18h00-20h00 - Quinta-feira (14 de Nisan - 2 de abril de 33 d.C.) |
O
sol já declinou, as sombras se transformaram em noite - é quinta-feira e agora apenas
algumas horas estão entre Jesus e a Cruz! Cada minuto torna-se premente e
precioso; as ações são precisas e urgentes; cada palavra dita por Jesus contém
suas últimas orientações pessoais àquele grupo de apóstolos, que conviveram
quase três anos com ele percorrendo cada cidade e vila da Palestina judaica.
Essa quinta-feira demarca a contagem regressiva para a conclusão de todo o
propósito para o qual Jesus abriu mão de sua glória e assumiu a plenitude da
nossa humanidade – a Cruz!
Como
orientados anteriormente os discípulos encontram a sala alta (cenáculo) onde
puderam preparar a refeição da Páscoa. É muito provável que a casa pertencesse
a mãe de João Marcos, uma das diversas mulheres que apoiaram Jesus no
transcorrer de todo o seu ministério (Lc 7.11-17; 7.36-50; 8.1-3; 8.40-56).
O evangelista João sintetiza tudo quanto vai acontecer
ali no cenáculo e nas horas seguintes em uma única frase: “ORA,
antes da festa da páscoa, sabendo Jesus que já era chegada a sua hora de passar
deste mundo para o Pai, como havia amado os seus, que estavam no mundo, amou-os
até o fim”. Tudo quanto havia
acontecido, estava acontecendo e haveria de acontecer nas horas seguintes
emanam de uma única fonte – o Amor de Deus manifestado inigualavelmente na
pessoa do Filho!
Jesus adentra à sala da refeição e contempla a mesa posta
com todos os alimentos que compõe a refeição pascoal, então se assenta e cada
um dos apóstolos fazem o mesmo. Por alguns minutos Jesus aguarda, pois algo
está faltando, uma atitude muito significativa e Jesus como mestre por excelência
não vai deixar de se aproveitar para ensinar-lhes uma das últimas lições no
final do curso de discipulado.
De forma súbita Jesus se levanta, tira sua capa e tomando
uma toalha, que estava ali para um fim específico, e uma bacia com água caminha
em direção aos discípulos e abaixando-se começa a lavar os pés deles (Jo
13.1-20). Abismados e constrangidos ficam emudecidos diante da ação do Mestre.
O único a reagir foi Pedro, mas Jesus lhe exorta e o discípulo se cala.
Acabando de lavar os pés de todos eles sem exceção alguma, pois já sabia as
atitudes que cada um deles haveria de fazer – Iscariotes trairia e o entregaria,
Pedro o negaria e os demais fugiriam acovardados – assim mesmo, Jesus lavou os
pés de cada um deles. Acabado a tarefa mais humilhante de uma casa, pois era
designado ao escravo e quando havia dois escravos seria a função do escravo
mais novo, Jesus recompõe sua vestimenta, retoma seu lugar à mesa e olhando
para os discípulos declara: “Vocês viram
o que eu fiz? Então façam o mesmo”!
Depois da lição de humildade e serviço a refeição
transcorre normalmente até que Jesus faz uma declaração: um dentre vocês há de me trair. Todos ficaram atônitos! De quem
Jesus esta falando? O murmúrio toma conta da mesa. Então Pedro pede que João,
mais próximo de Jesus, pergunte a quem Jesus esta se referindo. A resposta de
Jesus é aquele que recebesse o bocado de suas mãos e estende a mão em direção a
Iscariotes, em um gesto de deferência e olhando nos seus olhos, como fazendo um
apelo final – pense no que você está por fazer. Iscariotes come! Então Jesus
lhe fala: o que você tem que fazer faça-o
imediatamente! E Iscariotes, já tomado pelo espírito de Satanás, sai
mergulhando na noite tensa para combinar os últimos detalhes de sua vil traição
(Jo 13.21-30). Os demais discípulos tão mergulhados em si mesmos não se
apercebem do que esta acontecendo e nem mesmo tem noção do que está por
acontecer nas próximas horas.
Jesus sabe que chegou sua hora! Então começa a preparar e
confortar os corações dos discípulos para os momentos derradeiros que se
aproximam rapidamente: fala-lhes de sua eminente partida e enfatiza que a união
deles deve ser demarcada pelo amor uns pelos outros (Jo 13.31-35); mas ele
voltará para leva-los consigo e que enquanto estiverem separados prometeu que o
Espírito Santo permanecerá com eles todo o tempo, de maneira que a união deles
permanecera (Jo 14.1-31). Assim como ramos de uma videira eles devem produzir
frutos e que apesar de toda perseguição que vira sobre eles devem permanecer
firmes e anunciando tudo quanto lhes foi ensinado (Jo 15.1-32). O Espírito
Santo os capacitara e sustentara durante todo o tempo, para que cumpram todo o
propósito para o qual foram chamados e enviados (Jo 16.1-24). Nas horas
seguintes ele será traído, entregue aos homens maus, morto e seus próprios
discípulos o abandonaram, mas a Vitória é Dele! (Jo 25-33).
Então, como que reunindo suas
últimas forças físicas e mentais, Jesus levanta-se e começa a orar por si
mesmo, pelos discípulos e por todos aqueles que ainda haveriam de vir a crer
nele. Essa oração passou a ser conhecida como a “Oração
Sacerdotal” (Jo 17)
visto que Jesus se reveste naquele momento da
função de intercessor entre seus discípulos e o Pai. Milhares de comentaristas
e milhões de pregadores já tentaram fazer a exposição desta oração – mas nenhum
deles conseguiu esgotá-la! Cada palavra, cada frase e cada paragrafo são de uma
profundidade inalcançável pela mente humana – é uma oração Divina - é o Filho
eterno comunicando-se com o Pai[1]
eterno. Fez-se silêncio absoluto nos
céus enquanto o Filho ora na terra ao Pai. "Jesus revela na presença de Deus e de seus discípulos o mais intimo de
sua alma" (Lutero).
Inicia a oração em favor de si mesmo, pois havia chegado
sua “hora” – quanta dor mental, física e espiritual haveria de suportar – tudo
suportará em obediência ao Pai e na dependência do Pai e tudo será feito para
que o Pai seja glorificado. A salvação do pecador somente torna-se possível por
causa do sacrifício de Jesus (Jo 17.2) e, portanto, não há salvação em qualquer
outro lugar ou forma (Jo 1.18; 6.46-47; 14.7-9).
Imediatamente inicia a oração em favor dos discípulos (17.6-8).
Durante o tempo juntos eles foram bem preparados quer pelos ensinos quer pelas
ações, para cumprirem a vontade e propósito para o qual foram chamados,
vocacionado e serão enviados. Nesse momento Jesus intercede pelos discípulos
especificamente, pois foram eles que o Pai lhes deu para cuidar e preparar – “eu oro por eles; eu, seu amado, a quem
você sempre ouve (Jo 11.42), por aqueles que tu me destes e que são teus” (Jo 17.9). O pedido inicial é que eles sejam guardados
(preservados) em meio ao mundo tenebroso em que estarão vivendo e para isso
será necessário que eles experimentem da mesma unidade (original –
perfeitamente um) que Ele e o Pai possuem (Jo 17.21-23). Assim como o Pai vive,
pensa, ama e age nele; Cristo vivera, amara e agira em seus discípulos - essa é
a perfeita unidade de todos os discípulos em todos os tempos com Cristo e com
Deus.
A partir deste momento o foco da oração de Jesus é
colocado no futuro mais distante, em favor daqueles que crerão nele e serão
salvos; mas ele fala como que no presente (aqueles que acreditam), pois em sua
onisciência ele contempla a obra completa da redenção. E a fé salvadora se
manifestara mediante o testemunho e pregação da Palavra/Evangelho (Jo 17.20).
E Jesus continua intercedendo por todos os cristãos em
todos os tempos e lugares e roga ao Pai que todos e não apenas os discípulos
presentes (como havia orado antes) também experimentem da mesma unidade dele
com o Pai. A genuína fé sempre foi e continuara sendo manifestada no Corpo de
Cristo – fora do Corpo não há fé salvadora. E somente o Espírito Santo é capaz
de produzir essa fé e essa unidade (1 Co 12.13).
Ainda
que a conversão seja pessoal, pois cada um deve responder pessoalmente ao
chamado eficaz do Evangelho, a fé salvadora é vivencial na unidade e comunidade
dos fieis em e por Cristo. Se no presente temos muitas dificuldades de
experimentarmos esta unidade, na eternidade, despidos da velha natureza e
revestidos da nova natureza, todos os crentes posicionalmente experimentaremos de
harmonia e unidade semelhante à da própria Trindade.
A
unidade entre o Criador e o ser humano, formado à sua imagem e semelhança, que
se rompera na desobediência do Primeiro Adão, agora se torna uma realidade na
obediência do Segundo Adão/Cristo (Rm 5.12-21). Agora perdoados, justificados e
reconciliados por meio de Jesus Cristo – temos paz com Deus – podemos viver em
perfeita e eterna harmonia com Ele. Essa é a grande mensagem da Cruz!
Antes que se encerrasse a refeição, Jesus toma um dos
pães comum à mesa, sem qualquer formula especial, e partindo-o distribuiu aos
discípulos declarando: Este pão partido
representa o meu corpo que será partido por vocês! Em seguida tomando um
dos cálices de vinho que era servido durante a refeição e faz uma nova declaração:
Este cálice representa o meu sangue que
será derramado por vós! E conclui: façais
isso até que eu retorne novamente (Mc 14.22-26; Mt 26.26-30; Lc 22.15-20; 1
Co 11.23-25). Aqui temos a última Páscoa judaica e a primeira Ceia cristã.[2] A
morte e ressurreição de Jesus é o marco divisório entre a Velha Aliança,
estabelecida através da Lei mosaica e a Nova Aliança estabelecida pelo próprio
Jesus Cristo – nada será mais como fora antes – e como tão bem declarou Paulo:
“as coisas velhas já passaram; eis que
tudo se fez novo”. Como em Gênesis uma vez mais a partir de Cristo – o
Verbo/Palavra – tem inicio uma Nova Criação, do qual cada e todos os que vierem
a crer em Jesus Cristo dela participaram efetivamente. Assim sendo, a cada vez
que celebramos a Ceia – comendo do pão e bebendo do cálice – experimentamos e
testemunhamos dessa Nova Criação - vivenciamos a mesma atmosfera do Éden!
Para encerrar essa última a refeição pascoal Jesus e seus
discípulos cantam provavelmente os Salmos 116-118, visto que os Salmos 113-115 -
que compunham o chamado grande “Hallel” (Louvor) pascoal era cantado no inicio
da refeição. Mesmo tendo plena consciência, de que apenas umas poucas horas o
separam de sofrimentos inimagináveis que terá que passar – Jesus louva! Que
cena maravilhosa – eles cantam! “Nenhuma música mais doce, nenhuma
música mais poderosa jamais soou nas trevas da noite escura do mundo do que a
música de Jesus e seus primeiros discípulos, quando se dirigiram à cruz de sua
paixão e sua redenção” (Morgan).
Vejamos algumas das palavras cantadas por Jesus nesse
momento que antecede a Cruz:
Os
cordéis da morte me cercaram, e angústias do inferno se apoderaram de mim;
encontrei aperto e tristeza. Então invoquei o nome do SENHOR, dizendo: Ó
SENHOR, livra a minha alma (116.3-4).
Porque
tu livraste a minha alma da morte, os meus olhos das lágrimas, e os meus pés da
queda. Andarei perante a face do SENHOR na terra dos viventes (116.8-9).
Tomarei
o cálice da salvação, e invocarei o nome do SENHOR. Pagarei os meus votos ao
SENHOR, agora, na presença de todo o seu povo. Preciosa é à vista do SENHOR a
morte dos seus santos. (116.13-15).
LOUVAI
ao SENHOR todas as nações, louvai-o todos os povos (117.1).
Com
força me impeliste para me fazeres cair, porém o SENHOR me ajudou. O SENHOR é a
minha força e o meu cântico; e se fez a minha salvação (118.13-14).
Não
morrerei, mas viverei; e contarei as obras do SENHOR. O SENHOR me castigou
muito, mas não me entregou à morte. Abri-me as portas da justiça; entrarei por
elas, e louvarei ao SENHOR (118.17-19).
A
pedra que os edificadores rejeitaram tornou-se a cabeça da esquina. Da parte do
SENHOR se fez isto; maravilhoso é aos nossos olhos (118.22-23).
Deus é
o SENHOR que nos mostrou a luz; atai o sacrifício da festa com cordas, até às
pontas do altar. Tu és o meu Deus, e eu te louvarei; tu és o meu Deus, e eu te
exaltarei. (118.27-28).
“Se
você soubesse que, digamos, dez horas da noite, você seria levado a ser
ridicularizado, desprezado e açoitado, e que ao nascer do sol pela manhã se veria
sendo falsamente acusado, tratado como um criminoso, julgado e condenado a
morrer em uma cruz - você acha que poderia cantar nesta noite depois do seu
último jantar? ”(Spurgeon)
Quando já estão todos em pé e prontos para saírem do
Cenáculo, Jesus os exorta uma vez mais. São palavras cheias de ternura e dor:
vocês cumpriram nessa noite a profecia – “Ferirei
o pastor, e as ovelhas do rebanho ficarão dispersas” (Mt 26.31; cf. Zc
13.7). Mas imediatamente os conforta e anima: “Mas, depois de eu ressuscitar, irei adiante de vós para a Galiléia”.
Mas Pedro, assim como os demais alheios a tudo que está e estará por acontecer,
em mais um de seus rompantes declara que ainda que possa ser necessário que morra
jamais o negaria – e os demais dizem o mesmo. Mas Jesus olhando para Pedro o
alerta: “Pedro, você ficará escandalizado. Você vai me abandonar. Você fará
isso hoje à noite - antes que o galo cante. Você negará qualquer associação
comigo ou mesmo que me conheça. E você não apenas fará isso uma vez; você fará
isso três vezes” (Clarke). As palavras de Jesus eram para que Pedro dependesse
menos dele mesmo e mais de Deus – sua autoconfiança o preparou para a queda.
Ao saírem do Cenáculo, Jesus olha para o alto e contempla
a noite estrelada, suspira profundamente e com passos serenos e firmes lidera o
grupo em direção ao Getsêmani – a hora derradeira está cada vez mais próxima!
Utilização
livre desde que citando a fonte
Guedes,
Ivan Pereira
Mestre
em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Referências Bibliográficas
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revista e ampliada).
ASH, Anthony Lee. O
Evangelho Segundo Lucas. Tradução Neyd V. Siqueira. São Paulo: Editora
Vida Cristã, 1980.
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CHAMPLIN, Russell
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no Tempo de Jesus: pesquisa de história econômico-social no período
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relatos evangélicos da Paixão. Tradução Bertilo Brod. São Paulo: Paulinas,
2000. (Coleção: Espiritualidade sem fronteiras).
Walker, Peter. Pelos
Caminhos de Jesus. São Paulo: Ed. Rosari, 2007.
[1] Jesus refere-se diretamente ao Pai
seis vezes durante essa oração.
[2] E
tendo agradecido: Na língua grega antiga, agradecer é a palavra eucaristia.
É por isso que a comemoração da Ceia do Senhor às vezes é chamada de
Eucaristia.
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