Perseguir
o propósito do autor é um desafio a que todo estudante de texto, incluindo a Bíblia
precisa perseverar. A recompensa é que uma vez descoberto, haveremos de
compreender e aplicar muito melhor sua mensagem.
Espera-se
de toda obra séria que tenha um propósito. Os escritores bíblicos não
escreveram aleatoriamente e o Inspirador deles não perderia tempo em comunicar
uma mensagem desprovida de objetivo. Deste modo, os estudiosos têm se debruçado
ao longo destes séculos para encontrarem o propósito de Lucas ao escrever – Atos
- seu segundo volume. Vejamos alguns destes esforços:
a) Com
base no título “Atos dos Apóstolos” muitos tem deduzido que o escritor
pretendia registrar as ações daquele primeiro grupo apostólico. Entretanto, ao
examinar-se o conteúdo do livro fica nítido que Lucas não tinha a intenção de
acompanhar o desempenho especifico do grupo apostólico. Ainda que em várias
ocasiões faça citações deles de forma coletiva, apenas alguns são mencionados
pessoalmente (Tiago, João dos demais nada ficamos sabemos) e se destacam num
primeiro momento a figura de Pedro e na metade final a pessoa e ações de Paulo.
Mesmo nestes dois casos as suas histórias são interrompidas em momentos
cruciais, revelando que o foco de Lucas não é a vida dos apóstolos.
b) Muitos
estudiosos se empolgaram com certa abundância de referências que Lucas faz da
pessoa do Espírito Santo. E olhando
pelo número de citações à terceira Pessoa da Trindade realmente há uma certa
lógica. Todavia, falta um Sitz im Leben
(uma condição de vida) para que Lucas se dispusesse a escrever uma obra sobre o
Espírito Santo. O Pentecostes havia ocorrido em seus dias, de modo que nem os
primeiros cristãos ou seus opositores estavam levantando qualquer dúvida ou
questionamento sobre a pessoa e obra do Espírito e sendo assim Lucas não
estaria respondendo a qualquer anseio premente de seus leitores primários, o
que seria no mínimo um grande equívoco dele. Fica mais evidente que o Espírito
não era o foco principal de Atos, quando comparamos a forma com que Lucas
apresenta Jesus em seu primeiro volume (evangelho). Ainda que na primeira parte
o Espírito seja mencionado em vários momentos da narrativa, depois de 21.11 ele
volta a ser mencionado apenas em 28.25, perfazendo um hiato de oito capítulos
onde Lucas não faz uma referência ao Espírito, o que contrariaria todo o
objetivo do livro se fosse esse o caso – mas não é. Evidentemente não se quer
com isso minimizar a extraordinária obra do Espírito Santo, pois nada do que
acontecesse em cada página de Atos (e de todos os livros da Bíblia) ocorrem sem
a participação efetiva da terceira Pessoa da Trindade. Os diversos movimentos
carismáticos e dispensacionalistas sempre incentivaram a se ver um “ministério distinto” do Espírito, mas
nem Lucas em Atos ou qualquer outro livro neotestamentário nos autoriza a
separar o que a Trindade uniu. O Espírito vem para dar continuidade à obra
iniciada e realizada por Cristo na cruz. E ainda que somássemos tudo que Lucas
registra em Atos sobre o Espírito, ela seria uma porção mínima da Obra
portentosa realizado pelo Espírito Santo na História da Igreja.
c) Como
já citei em artigo anterior, os mentores da chamada Escola de Tubingen (Baur)
propuseram que Lucas tinha como objetivo reconciliar ou ao menos apaziguar os
conflitos existentes entre os expoentes de Pedro, judeus convertidos, e os de
Paulo, gentios convertidos. Para isto lançam a data do livro o mais longe
possível (98-138 d.C.). Hoje são poucos
os que se quer mantêm esta preposição como uma possibilidade. Os debates
que ocorrem em Atos são protagonizados inicialmente pelos grupos judaizantes e
helenistas e os mediadores foram os próprios apóstolos que resolveram elegendo
os diáconos. Depois temos o registro do grande Concílio de Jerusalém e as
figuras centrais são Tiago e Paulo envolvendo a questão da inclusão dos gentios
e que foi resolvida pela decisão da Assembleia a favor da tese de Paulo e
Barnabé.
d) Outra
proposta praticamente abandonada, e que depende totalmente de uma data muito
avançada, é de que o autor escreve para combater as ideias heréticas de Marcião, que negava os escritos que
considerava “judaicos” e estabeleceu o primeiro cânon neotestamentário onde
continha apenas o evangelho de Lucas e as cartas paulinas. Assim, os cristãos
“ortodoxos” criaram Atos, escrito por Lucas, onde Paulo aparentemente fica
subordinado aos doze, inviabilizando a tese maior de Marcião. É totalmente
descabida e desnecessária tais conjecturas. Exercícios acadêmicos inócuos e
estéreis de qualquer contribuição séria e benéfica para os estudantes das
Escrituras. Estão muito mais próximos das heresias de Marcião do que das
verdades bíblicas.
e) Um
propósito muito interessante é que Lucas deseja demonstrar o triunfo do
cristianismo em relação ao judaísmo. O fato de que os judeus tinham, e continua
tendo, um nacionalismo exacerbado fez com que tentassem fazer do cristianismo
mais uma seita do já diversificado judaísmo. Para eles era até admissível que
os gentios adentrassem ao cristianismo, mas desde que subordinados às leis cerimoniais
judaicas. Todos os relatos de conversam iniciais são pessoas ligadas
diretamente ao judaísmo: Estevão e Felipe são judeus helenistas, Cornélio e o
etíope são prosélitos do judaísmo. Somente após a viagem missionária de Paulo e
a convocação do grande concílio de Jerusalém é que os gentios foram recebidos
em pé de igualdade com os judeus. Mas a ruptura definitiva veio quando os próprios
judeus começaram a abandonar os ritos e cerimoniais do judaísmo. Isto foi um
golpe duro demais para o espírito particularista e isolacionista que havia
moldado o pensamento judaico, principalmente após o exílio babilônico e seu
retorno nos dias de Esdras (458 a.C.) e Neemias (444 a.C.). “Em sua obra de dois volumes – Lucas-Atos –
Lucas nos traça o seu desenvolvimento. Quando escreveu, o Cristianismo já
estava ganhando o mundo gentílico, e os judeus já se sentiam assoberbados com
as conclusões do Cristianismo, do qual por fim se viram obrigados a afastar. No
seu Evangelho, Lucas mostrou que o caráter de que se achava revestido o
movimento cristão provinha do próprio Jesus; não se tratava de forma alguma
duma perversão efetuada por Paulo ou por qualquer outro apóstolo. Jesus jamais
tivera em mente um movimento que se expandisse apenas dentro do judaísmo
nacionalista. Visava, sim, a uma nova humanidade que abarcaria judeus e
gentios. Nos Atos, Lucas nos mostra a expansão desse intento de Jesus, e nos
fala do seu glorioso triunfo na nclusão do gentio e da lament[áveltragédia que
culminou na auto-exclusão do judeu”.
Conclusão
Além
destas, há várias outras tentativas de se definir o propósito principal de
Lucas ao escrever seu segundo volume. Entretanto, não podemos perder de vista
que Lucas escreve uma história, ou seja, seu esforço é de informar seus
leitores acerca dos diversos acontecimentos que já haviam ocorrido. Seu contato
com as mais diversas testemunhas oculares destes fatos, bem como seu contato
com as comunidades iniciais de Jerusalém e Antioquia devem tê-lo empolgado e
motivado a organizar este precioso material de Atos.
Assim,
é preciso vermos em seu trabalho ao menos dois significados gerais: o
significado destes eventos naquele tempo e contexto, e a repercussão destes
eventos nos seus próprios dias.
Utilização
livre desde que citando a fonte
Guedes,
Ivan Pereira
Mestre
em Ciências da Religião.
Universidade
Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro
Blog
Historiologia
Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br//
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