segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Páscoa: Contagem Regressiva das Últimas Horas Antes da Cruz (Início da quinta-feira)


18h00-20h00 - Quinta-feira (14 de Nisan - 2 de abril de 33 d.C.)

O sol já declinou, as sombras se transformaram em noite - é quinta-feira e agora apenas algumas horas estão entre Jesus e a Cruz! Cada minuto torna-se premente e precioso; as ações são precisas e urgentes; cada palavra dita por Jesus contém suas últimas orientações pessoais àquele grupo de apóstolos, que conviveram quase três anos com ele percorrendo cada cidade e vila da Palestina judaica. Essa quinta-feira demarca a contagem regressiva para a conclusão de todo o propósito para o qual Jesus abriu mão de sua glória e assumiu a plenitude da nossa humanidade – a Cruz!
Como orientados anteriormente os discípulos encontram a sala alta (cenáculo) onde puderam preparar a refeição da Páscoa. É muito provável que a casa pertencesse a mãe de João Marcos, uma das diversas mulheres que apoiaram Jesus no transcorrer de todo o seu ministério (Lc 7.11-17; 7.36-50; 8.1-3; 8.40-56).
            O evangelista João sintetiza tudo quanto vai acontecer ali no cenáculo e nas horas seguintes em uma única frase: ORA, antes da festa da páscoa, sabendo Jesus que já era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai, como havia amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até o fim. Tudo quanto havia acontecido, estava acontecendo e haveria de acontecer nas horas seguintes emanam de uma única fonte – o Amor de Deus manifestado inigualavelmente na pessoa do Filho!
            Jesus adentra à sala da refeição e contempla a mesa posta com todos os alimentos que compõe a refeição pascoal, então se assenta e cada um dos apóstolos fazem o mesmo. Por alguns minutos Jesus aguarda, pois algo está faltando, uma atitude muito significativa e Jesus como mestre por excelência não vai deixar de se aproveitar para ensinar-lhes uma das últimas lições no final do curso de discipulado.
            De forma súbita Jesus se levanta, tira sua capa e tomando uma toalha, que estava ali para um fim específico, e uma bacia com água caminha em direção aos discípulos e abaixando-se começa a lavar os pés deles (Jo 13.1-20). Abismados e constrangidos ficam emudecidos diante da ação do Mestre. O único a reagir foi Pedro, mas Jesus lhe exorta e o discípulo se cala. Acabando de lavar os pés de todos eles sem exceção alguma, pois já sabia as atitudes que cada um deles haveria de fazer – Iscariotes trairia e o entregaria, Pedro o negaria e os demais fugiriam acovardados – assim mesmo, Jesus lavou os pés de cada um deles. Acabado a tarefa mais humilhante de uma casa, pois era designado ao escravo e quando havia dois escravos seria a função do escravo mais novo, Jesus recompõe sua vestimenta, retoma seu lugar à mesa e olhando para os discípulos declara: “Vocês viram o que eu fiz? Então façam o mesmo”!
            Depois da lição de humildade e serviço a refeição transcorre normalmente até que Jesus faz uma declaração: um dentre vocês há de me trair. Todos ficaram atônitos! De quem Jesus esta falando? O murmúrio toma conta da mesa. Então Pedro pede que João, mais próximo de Jesus, pergunte a quem Jesus esta se referindo. A resposta de Jesus é aquele que recebesse o bocado de suas mãos e estende a mão em direção a Iscariotes, em um gesto de deferência e olhando nos seus olhos, como fazendo um apelo final – pense no que você está por fazer. Iscariotes come! Então Jesus lhe fala: o que você tem que fazer faça-o imediatamente! E Iscariotes, já tomado pelo espírito de Satanás, sai mergulhando na noite tensa para combinar os últimos detalhes de sua vil traição (Jo 13.21-30). Os demais discípulos tão mergulhados em si mesmos não se apercebem do que esta acontecendo e nem mesmo tem noção do que está por acontecer nas próximas horas.
            Jesus sabe que chegou sua hora! Então começa a preparar e confortar os corações dos discípulos para os momentos derradeiros que se aproximam rapidamente: fala-lhes de sua eminente partida e enfatiza que a união deles deve ser demarcada pelo amor uns pelos outros (Jo 13.31-35); mas ele voltará para leva-los consigo e que enquanto estiverem separados prometeu que o Espírito Santo permanecerá com eles todo o tempo, de maneira que a união deles permanecera (Jo 14.1-31). Assim como ramos de uma videira eles devem produzir frutos e que apesar de toda perseguição que vira sobre eles devem permanecer firmes e anunciando tudo quanto lhes foi ensinado (Jo 15.1-32). O Espírito Santo os capacitara e sustentara durante todo o tempo, para que cumpram todo o propósito para o qual foram chamados e enviados (Jo 16.1-24). Nas horas seguintes ele será traído, entregue aos homens maus, morto e seus próprios discípulos o abandonaram, mas a Vitória é Dele! (Jo 25-33).
            Então, como que reunindo suas últimas forças físicas e mentais, Jesus levanta-se e começa a orar por si mesmo, pelos discípulos e por todos aqueles que ainda haveriam de vir a crer nele. Essa oração passou a ser conhecida como a “Oração Sacerdotal” (Jo 17)
visto que Jesus se reveste naquele momento da função de intercessor entre seus discípulos e o Pai. Milhares de comentaristas e milhões de pregadores já tentaram fazer a exposição desta oração – mas nenhum deles conseguiu esgotá-la! Cada palavra, cada frase e cada paragrafo são de uma profundidade inalcançável pela mente humana – é uma oração Divina - é o Filho eterno comunicando-se com o Pai
[1] eterno.  Fez-se silêncio absoluto nos céus enquanto o Filho ora na terra ao Pai. "Jesus revela na presença de Deus e de seus discípulos o mais intimo de sua alma" (Lutero).

            Inicia a oração em favor de si mesmo, pois havia chegado sua “hora” – quanta dor mental, física e espiritual haveria de suportar – tudo suportará em obediência ao Pai e na dependência do Pai e tudo será feito para que o Pai seja glorificado. A salvação do pecador somente torna-se possível por causa do sacrifício de Jesus (Jo 17.2) e, portanto, não há salvação em qualquer outro lugar ou forma (Jo 1.18; 6.46-47; 14.7-9).
            Imediatamente inicia a oração em favor dos discípulos (17.6-8). Durante o tempo juntos eles foram bem preparados quer pelos ensinos quer pelas ações, para cumprirem a vontade e propósito para o qual foram chamados, vocacionado e serão enviados. Nesse momento Jesus intercede pelos discípulos especificamente, pois foram eles que o Pai lhes deu para cuidar e preparar – “eu oro por eles; eu, seu amado, a quem você sempre ouve (Jo 11.42), por aqueles que tu me destes e que são teus” (Jo 17.9). O pedido inicial é que eles sejam guardados (preservados) em meio ao mundo tenebroso em que estarão vivendo e para isso será necessário que eles experimentem da mesma unidade (original – perfeitamente um) que Ele e o Pai possuem (Jo 17.21-23). Assim como o Pai vive, pensa, ama e age nele; Cristo vivera, amara e agira em seus discípulos - essa é a perfeita unidade de todos os discípulos em todos os tempos com Cristo e com Deus.
            A partir deste momento o foco da oração de Jesus é colocado no futuro mais distante, em favor daqueles que crerão nele e serão salvos; mas ele fala como que no presente (aqueles que acreditam), pois em sua onisciência ele contempla a obra completa da redenção. E a fé salvadora se manifestara mediante o testemunho e pregação da Palavra/Evangelho (Jo 17.20).
            E Jesus continua intercedendo por todos os cristãos em todos os tempos e lugares e roga ao Pai que todos e não apenas os discípulos presentes (como havia orado antes) também experimentem da mesma unidade dele com o Pai. A genuína fé sempre foi e continuara sendo manifestada no Corpo de Cristo – fora do Corpo não há fé salvadora. E somente o Espírito Santo é capaz de produzir essa fé e essa unidade (1 Co 12.13).
Ainda que a conversão seja pessoal, pois cada um deve responder pessoalmente ao chamado eficaz do Evangelho, a fé salvadora é vivencial na unidade e comunidade dos fieis em e por Cristo. Se no presente temos muitas dificuldades de experimentarmos esta unidade, na eternidade, despidos da velha natureza e revestidos da nova natureza, todos os crentes posicionalmente experimentaremos de harmonia e unidade semelhante à da própria Trindade.
A unidade entre o Criador e o ser humano, formado à sua imagem e semelhança, que se rompera na desobediência do Primeiro Adão, agora se torna uma realidade na obediência do Segundo Adão/Cristo (Rm 5.12-21). Agora perdoados, justificados e reconciliados por meio de Jesus Cristo – temos paz com Deus – podemos viver em perfeita e eterna harmonia com Ele. Essa é a grande mensagem da Cruz!
            Antes que se encerrasse a refeição, Jesus toma um dos pães comum à mesa, sem qualquer formula especial, e partindo-o distribuiu aos discípulos declarando: Este pão partido representa o meu corpo que será partido por vocês! Em seguida tomando um dos cálices de vinho que era servido durante a refeição e faz uma nova declaração: Este cálice representa o meu sangue que será derramado por vós! E conclui: façais isso até que eu retorne novamente (Mc 14.22-26; Mt 26.26-30; Lc 22.15-20; 1 Co 11.23-25). Aqui temos a última Páscoa judaica e a primeira Ceia cristã.[2] A morte e ressurreição de Jesus é o marco divisório entre a Velha Aliança, estabelecida através da Lei mosaica e a Nova Aliança estabelecida pelo próprio Jesus Cristo – nada será mais como fora antes – e como tão bem declarou Paulo: “as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo”. Como em Gênesis uma vez mais a partir de Cristo – o Verbo/Palavra – tem inicio uma Nova Criação, do qual cada e todos os que vierem a crer em Jesus Cristo dela participaram efetivamente. Assim sendo, a cada vez que celebramos a Ceia – comendo do pão e bebendo do cálice – experimentamos e testemunhamos dessa Nova Criação - vivenciamos a mesma atmosfera do Éden!
            Para encerrar essa última a refeição pascoal Jesus e seus discípulos cantam provavelmente os Salmos 116-118, visto que os Salmos 113-115 - que compunham o chamado grande “Hallel” (Louvor) pascoal era cantado no inicio da refeição. Mesmo tendo plena consciência, de que apenas umas poucas horas o separam de sofrimentos inimagináveis que terá que passar – Jesus louva! Que cena maravilhosa – eles cantam! “Nenhuma música mais doce, nenhuma música mais poderosa jamais soou nas trevas da noite escura do mundo do que a música de Jesus e seus primeiros discípulos, quando se dirigiram à cruz de sua paixão e sua redenção” (Morgan).
            Vejamos algumas das palavras cantadas por Jesus nesse momento que antecede a Cruz:
Os cordéis da morte me cercaram, e angústias do inferno se apoderaram de mim; encontrei aperto e tristeza. Então invoquei o nome do SENHOR, dizendo: Ó SENHOR, livra a minha alma (116.3-4).
Porque tu livraste a minha alma da morte, os meus olhos das lágrimas, e os meus pés da queda. Andarei perante a face do SENHOR na terra dos viventes (116.8-9).
Tomarei o cálice da salvação, e invocarei o nome do SENHOR. Pagarei os meus votos ao SENHOR, agora, na presença de todo o seu povo. Preciosa é à vista do SENHOR a morte dos seus santos. (116.13-15).
LOUVAI ao SENHOR todas as nações, louvai-o todos os povos (117.1).
Com força me impeliste para me fazeres cair, porém o SENHOR me ajudou. O SENHOR é a minha força e o meu cântico; e se fez a minha salvação (118.13-14).
Não morrerei, mas viverei; e contarei as obras do SENHOR. O SENHOR me castigou muito, mas não me entregou à morte. Abri-me as portas da justiça; entrarei por elas, e louvarei ao SENHOR (118.17-19).
A pedra que os edificadores rejeitaram tornou-se a cabeça da esquina. Da parte do SENHOR se fez isto; maravilhoso é aos nossos olhos (118.22-23).
Deus é o SENHOR que nos mostrou a luz; atai o sacrifício da festa com cordas, até às pontas do altar. Tu és o meu Deus, e eu te louvarei; tu és o meu Deus, e eu te exaltarei. (118.27-28).
“Se você soubesse que, digamos, dez horas da noite, você seria levado a ser ridicularizado, desprezado e açoitado, e que ao nascer do sol pela manhã se veria sendo falsamente acusado, tratado como um criminoso, julgado e condenado a morrer em uma cruz - você acha que poderia cantar nesta noite depois do seu último jantar? ”(Spurgeon)
            Quando já estão todos em pé e prontos para saírem do Cenáculo, Jesus os exorta uma vez mais. São palavras cheias de ternura e dor: vocês cumpriram nessa noite a profecia – “Ferirei o pastor, e as ovelhas do rebanho ficarão dispersas” (Mt 26.31; cf. Zc 13.7). Mas imediatamente os conforta e anima: “Mas, depois de eu ressuscitar, irei adiante de vós para a Galiléia”. Mas Pedro, assim como os demais alheios a tudo que está e estará por acontecer, em mais um de seus rompantes declara que ainda que possa ser necessário que morra jamais o negaria – e os demais dizem o mesmo. Mas Jesus olhando para Pedro o alerta: “Pedro, você ficará escandalizado. Você vai me abandonar. Você fará isso hoje à noite - antes que o galo cante. Você negará qualquer associação comigo ou mesmo que me conheça. E você não apenas fará isso uma vez; você fará isso três vezes” (Clarke). As palavras de Jesus eram para que Pedro dependesse menos dele mesmo e mais de Deus – sua autoconfiança o preparou para a queda.
            Ao saírem do Cenáculo, Jesus olha para o alto e contempla a noite estrelada, suspira profundamente e com passos serenos e firmes lidera o grupo em direção ao Getsêmani – a hora derradeira está cada vez mais próxima!

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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Referências Bibliográficas
ÁLVARO BARREIRO, SJ. O itinerário da fé pascal. São Paulo: Edições Loyola, 2005. (4ª edição – revista e ampliada).
ASH, Anthony Lee. O Evangelho Segundo Lucas. Tradução Neyd V. Siqueira. São Paulo: Editora Vida Cristã, 1980.
BINZ, Stephen J. The Passion and Resurrection Narratives of Jesus. , Collegeville (Minnesota): The Liturgical Press, 1989.
CARSON D. A., DOUGLAS, J. Moo & MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997.
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento Interpretado – versículo por versículo. São Paulo: Millenium, 1987.
DOUGLAS, J. D. O Novo Dicionário da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 1995.
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento – Marcos. São Paulo: Cultura Cristã, 2003.
JEREMIAS, Joachim. Jerusalém no Tempo de Jesus: pesquisa de história econômico-social no período neotestamentário. 4 ed. São Paulo: Paulus, 1983.
MAGGIONI, Bruno. Os relatos evangélicos da Paixão. Tradução Bertilo Brod. São Paulo: Paulinas, 2000. (Coleção: Espiritualidade sem fronteiras).
Walker, Peter. Pelos Caminhos de Jesus. São Paulo: Ed. Rosari, 2007.


[1] Jesus refere-se diretamente ao Pai seis vezes durante essa oração.
[2] E tendo agradecido: Na língua grega antiga, agradecer é a palavra eucaristia. É por isso que a comemoração da Ceia do Senhor às vezes é chamada de Eucaristia.

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