. Nova Iorque e Evanston: Harper & Row, 1962.
HOFF, Paul. Os livros históricos. São Paulo: Ed. Vida, 2003.
HUBBARD, David A. Oséias – introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova e Mundo Cristão, 1993. [Série Cultura Cristã].
LASOR, William S., HUBBARD, David A. e BUSH, Frederic W. Introdução ao antigo testamento. Tradução: Lucy Yamakamí. São Paulo: Edições Vida Nova, 1999.
MILLARD, Alan. Descobertas dos tempos bíblicos. São Paulo: Ed. Vida, 1999. REED, Oscar F. O livro de Oséias. Rio de Janeiro: CPAD, 2005. [Comentário Bíblico Beacon, v. 5].
ROBINSON, Jorge L. Los doce profetas menores. Texas: Casa Bautista de Publicciones, 1982.
SICRE, José Luís. Profetismo em Israel – o profeta, os profetas, a mensagem. Tradução: João Luís Baraúna. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.
TENNEY, Merrill C. (Org.) Enciclopédia da bíblia – cultura cristã, v. 1. São Paulo: Ed. Cultura Cristã, 2008.



[1] Um cânone de interpretação sancionada por Agostinho proíbe a aceitação literal deste comando, pois, de acordo com o cânon referido, se a linguagem da Escritura for tomada literalmente envolveria algo incongruente ou moralmente inadequada, sendo assim o sentido figurado deve ser preferido.

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