A
narrativa de Atos é intercalada por vários esboços de discursos[1]
e/ou pregações, perfazendo aproximadamente um
terço do livro, sendo que a maioria está relacionada diretamente a Pedro e
Paulo. Ainda que haja muita discussão se de fato foram pronunciados pelos
personagens ou se Lucas apenas coloca estes discursos em seus lábios,[2] há
um consenso de que estes discursos fornecem uma excelente trilha que apontam o
imenso caminho percorrido pela pregação e ensino apostólico.
Isto é especialmente verdadeiro em relação aos
discursos de Pedro, que tranquilamente poderiam ser rastreados até sua fonte
palestinense primaria. Contêm o que parece ser alguns dos primitivos títulos de
Jesus, por exemplo, "Servo” de
Deus (Atos 3:13, 26), e evita por exemplo o título "Filho de Deus”; não relaciona perdão, como Paulo faz, com a morte
de Jesus. É possível, por outro lado, encontrar um padrão comum da pregação
apostólica nesses discursos, que se repete, no discurso de Paulo na Antioquia
da Pisídia (13: 17-41), e ocasionalmente pode ser vislumbrada nas epístolas de
Paulo onde a mensagem está mais desenvolvida.
Este
padrão consiste de uma série de declarações sobre Jesus e ligado diretamente a
um apelo à conversão:
Jesus de Nazaré é o Messias, o Cristo,
enviados por Deus,
como prometido nas Escrituras,
como predito pelos profetas,
para o perdão dos pecados, para
salvação do mundo;
Ele foi rejeitado pelo povo, condenado
pelas autoridades;
Ele sofreu, foi crucificado,
morreu e foi sepultado
Mas Deus o ressuscitou dentre os mortos e
o elevou às alturas
e ele vai voltar um dia para nós,
em glória.
Em
resposta, as pessoas devem se arrepender, crer, ser batizada,
receber
o Espírito Santo e juntar-se à comunidade dos crentes (Igreja).
Há
boas razões para pensar que esse modelo representa as principais linhas da
pregação apostólica daqueles primeiros dias, embora deva ter tido muitas
variações individuais e sofreu um processo contínuo de desenvolvimento, como
pode ser verificado nos escritos posteriores de I Pedro e nas epístolas
paulinas. Os discursos de Atos podem, portanto, ser considerado não como um
registro literal e integral das palavras faladas em várias ocasiões, mas como
uma série de breves sínteses[3]
que geralmente dão uma ideia precisa dos principais pontos da pregação
apostólica, numa fase precoce; estes resumos foram devidamente editorados seja
pelo próprio Lucas ou pelo editor da fonte utilizada por ele, que coincidirá
com a situação particular em que estão colocados.
A
importância deste ponto de vista dos discursos, na primeira metade de Atos
reside no fato de que, com essas provas da pregação pré-paulinas da Igreja é
possível estimar um justo processo de desenvolvimento, que teve lugar na
mensagem proclamada entre os primeiros dias da igreja de Jerusalém e do
encerramento do primeiro século.
Os
discursos relacionados a Paulo na segunda metade de Atos também são de grande
importância. À primeira vista são estranhamente diferentes do ensino epistolar
de Paulo, pois tem pouco a dizer sobre os grandes temas doutrinários
“paulinos" de Fé e Obras e da união com Cristo, que são tão proeminentes
nas epístolas (cf. Atos 13:39, 20:21, 24), e o Paulo de Atos utiliza-se de
muitas expressões que não se repetem nas epístolas (por exemplo, Atos 20:28,
26:23).
Esta
divergência na verdade tem se constituído na base para que alguns estudiosos
rejeitem a autoria lucana de Atos. Deve ser lembrado, no entanto, que as
epístolas de Paulo foram escritas às pessoas e/ou comunidades que estavam
afinadas com o ensino dele, e o ensino teológico nelas inseridos visam corrigir
as dificuldades de interpretação que surgiram ou para ampliar e aprofundar os
conceitos anteriormente ensinados.
Em
Atos, por outro lado, Lucas parece interessado em utilizar-se dos resumos da
pregação de Paulo para ilustrar a forma diferenciada de abordagens para se
alcançar os mais diversos públicos, que estavam ouvindo a mensagem cristã, pela
primeira vez.
Os
discursos dos Atos podem ser divididos em querimático-missionários
(2.14-36; 3.12-26; 4.8-12; 5.29-32; 10.34-43); proféticos (7.2-54); apologéticos
(22.1-21; 24.10-21; 26.2-23), resolutivos
(15.7-11, 13-21) ou de gênero composto
(20.18-35).
Conclusão
Assim
sendo, estes discursos constituem um artifício literário por meio do qual o
autor expõe suas ideias, desenvolve seu ensinamento, fortalece a fé do leitor.
Distribuídos harmonicamente no texto, representam um momento de pausa e
reflexão no desenvolvimento dos acontecimentos, ajudando o leitor a aprofundar
o conteúdo das partes narrativas. Em suas formas concisas, terminam sempre no
momento certo, quando o autor já acabou de manifestar seu pensamento. Não são,
pois, dirigidos aos personagens que
aparecem no relato, mas são oferecidos por Lucas ao leitor como explicações úteis para entender sua mensagem.
Utilização
livre desde que citando a fonte
Guedes,
Ivan Pereira
Mestre
em Ciências da Religião.
Universidade
Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro
Blog
Historiologia
Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br//
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Referências
Bibliográficas
BERGER, Klaus. As formas literárias do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 1998.
EARLE, Ralph. Comentário Bíblico Beacon, v.7. São Paulo: CPAD, 2006.
SMITH, T. C. Comentário Bíblico Broadman, v. 10. Rio de Janeiro: JUERP, 2ª ed.,
1987.
[1] “Os discursos dos evangelhos
distinguem-se claramente dos de Atos, embora tenham muitos pontos em comum
provenientes da tradição retórica. Na tradição sinótica os discursos são
composições temáticas (reino de Deus, juízo vindouro, ensinos protréptico). Em
Atos, porém, os discursos estão via de regra, em função de uma única finalidade
redacional” (BERGER, 1998, p. 71).
[2] “Dificilmente será razoável presumir que o autor
de Atos relatou literalmente o que foi dito em cada discurso que inseriu nesse
seu livro. Contudo, ao mesmo tempo, não devemos acusar Lucas de inventar tudo o
que colocou na boca de seus personagens. Ele possuía materiais primitivos de
pregações feitas na igreja, que podia usar para construir os sermões” (SMITH, 1987,
p. 20). Selwyn em seu excelente comentário da Primeira Epístola de Pedro, onde
faz um paralelo entre os sermões em Atos e o texto da epístola conclui que
mediante a ausência de ideias teológicas avançadas “nos primeiros discursos de
Pedro colabora fortemente para o uso das fontes documentais primitivas” e ele
faz referência ainda ao “estilo semita áspero e à doutrina primitiva que marcam
partes dos discursos de Pedro”. (Apud, EARLE, 2006, p. 220).
[3] “Outra tendência que havia entre os
historiadores contemporâneos, da qual Lucas parece estar livre, era alongar um
discurso, que, quando pronunciado originalmente, podia ter sido bem curto.
Mesmo o discurso mais longo de Atos pode não representar tudo o que foi dito na
ocasião. Lucas parece resumir, em vez de expandir a mensagem” (SMITH, 1987, p.
20).
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