Tendo feito as saudações protocolares, reconhecido o
testemunho positivo da fé vivencial daqueles irmãos e indicado seu proposito em
escrever esta carta, Paulo agora em apenas quatro ou cinco linhas vai fazer uma
das mais extraordinárias definições do que seja o Evangelho. Essas palavras
preciosas do velho apóstolo foram moldadas na bigorna da experiência cristã,
tendo ele próprio recebido as pancadas de inúmeras perseguições, prisões,
açoites e apedrejamento, além de tantas outras provações. Não são palavras de
um erudito confinado em sua biblioteca ou um mercador da mensagem cristã, mas
de um apóstolo que se gastou e se deixou gastar em prol da proclamação da
mensagem salvadora de Cristo, pois se sentia responsabilizado em comunica-la a
todas as pessoas, em todos os lugares em tempo e fora de tempo, mesmo com o
risco permanente de morte que lhe acompanhava como uma nuvem sombria.
Estes dois versos desta epístola aos Romanos, agora em
destaque, tem produzido mais conversões e avivamentos espirituais na História
da Igreja Cristã, do que milhares de reuniões eclesiásticas estéreis e inócuas.
Estas palavras de Paulo deveriam ser pregadas perenemente nos púlpitos das
igrejas até que nos corações e na alma dos ouvintes queimasse as chamas do
genuíno avivamento; até que cada palavra fosse cravada com ponta de diamante,
pelo Espírito, na mente e nos corações de cada cristão.
O Coração do Evangelho
(v. 16) Porque não me envergonho do evangelho, pois é o poder de Deus
para salvação de todo aquele que crê; primeiro do judeu, e também do grego. Porque
no evangelho é revelada, de fé em fé, a justiça de Deus, como está escrito: Mas
o justo viverá da fé.
“Porque não me envergonho do evangelho”
Paulo sempre fez uso dos recursos retóricos que possuía e
emprega aqui uma figura de linguagem, litotes,[1] onde
se utiliza a forma negativa para enfatizar a ideia oposta, ou seja, quando
Paulo declara que “não se envergonha do
evangelho”,[2] significa exatamente o
contrário, nada lhe é mais honroso do que ser um pregador do Evangelho, mesmo
que isso lhe custe e custará a própria vida! Em sua carta anterior aos Gálatas
ele é enfático: “Longe esteja de mim
gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo” (6.14). Ele se
gloriava no Cristo crucificado; para ele não havia honra maior neste mundo do
que ser apóstolo e pregador da mensagem do Cristo morto na cruz - mas aqui ele
prefere dizer - “não me envergonho do
Evangelho” da cruz.
Todavia, há uma razão especifica para que o velho
apóstolo utilize a expressão enfática “não
me envergonho do evangelho” – pois muitos naqueles primeiros dias do
cristianismo e durante todos os séculos até o presente tem se “envergonhado” do Evangelho bíblico. Em
seu último documento escrito, que temos conhecimento, escrito para o jovem
pastor Timóteo há uma exortação reflexiva: “Não
te envergonhes do testemunho de nosso Senhor”, e complementa, “nem de mim, que sou prisioneiro seu” (2
Timóteo 1.8). É possível que o jovem pastor estivesse sendo pressionado por
forças de fora e até mesmo por lideranças internas da comunidade cristã a
amenizar, suavizar, tornar mais palatável a mensagem do Evangelho, quem sabe
sugerindo que colocasse menos ênfase na questão da cruz, pois um “evangelho”
sem a cruz é mais agradável aos ouvidos sensíveis das pessoas – Paulo como seu
mentor e amigo exorta-o: não faça isso! Não tenha vergonha do
Evangelho que salvou sua vida e que foi colocado aos seus cuidados para ser
preservado como um precioso tesouro e repassado a outros de forma idônea.
Vivemos dias em que grande parte dos
evangélicos tem vergonha do Evangelho bíblico (cf. Lc 12.8,9). Fazem todo o
esforço para torna-lo mais “atrativo” para as pessoas – temas como pecado,
juízo, inferno – há muito tempo foi extirpado da boca dos pregadores modernos. Pregar
que todo aquele que não crer já está condenado não é politicamente correto;
declarar que todo pecado, seja qual for, ofende a Deus é algo ultrapassado,
afirmar que a Bíblia é inspirada e única regra de fé e prática é inadmissível.
Sim, estas pessoas tem vergonha do Evangelho bíblico. O Evangelho bíblico foi e
sempre será loucura e escândalo para aqueles que não creem, pois denuncia
abertamente seu estado de pecado e miséria. Algumas linhas posteriores Paulo
vai fazer uma radiografia da Sociedade em seus dias, à luz do Evangelho, e o
resultado é uma completa metástase do pecado em cada célula da Sociedade humana
em seu estado natural. Mas certamente esta radiografia e diagnóstico bíblico são
inaceitáveis para qualquer geração pervertida e incrédula e a nossa não será
diferente. Nesse exato momento (histórico) estão sendo forjadas na bigorna do
inferno instalada no Congresso brasileiro leis que haverão de proibir toda e
qualquer pregação do Evangelho bíblico. Em breve serão expostos à luz do dia
todos aqueles que têm e aqueles que não têm VERGONHA do Evangelho de Cristo.
E por que Paulo não se envergonhava
do Evangelho? Simplesmente porque o Evangelho que ele pregava não era seu, mas
de Jesus Cristo. Em outras palavras, o poder do Evangelho não estava (nunca
esteve) naquele que prega ou ensina, mas no autor do Evangelho – Jesus Cristo.
O Evangelho genuinamente bíblico é de Deus e o poder dele emana do próprio
Deus. Assim como os profetas, Paulo e quaisquer outros pregadores ao longo
desses milênios são unicamente porta-vozes da mensagem de Deus. Paulo jamais se
envergonha do Evangelho porque o poder é de Deus – todos nós somos apenas vasos
de barro, para que toda a glória seja unicamente do Pai, do Filho e do Espírito
Santo. Amém!
Infelizmente nos dias atuais (e
antes também) as pessoas ao se dirigirem aos locais de culto não dizem: qual parte do Evangelho ou qual texto da
bíblia vai ser pregado hoje? Mas dizem: quem
vai pregar hoje? A ênfase não está no poder da Palavra de Deus (Evangelho),
mas no “poder” do pregador – dai a necessidade de títulos grandiosos
(apóstolos; bispos; evangelistas, pastores, doutores, mestres, papa, etc....).
Mas Paulo deixa bem claro que o PODER DE DEUS está única e exclusivamente no
EVANGELHO (na Bíblia; Palavra de Deus). Nenhum pregador pode converter ou
transformar a vida de uma única pessoa, somente o Evangelho têm poder para
converter e transformar a vida do pecador mais contumaz e depravado em um
“filho de Deus”. Porque não me envergonho
do evangelho, pois é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê;
primeiro do judeu, e também do grego.
Porque no evangelho é revelada, de fé em fé, a justiça de Deus, como
está escrito: Mas o justo viverá da fé.
O Evangelho da Justiça
De acordo com Paulo ele não tinha vergonha do Evangelho
porque era as boas novas de salvação, proveniente do próprio Deus e, portanto,
poderoso para transformar o maior dos pecadores (ele próprio) e uma mensagem
para todos os povos em todos os lugares e em todos os tempos.
Agora Paulo acrescenta outro aspecto
extraordinário do Evangelho: revela a
justiça de Deus! A falta de compreensão dessa dimensão da mensagem
evangélica tem produziu mais malefícios à igreja do que qualquer outra heresia.
O inferno trabalha dia e noite para separar o Evangelho da Justiça, como se
fossem duas coisas distintas e antagônicas, mas o velho apóstolo sabia que o
Evangelho e a Justiça de Deus são inseparáveis. O Evangelho revela a Justiça de
Deus e a Justiça é plenamente satisfeita no Evangelho de Deus. Quando está
verdade explodiu no coração e permeou toda a alma de Martinho Lutero ele
finalmente sentiu-se reconciliado com Deus e experimentou da paz que excede
todo o entendimento.
Um evangelho que não revela a
Justiça de Deus é um engodo do inferno para manter as pessoas debaixo da ira e
da condenação de Deus. Nada ofende mais o ser humano na sua essência natural do
que ser desmascarado em sua falsa autojustiça. Aquele jovem rico que se
aproxima de Jesus Cristo, cheio de si mesmo, afasta-se triste após perceber que
não era tão bom quanto parecia aos seus próprios olhos. Nada irrita e frustra
as pessoas quando ouvem o Evangelho de Cristo e descobrem que não elas não são
boas, justas e inocentes como imaginavam que fossem. A expressão mais adiante
de Paulo de que “todos pecaram”
coloca na mesma posição de condenação: homens e mulheres, jovens e velhos,
ricos e pobres, cultos e incultos. E ele ainda completara o quadro declarando
em alto e bom som: “não há justo, nenhum
sequer”. Enquanto a pessoa estiver cheia de si mesma e fundamentada em sua
própria justiça, jamais entenderá o que Jesus Cristo fez por ele na Cruz.
Enquanto a pessoa não entender que está assentada no banco dos réus e que está
por ouvir a sentença de condenação pronunciada pelo Juiz eterno, ela não dependerá
da justiça que emana da cruz. Saulo de Tarso era autossuficiente em sua
religiosidade judaica, mas depois que compreendeu a Justiça de Deus, o agora
Paulo não tinha nenhum pudor em declarar: porque dos pecadores eu sou o
principal.
Ao separar a Justiça de Deus da
pregação do Evangelho da Graça os pregadores atuais lançam seus ouvintes ao
inferno! Somente compreenderá o Evangelho de Cristo aqueles que sentirem toda
sua miserabilidade diante da Justiça de Deus – “sê propicio a mim pecador”.
Em cegueira eu andei e perdido vaguei,
Longe, longe do meu Salvador!
Mas da glória desceu, o seu sangue verteu
E salvou este pobre pecador.
Foi na cruz, foi na cruz que um dia eu vi
Meu pecado castigado em Jesus!
Foi ali pela fé, que meus olhos abri
E agora me alegro em sua luz!
Vivendo pela Fé
A justiça que se manifesta pela fé
não é encontrada em nenhuma outra religião. Todas as demais religiões trabalham
com o pressuposto de que o ser humano é bom e que por seu esforço e dedicação
pode tornar-se justo; mas no Evangelho a justiça emana unicamente de Deus o
justo e justificador de todo aquele que crê na eficiência e suficiência do sacrifício
redentor de Jesus Cristo. Como tão bem
Paulo vai declarar mais adiante – o Justo pelo injusto. Aqui está o cerne do Projeto Redentor de Deus,
o cerne da salvação.
Nestas quatro linhas Paulo menciona “fé”
quatro vezes – demonstrando a centralidade da fé. Toda interpretação e
compreensão desta epístola, bem como da própria bíblia, estará prejudicada se
não houver um entendimento correto do que é “fé”. A grande armadilha de Satanás
é incutir na mente e no coração das pessoas que esse negócio de fé não é
importante, o que realmente importa é você acreditar em alguma coisa, seja o
que for. Certamente o inferno estará lotado de toda sorte de “crentes”, dos
mais variados credos religiosos, incluindo “evangélicos”.
A fé à qual Paulo se refere aqui não
é proveniente do coração corrupto do ser humano decaído e morto em seus delitos
e pecados; a fé aqui é um dom (presente) de Deus, mediante sua graça (favor não
merecido). A bíblia não acalenta a ilusão de que todas as pessoas serão salvas,
mas que unicamente serão salvas aquelas que experimentam o inefável dom da fé. Desta
forma, Paulo está declarando que a fé que nos justifica diante do tribunal de
Deus não é proveniente de nós mesmos, mas provém da graça de Deus! “O justo viverá pela fé”, somente quando
compreendeu esta verdade Martinho Lutero abandou todo seu arsenal de
autoflagelação, e seu saco furado de boas obras e religiosidade e depositou sua
fé unicamente no sacrifício de Jesus Cristo, que o purifica e justifica de
todos os pecados. Paulo é enfático – de
fé em fé – “Ele não diz, de fé em
obras, nem, de obras em fé; mas, de ‘fé em fé’, isto é, somente pela fé” (M.
Poole, apud WILSON, 1981, p. 12). Foi assim nos dias do profeta Habacuque (2.4)
e continua sendo assim nos dias de Paulo e nos dias atuais.
Desde o princípio até o final somos salvos unicamente
pela fé na retidão justificadora de Cristo. Uma vez que sou justificado por
Deus e não por meus esforços, estou justificado para sempre, de maneira que,
nada e nem ninguém – nem morte, nem vida, nem o presente ou o futuro, nem principados,
nem potestades – nada, absolutamente nada, poderá me condenar, pois é Deus quem
me justifica. Aleluia!
Justificados, pois pela fé
temos paz com Deus!
Utilização livre desde
que citando a fonte
Guedes,
Ivan Pereira
Mestre em Ciências da
Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Referências
Bibliográficas
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Testamento comentado. Buenos Aires (Argentina), Asociación Editorial
la Aurora, 1974.
BRUCE, F. F. Romanos – introdução e
comentário. São Paulo: Vida Nova e Mundo Cristão, 1991.
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Valter Graciano Martins. São Paulo: Edições Paracletos, 1997. [Comentário à
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CRANFIELD, C. E. B. Carta aos Romanos. Tradução
Anacleto Alvarez. São Paulo: Edições Paulinas, 1992. [Grande Comentário
Bíblico].
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GREATHOUSE, William M. A epístola aos Romanos.
Tradução Degmar Ribas Júnior. Rio de Janeiro: CPAD, 2006. [Comentário Bíblico
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KERTELGE, Karl. A epístola aos romanos. Tradução
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LLOYD-JONES, D. Martyn. Romanos – o
Evangelho de Deus. Tradução Odayr Olivetti. São Paulo: Editora PES,
1998. [Exposição sobre Capítulo 1].
WILSON, Geoffrey B. Romanos – um resumo do
pensamento reformado. Tradução Fernando Quadros Gouvêa. São Paulo: PES,
1981.
[1]
John Stott em seu comentário de Romanos discorda desta interpretação (2000, p. 29).
[2] A
expressão “eu não me envergonho” é o equivalente intensificado de confessar,
proclamar, declarar.
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