Um
personagem bíblico que extrapola as fronteiras, muitas vezes rígidas, das
tradições religiosas é sem dúvida alguma Abraão. Ele se constitui em uma figura
fundamental nas três maiores tradições religiosas monoteísta: judaísmo,
islamismo e cristianismo. Mas até recentemente Abraão era, e talvez
ainda seja, principalmente pelos cristãos/evangélicos brasileiros, um dos
personagens mais ignorados da Bíblia, não recebendo os devidos créditos em
decorrência de sua imensa contribuição para uma concepção totalmente renovadora
de religião. Abraão é o ponto de partida “de
tudo o que se refere à evolução da cultura e sensibilidade” (CAHILL, 1998, p.
247), em outras palavras – Abraão revolucionou o mundo – assim como o
cristianismo séculos depois – alvoroçaria o mundo greco-romano (Atos 17.6).
Abraão no Cristianismo
Durante seu ministério, no que concerne à sua mensagem do
Reino de Deus, Jesus insere a figura de Abraão como parte integrante. Dentro de
sua perspectiva Abraão representava um Reino universal e não exclusivista e/ou
nacionalista que o judaísmo em seus dias havia produzido. Jesus declara: “Mas eu vos digo que muitos virão do oriente
e do ocidente, e assentar-se-ão à mesa com Abraão,
e Isaque, e Jacó, no reino dos céus; E os filhos do reino serão lançados nas
trevas exteriores; ali haverá pranto e ranger de dentes” (Mt 8.11,12; cf.
Lc 13.29).
Posteriormente o apóstolo Paulo, que cita o patriarca em
suas epístolas, preservadas no Novo Testamento, mais do que qualquer outra
figura, exceto Cristo, ensina que todo aquele que crê em Jesus Cristo torna-se metaforicamente
“filho de Abraão”, sem ter que pertencer à família biológica e mais ainda, sem
ter que assumir toda cultura religiosa judaica:
Portanto, é pela fé, para que seja segundo a graça, a fim
de que a promessa seja firme a toda a posteridade, não somente à que é da lei,
mas também à que é da fé que teve Abraão,
o qual é pai de todos nós, (Como está
escrito: Por pai de muitas nações te
constituí) perante aquele no qual creu, a saber, Deus, o qual vivifica os
mortos, e chama as coisas que não são como se já fossem (Rm 4.16,17).
Foi por meio do chamado de Abraão que Deus estabelece um
povo para si, o qual pela fé em Cristo, um descendente de Abraão, possibilita filiação
indistintamente, rompendo totalmente qualquer segregação entre filhos e não
filhos, judeus ou gentios. E Paulo continua sua argumentação afirmando que todo
cristão faz parte do “corpo de Cristo” e uma vez que Cristo é geneticamente “filho
de Abraão”, conclui o apóstolo, todos os cristãos são igualmente filhos de
Abraão e herdeiros de suas promessas (Gl 3.16-17; 28-29; citando Gn 12.7;
17.7). Para o apóstolo dos gentios, a aliança estabelecida por Deus com Abraão
antecede a renovação feita por meio de Moisés e a Lei – "a promessa feita
a Abraão e seus descendentes ... não foi dada pela lei"; da mesma forma a
fé de Abraão antecede o ato da circuncisão, que somente foi estabelecida muito
tempo depois, o que interpreta Paulo de que os cristãos gentios não precisam se
tornar circuncidado para se constituírem herdeiros de Abraão. Portanto, conclui
o apóstolo Paulo, o batismo decorrente da fé em Jesus Cristo é suficiente para
inserir todos nas promessas outorgadas à Abraão. Evidentemente que essa é uma
argumentação especificamente cristã, entretanto compartilha dos argumentos
universalistas judaico que ensinam que a genuína filiação de Abraão está
vinculada à fé, não simplesmente pelo vínculo biológico.
Ainda nos primórdios do cristianismo, uma interpretação
gnóstica da figura paulina de Abraão tentou “espiritualizar” o patriarca,
afirmando que ele não teve “pecado”. Mas Tiago em sua carta já contradizia essa
fútil argumentação, afirmando que Abraão jamais desassociou sua fé das suas
obras (2.14-26), pois qualquer afirmação de fé sem uma conciliação com as boas
obras é falsa e anticristã. Abraão sempre será um modelo de todo aquele que
crendo vivem conforme seu exemplo.
Tendo em Abraão um tipo de crente, podemos afirmar que o
judaísmo e o cristianismo, compartilham da mesma raiz, ainda que em um sentido
estrito. Ambos surgem como resposta, ainda que com propostas distintas, para
proporem a fé de Abraão como modelo a ser seguido:
Para o judaísmo, com uma proposta exclusivista, no esforço
de manter sua identidade como nação escolhida por Deus, através de Abraão, pois
Deus lhe deu promessas que se cumprem no tempo/espaço.
A proposta cristã é oposta, mesmo partindo da mesma experiência
israelita, mas entendendo que a fé de Abraão se tornou inclusiva em Jesus Cristo,
pois abrange todas as nações, povos e etnias sem qualquer distinção. Nesse
sentido, todos os cristãos em todos os lugares e épocas, tornam-se em Cristo Jesus,
igualmente filhos de Abraão, pois participam da mesma fé e das mesmas promessas,
espirituais, que Deus aliançou com Abraão.
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes,
Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia
Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/
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Referência
Bibliográfica
CAHILL,
Thomas. The Gifts of the Jewa: how a
tribe of desert nomads changed the way everyone thinks and feels. New York,
Anchor Books and Doubleday. [The hinges of history: vol. 2].
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