Qualquer estudo do livro do profeta
Oséias terá que enfrentar uma das mais problemáticas questões da literatura
profética e bíblica: a ordem dada por Deus ao seu profeta: “vai, tome uma mulher de prostituição, e terás filho de prostituição; porque a
terra se prostituiu, desviando-se do Senhor”. Seja qual for o ângulo pelo
qual se examina essa ordem, ela sempre nos parecerá absurda e incompatível com
a concepção de Deus que nos foi passada ou nós mesmos construímos ao longo da
nossa leitura e estudo da Bíblia.
Como
devemos interpretar tal ordem de Deus? É um acontecimento histórico, fruto
de uma tragédia pessoal do profeta, empregado por Deus para ilustrar da
depravada relação dele com seu povo? Ou é apenas uma forma alegórica chocante
de impactar os leitores (inicialmente ouvintes) da mensagem que está por ser
anunciada/proclamada/lida?
Incontáveis comentaristas bíblicos
têm oferecido sua contribuição, mais ou menos aceita, para resolver essa
equação teológica. Em decorrência do espaço limitado que dispomos aqui,
restrinjo-me apenas três interpretações mais popular desta narrativa, com suas
multiplicas explicações distintas em relação aos detalhes da história.
Visão
ou Sonho: a quase
totalidade dos comentaristas hebreus concordam com esta opinião, que o Profeta
não esposou realmente uma mulher, mas que lhe foi ordenado a fazer isso em uma
visão, de modo que o profeta teve apenas um sonho ou quando muito uma visão de
que havia se casado com uma mulher que posteriormente se prostituiu, mas mesmo
assim continuou sendo amada pelo marido (profeta), e se utilizou isso para
ilustrar a nação de Israel e a sua infidelidade religiosa, sendo eles povo de
Deus firmado através da Aliança quando da promulgação da Lei no Sinai.
Parábola
ou Alegoria: neste caso o
profeta elabora essa introdução de sua mensagem na forma parabólica ou
alegórica.[1]
Essas explicações foram
elaboradas para se evitar uma interpretação literal do texto que segundo eles
impugnaria a santidade de Deus, bem como colocaria o profeta em uma situação
moral ambígua com os ensinos éticos religiosos. Apelam para o fato que
psicologicamente o profeta ficaria abalado se recebesse tal ordem direta da
parte de Deus.
Todavia, há objeções em
relação a ambas as propostas. Ferem uma interpretação literal das frases e
pormenores da narrativa. Absolutamente nada no texto indica ou sugere que se
trata de algo semelhante, pois não há nenhuma menção ou referência a qualquer
coisa desse tipo na passagem, nem o contexto suporta uma noção de uma visão/sonho
ou mesmo alegoria. Mesmo que o fosse, não estaria livre de implicações morais
tanto quanto uma interpretação literal. Talvez fosse até pior, pois colocaria a
esposa e os filhos do profeta em uma posição constrangedora diante dos ouvintes
da mensagem do profeta. Desta forma, uma compreensão de que se trata de uma
experiência trágica do profeta com sua esposa a quem ama genuinamente, nos
parece mais coerente e plausível, para servir de genuíno modelo do amor gracioso
e imutável de Deus para com seu povo idolatra.
Literal: Há muitos e competentes estudiosos
bíblicos que compreendem se tratar na verdade de uma história verídica e real. A
razão alegada é de que o texto apresenta detalhes que nada tem de alegórico,
como, os nomes de Gômer e seu pai Diblaim (1.3), bem como o valor pago pelo profeta
para resgatar Gômer (3.2). Outro argumento é que pelo simples fato de ser uma
alegoria não minimiza o constrangimento da ordem divina. Mas entre esses
interpretes há muitas variações na
intepretação dos pormenores da narrativa. Entendem alguns que Gômer já era uma
prostituta, com filhos ilegítimos quando o profeta Oséias a tomou como esposa, entretanto,
essa é a menos popular das palavras do profeta. Alguns entendem que a narrativa
indica que Gômer era uma jovem virgem quando se casou com o profeta, mas
posteriormente acabou sendo seduzida e cedeu às suas inclinações imorais,
presente na religião do baalismo tão popular naqueles dias; então ela acaba
engravidando e gerando os três filhos ilegítimos quando ainda coabitava com
Oséias. Finalmente acaba por abandonar o profeta, em franca decadência moral,
torna-se escrava sexual-sacerdotal, sendo resgatada pelo marido compassivo, mas
inicialmente não exerce a posição de esposa. Em uma variação alguns interpretam
que de fato Gômer praticava o adultério cultual, mas permaneceu fiel como
esposa do profeta.
Evidentemente que refutar cada
uma dessas propostas necessitaríamos de um espaço muito maior do que dispomos
aqui. Como conclusão é possível afirmarmos que cabe uma interpretação em
harmonia com os grandes ensinos da profecia, e plenamente inserido na
psicologia dos escritores bíblicos, e livre de problemas morais, evitando força
ou mesmo extravasar o sentido do texto profético.
O fato é que as vergonhosas
experiências conjugal e familiar do profeta serviram para preparar Oséias para
ser o instrumento adequado de Deus para proclamar sua mensagem da fidelidade de
Deus e a infidelidade de Israel.
Nenhum dos profetas sentiu o
quão terrível era a promiscuidade espiritual dos israelitas, como Oséias. Em
suas narrativas/poéticas é perceptível a hediondez da infidelidade de Israel
para com Yahweh. O ouvinte/leitor sofre juntamente com o profeta por amar uma
mulher iníqua; acompanha a disposição do marido que por amor se dispõe a
busca-la de volta, tornando fácil a relação com o amor persistente de Deus que
sempre busca seu povo apóstata. Ainda que a cena em sua inteireza pareça absurda
é preciso lembrar que a vontade de Deus é sempre norteada por seu propósito
imutável, de maneira que apesar de toda loucura e dureza do coração humano, a
Sua vontade prevalece. Como expressa tão bem Hubbard:
Ademais, o livro perde algo de
sua pungência, força e emoção, caso não estejamos lidando com uma história
real, em que um profeta sofredor aprende e ensina imensidades de lições sobre o
sofrimento de um Deus traído por Seu povo (1993, p. 60).
Quando
examinamos a segunda parte do relato profético de Oséias (captos 4 a 14), não
vamos encontrar referência direta deste contexto familiar/conjugal do profeta, entretanto,
é impossível não vermos ali todas as características de um Deus amoroso
continuamente em busca de seu povo promiscuo.
Desta
forma uma interpretação mais coerente é classifica-la como sendo uma profecia
dramatizada, visto que é resultante de diretrizes divinas (1.2; 3.1), com
explicações claras nas ordens (1.2b; 33.1b), pois o profeta haverá de agir no
lugar de Deus e falar por Ele. Pois como em outros casos similares (Is cap. 20;
Jr caps. 27-28 e Ez caps. 4-5, 12.1-16; 24.15-27) Oséias é o próprio sinal/ilustração
de sua mensagem para seus ouvintes (cf. Is 8.18; Ez 24.27), de modo que, Oséias
é tanto um símbolo profético da ira de Deus na manifestação do juízo, quanto do
amor divino na restauração. E conclui Hubbard:
Isso significa que a história
não é uma ilustração compilada da experiência humana e então aplicada como
mensagem espiritual, mas um acontecimento pessoal verdadeiro planejado por
Javé, em que Oséias executa, a um custo pessoal extremo, os santos propósitos
de Deus (1993, p. 61).
E Heschel (1962, p. 56) completa: “Só experimentando plenamente em sua própria
vida aquilo por que o Consorte divino de Israel passou é que o profeta pôde ser
solidário com a situação divina”.
Utilização
livre desde que citando a fonte
Guedes,
Ivan Pereira
Mestre
em Ciências da Religião.
Universidade
Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro
Blog
Historiologia
Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/
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– cultura cristã, v. 1. São Paulo: Ed. Cultura Cristã, 2008.
[1] Um
cânone de interpretação sancionada por Agostinho proíbe a aceitação literal
deste comando, pois, de acordo com o cânon referido, se a linguagem da
Escritura for tomada literalmente envolveria algo incongruente ou moralmente
inadequada, sendo assim o sentido figurado deve ser preferido.
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