sexta-feira, 17 de maio de 2019

Salmos Imprecatórios - Podem Ser Cantados Hoje?



            O primeiro pressuposto que se faz necessário para uma compreensão correta dos chamados “salmos imprecatórios” é: qual sua concepção de Deus? Se seu entendimento de Deus é humanista certamente os salmos imprecatórios é uma abominação. Para os filhos de Erasmo de Roterdã Deus está apenas um degrau acima do ser humano e, portanto, passível de equívocos e desvios de conduta. Para pessoas que somente aceitam um deus humanizado (incluindo as imperfeições) o salmo imprecatório contraria o politicamente correto e, portanto, devem ser simplesmente descartados (assim como 95% dos textos bíblicos).
            Mas para aqueles que têm uma concepção de Deus, em harmonia com aquilo que a Bíblia declara sobre Ele, cuja soberania permeia todas as suas ações e que não há debaixo do sol qualquer coisa que esteja alheia ao exercício de Sua soberania, para esses os salmos imprecatórios são particularmente imprescindíveis e muito tem a ensinar sobre as consequências do mal ou das ações malignas praticadas por quem quer que seja e em qualquer época, incluindo os dias presentes.
            Evidente que a leitura e reação desse artigo vão depender de qual é a sua visão que o leitor tem de Deus.
O Que e Quais São os Salmos Imprecatórios
            Eles perfazem um seleto e pequeno grupo de salmos que estão igualmente inseridos no conjunto do Saltério bíblico. Uma vez inseridos no Saltério são igualmente dignos de serem cantados e no que concerne à inspiração e inerrância eles são equivalentes em grau, gênero e número com todos os demais salmos e demais literaturas bíblicas de ambos os Testamentos. Rejeita-los ou classifica-los como anomalia literária produzida por mentes nacionalistas e radicais é abrir a possibilidade de que a Bíblia em sua totalidade possa ser reclassificada. Evidentemente que aqueles que têm dificuldade em digerir esses salmos, igualmente encontram tremendas dificuldades em degustar uma infinidade de outras literaturas bíblicas onde sobressai a manifestação do juízo e da justiça de Deus, pois para essas pessoas Deu somente deve manifestar sua graça e misericórdia. Essa dicotomia que tais pensadores fazem do Deus da Bíblia se assemelha em muito a velha concepção dicotômica proposta por Marcião, ainda no inicio do segundo século, em que ele defendia que o Deus do Primeiro Testamento era distinto do Deus do Segundo Testamento. Ele já bebia no rio do gnosticismo dualista, e depois dele incontáveis outros até os dias atuais continuam expressa ou sutilmente ensinando esta mesma distorção interpretativa.
Mas nas páginas bíblicas a misericórdia e graça de Deus jamais estiveram separadas ou foi tratada de forma distinta de sua justiça e juízo. Podemos ver isso nitidamente nos grandes eventos como o diluvio onde apenas Noé e sua família sobreviveram (graça) em meio à toda população que pereceu (juízo); Sodoma e Gomorra foram totalmente consumidas pelo fogo (justiça), enquanto Ló e suas filhas eram tiradas às pressas e viveram (misericórdia). O apóstolo Paulo em sua carta dirigida à comunidade cristã em Roma responde uma das mais extraordinárias perguntas da teologia bíblica: como Deus pôde conciliar Sua perfeita misericórdia e graça, com sua perfeita justiça e juízo? E Paulo responde sem pestanejar – NA CRUZ! Aqui temos uma das mais lindas e sublimes doutrinas bíblicas – a justificação. Quando Jesus Cristo clama na cruz: “Está Consumado!” significa que finalmente a Justiça de Deus estava plenamente satisfeita e igualmente significa que a graça de Deus se manifestou em toda sua plenitude. Na cruz a Justiça e a Graça são a uníssima manifestação de Deus.
Portanto, os salmos imprecatórios estão confortavelmente inseridos no conjunto inspirado do cânon bíblico. Não é necessário qualquer tipo de censura arbitrária pastoral-teológica-exegética, a não ser por parte daqueles que têm dificuldades em crer no Deus revelado na totalidade das Escrituras. Mas para aqueles crentes fieis que continuam crendo que Deus é e continuara sendo Deus em toda e quaisquer circunstâncias da vida e da história humana, os salmos imprecatórios se constituem em alimento para sua alma. Mas infelizmente hoje, muitos temem mais a opinião da mídia e das redes sociais ou mesmo de pseudos personagens em evidência nos círculos cristão-evangélicos, do que ao próprio Deus e Sua Palavra. Mas no livro do Apocalipse está registrado que na Nova Jerusalém (celestial) ficaram de fora ... os covardes!
Interessante que em seu relevante comentário dos Salmos o estudioso Allan Harman coloca um subtítulo – O Problema dos Cânticos – onde aborda a questão dos salmos imprecatórios (2011, p. 61). Mas invés de definirmos é preferível descrever o que vem a ser um “salmo imprecatório”. Uma característica dos salmos imprecatórios é que ele contém um grito, um clamor pois são sempre expressões que provém do mais fundo da alma aflita e oprimida, para uma ação retributiva,[1] um grito/clamor para que Deus manifeste sua ira justa sobre os inimigos do salmista, mormente um representativo do povo em geral. Nos salmos imprecativos o salmista inquire, questiona, interroga e ora, clama, roga para que haja um imediato julgamento de todos aqueles que atentaram contra a vida dele (sua família, seu povo). No diapasão da intensidade da dor, sofrimento e angustia pela qual o salmista passa ou passou, procede de sua boca juízos implacáveis contra seus inimigos, que em alguns casos quase destruíram sua vida (família, povo). De acordo com J. Carl Laney, em seu interessante artigo, para uma classificação correta de um salmo imprecatório é necessário que ele contenha “uma invocação - uma oração ou um pedido para Deus conter os inimigos de uma pessoa ou de Yahweh que deve ser julgado e punido” (1981, p. 36).
Alguns comentaristas bíblicos tem advogado que o termo “salmo imprecatório” não expressa com precisão o conteúdo dos salmos referidos em sua inteireza. A solução seria falar de “imprecações nos salmos”, visto segundo estes comentaristas que o elemento imprecatório não se constitui na maioria dos casos o elemento central do salmo, quando não um elemento menor, inserido em uma única linha ou verso (MARTIN, 1972, p. 113). Ainda outros utilizando uma perspectiva psicológica entendem que esses salmos na verdade não contém imprecações ou maldições, mas estão carregadas de petições e desejos passionais diante de Deus (ZENGER, 1996, p. viii). Daniel Simango, em seu trabalho acadêmico de defesa para obtenção de seu título de Doutorado, um dos mais completos sobre essa temática, considera os salmos imprecatórios como lamentos individuais ou comunitários e que as imprecações são um subgênero desses lamentos (p. 268).
Todavia, ainda que o salmo contenha lamento, petição e anseios passionais, o impulso ou motivação principal do salmista é de caráter imprecatório, de maneira que não há nenhum motivo para não utilizar a moldura imprecatória para expô-lo, a não ser como já falei a dificuldade de lidar com as consequências do pecado manifestada no juízo de Deus.
Assim como a classificação desse grupo de salmos é discutível, quais e/ou quantos também provocam não poucas divergências entre os estudiosos. O já citado Chalmers Martin é de opinião que o numero destes salmos não ultrapassa mais do que dezoito (1972, p. 113). Por sua vez Alex Luc em seu artigo sobre o tema vai além e abrange ao menos vinte e oito salmos que contém um ou mais versos imprecatórios (LUC, 1999, p. 395-96) e Willem A. VanGemeren opta por vinte e quatro salmos na categoria de imprecatórios (1991, p. 832). Há também poucos que encontram um numero muito maior, como o caso de R. M. Benson, que classifica trinta e nove salmos nesta categoria, todavia muitos desses indicados por ele não contém os elementos básicos para sustentar essa afirmação (LUC, 1999, p. 395-96). Na contra mão temos John N. Day que classifica apenas quatorze salmos como imprecatórios (2002, p. 166-86).
            Dentro de um mínimo denominador comum podemos classificar como imprecatórios os salmos aqui mencionados: 7, 35, 55, 58, 59, 69 79, 83, 109 e 137, pois é possível encontrar neles as características próprias da imprecação.
Qual foi a motivação do salmista para que orasse dessa forma tão enfática contra seus adversários? Essa questão tem recebido, como todas as demais até aqui, distintas respostas e mais uma vez o divisor de águas está na concepção de Deus e da inspiração dos salmos. Muitas das propostas têm sido elaboradas no sentido de amenizar o teor mais intenso de retribuição contra os inimigos, mas acabam por descaracterizar o salmo e minimizar a manifestação do juízo de Deus sobre a maldade humana. Ninguém gosta de um Deus implacável contra o mal e que ouve e atende as orações imprecatórias dos seus servos. Mormente se deseja ser mais justo e mais magnânimo do que Deus, o que nunca deu certo antes e continua não dando certo ainda hoje. O mal em todas as suas multiplicidades continua avançando violentamente contra o povo de Deus e somente a ação poderosa de Deus pôde refreá-lo e fazê-lo cessar.
Uma proposta que tem atraído grandes pensadores cristãos é a de que o salmista expressão seus próprios sentimentos humanos e não necessariamente a vontade de Deus. A ideia de vingança é pertença à velha natureza decaída e não expressão de um coração dirigido pelo Espírito. Deste modo, os salmos imprecatórios são reflexos do “velho homem” que ainda controla os sentimentos do salmista. Portanto, essas expressões imprecatórias não podem ser usadas como modelo de oração para nenhum cristão. Alguns, como o grande escritor C. S. Lewis, chega a declarar que tais expressões imprecatórias são “malícia refinada” instigada pelo próprio diabo (1958, p. 23-25). Ainda nesta mesma linha interpretativa temos William Holladay que realça o fato de que as orações imprecatórias se distinguem nitidamente do “espírito” do ensino do Segundo Testamento, onde os cristãos são exortados a amarem seus inimigos, mas aqui o salmista manifesta ódio aos seus inimigos, sem fazer qualquer distinção entre o pecador e o pecado (1995, p. 308).
Alguns dos mais conceituados comentaristas bíblicos e teólogos tem proposto que os salmos imprecatórios são expressões proféticas, de maneira que o salmista neste momento projeta as ações futuras do juízo de Deus sobre os inimigos do Reino de Deus. Um dos personagens mais famosos da História da Igreja, Agostinho, em sua interpretação do Salmo 109 declara que as expressões imprecatórias ali são visões futuras previsões futuras "sob a aparência de desejar o mal" (1853, p. 213). Nesta mesma linha interpreta Herbert Lockyer de que as maldições não devem ser vistas como imprecações, mas como previsões do fim dos iníquos (1993, p. 446-47). Os defensores desta proposta lembram que Davi, um dos compositores destes salmos, é denominado de profeta (Atos 2.30 e 4.25) e que a função profética do salmista é destacada no Segundo Testamento (cf. Sl 41.9 em João 13.18 e Mateus 26.23-24; Salmo 35.19 em João 15.25). O comentarista Chalmer Martin relaciona a figura de Davi com Pedro, de maneira que os salmos imprecatórios de Davi são advertências da ira divina contra o pecado e contra todos os pecadores contumazes que rejeitam o arrependimento, assim como foi o sermão de Pedro após o Pentecostes (1972, p. 128-129). E se enfatiza ainda que algumas das expressões imprecatórias destes salmos são referenciadas no Segundo Testamento (Sl 69.25 e Sl 109.8 em Atos 1.20; e Salmo 69.22-23 em Romanos 11.9-11) dentro do contexto das profecias do tempo messiânico. Para reforça o argumento dos salmos imprecatórios como expressões proféticas Alex T. Luc (1999, p. 403-5) realça diversos paralelos entre a linguagem de ambos (Is 26.11; Jr 11.20-22; Jr 17.18; Jr 18.21 cf. Sl 109; Is 14.20-21; 47.3; 44.11 cf. Jr 50.27, Dn 4.23, Jr 13.10, Ml 2.12).
Outra forma de interpretar os salmos imprecatórios é coloca-los na moldura da Aliança (LANEY, 1981, p. 41). Uma vez que o Pacto implica em bênçãos e maldições toda agressão feita ao povo de exclusividade de Deus será tratada dentro das prescrições da Aliança. Ainda de acordo com sua argumentação "o Pacto Abraâmico (Gênesis 12: 1-3) prometia bênção àqueles que abençoavam a posteridade de Abraão e amaldiçoavam os que amaldiçoavam" (1981, p. 41-42). Ele ainda cita como exemplo o caso de Balaão que foi contratado para amaldiçoar os israelitas, mas foi impedido e acabou por abençoa-los (Nm 22-24; 31.16). Assim, dentro desta linha de raciocínio Davi como rei e representante do povo da Aliança e citado como autor de parte destes salmos imprecatórios, tinha a liberdade de clamar pela efetiva justiça de Deus contra os inimigos fossem pessoais (como rei) ou da nação. Corroborando essa proposta Allan Harman usa os Salmos 5 e 109 como ilustrativos e relacionando-os aos textos proféticos (Os 13.6 e Is 13.16), cuja base é a aliança (1995, p.65, 69, 72). Igualmente John Day endossa o pacto abraâmico (Gn 12.2-3) como fundamento, mas acrescenta que as raízes se estendem por toda Torá, ilustrada no cântico de Moisés (Dt 32.1-43) que contém uma promessa de retribuição divina contra os inimigos de Deus e seu povo (2002, p. 168).
Do ponto de vista teológico Geerhardus Vos (1942, p. 136-37) e Chalmers Martin (1972, p. 120, 123 -24) defendem que a questão da justiça de Deus que efetua a reivindicação de seu povo é um aspecto fundamental no conceito de aliança no Primeiro Testamento. Assim, essas orações não devem ser consideradas imorais, pois estão dentro do escopo da soberania de Deus que ao derramar seu juízo sobre o mal está agindo dentro de sua esfera de justiça. Isso se manifesta não apenas no juízo final, mas também na economia da história humana e a Bíblia registra algumas destas manifestações, como o dilúvio conforme acima mencionado. Ainda nesta perspectiva se coloca os anseios imprecatórios do salmista como expressão do zelo por Deus e seu Reino, visto haver uma ligação terminológica intima entre Aliança e Reino. Por fim, esses salmos expressam a indignação e aversão do salmista diante de toda sorte de injustiça e maldade praticada em todas as suas formas – falsidade, traição, astúcia, ganância, ódio, crueldade, arrogância e orgulho – de maneira que os “inimigos” nos salmos imprecatórios são réprobos que devem ser punidos por Deus. Deste modo, onde houver a manifestação do mal em quaisquer de suas expressões, justifica-se a oração imprecatória (ZENGER, 1996, p. 92), tornando-os relevantes para os dias atuais, onde o mal tem se manifestado abertamente em todo o mundo.
            Por fim temos a proposta de Sigmund Mowinckel (1962, p. 48-49), conforme mencionada por Laney (1981, p. 39) de que os “inimigos” do salmista são personificações de forças malignas espirituais e não inimigos humanos. Assim, os salmos imprecatórios assemelham-se às objurgações contra os poderes malignos ou demoníacos que produzem toda sorte de malefícios sejam guerras, violências ou doenças. Todavia, essa proposta introduz um subjetivismo desnecessário nos salmos, pois Davi teve e lutou contra inimigos reais (ex.: 1 Sm 21.7) e dentro deste contexto vivencial dele é difícil pensar que os “inimigos” fossem entidades malignas e não pessoas físicas reais.
Ainda que os salmos sejam um espelho da alma do salmista e que de alguma forma também para nós hoje, não é de bom tom caracterizar esse grupo de salmos apenas pelo prisma do espírito de vingança e ódio pelos inimigos ou por aqueles que de alguma forma lhe tenha causado mal ou dano. Evidente que normatizar os salmos é algo que se deva fazer com muita acuidade por parte do interprete. Para os interpretes de linha reformada o fio hermenêutico condutor é a continuidade entre os Testamentos ou seja a Aliança, para os de linha batista o viés são as características proféticas dos salmos.
Portanto, uma solução em relação à validação atual das orações imprecatórias perpassa pela questão de continuidade ou descontinuidade dos Testamentos. Para aqueles que defendem a descontinuidade os salmos imprecatórios ficam limitados à moldura do Primeiro Testamento, dentro da dispensação da Lei e centrada no Israel nacional. Hoje vivemos na dispensação da Graça e da Igreja, de maneira que o cristão não deve utilizar-se da oração imprecatória, visto que dentro do escopo da Nova Aliança a ênfase está no amor e perdão ao inimigo. As imprecações do salmista se cumprem literalmente na pessoa de Cristo e sua morte na cruz.
Todavia, aqueles que defendem a continuidade dos Testamentos, pois o Novo Pacto é uma extensão do Velho Pacto de maneira que não há tensão ou dicotomia entre eles e assim, as bênçãos e maldições permanecem validas, pois Deus continua manifestando sua justiça e misericórdia. Uma vez que Deus não muda seu padrão ético continua valido. O clamor por justiça por parte do cristão oprimido continua sendo ouvido por Deus.
A primícia explicitada ainda no inicio deste texto enfatiza que as orações imprecatórias nos dias do salmista e nos dias atuais, estão como sempre estiveram subordinadas à soberania de Deus que sempre manifestou sua misericórdia e sua justiça concomitantemente, pois como duas linhas paralelas elas coexistem igualmente sem jamais se anularem. Deus não pode manifestar sua misericórdia sem justiça e jamais manifestou sua justiça sem a misericórdia e a cruz é o ponto convergente de ambas as linhas. Na cruz temos a expressão máxima da Justiça de Deus e da Misericórdia de Deus.
Assim como o crente do Primeiro Testamento, o crente do Segundo Testamento esta sujeito a sofrer opressões externas de seus inimigos quer sejam no sentindo individual ou institucional, de modo que da mesma forma que os primeiros os atuais tem a mesma liberdade de clamar a Deus para que tome as providências necessárias para que o mal possa ser erradicado e o bem possa novamente ser manifestado. O Primeiro Testamento não produz um senso moral de qualidade inferior àquela sustentada no Segundo Testamento; isso porque, concomitantemente com as imprecações encontramos nesses salmos uma espiritualidade que nós deveríamos manifestar (Sl 139 é um caso típico).
Em nenhum dos Salmos imprecatórios a vingança é feita com as próprias mãos do salmista ou se reivindica a destruição dos inimigos como satisfação mórbida. No contexto veterotestamentário há diversas passagens que proíbe a vingança e o ressentimento (Lv 19.17-18), ensina que o Senhor odeia a violência (SI 5.6), e insiste que a vingança deve ser deixada para Ele e (SI 7.4; Pv 20.22; etc.). A preservação da vida seja individual do salmista ou coletiva de seu povo, bem como a preservação da justiça são as razões pela qual ele apela para Aquele que tem o Poder de fato. O salmista tem plena consciência de que somente Deus pode extirpar o mal e fazer prevalecer o bem, que somente Ele pode endireitar as veredas entortadas pela corrupção decorrente da natureza pecaminosa do ser humano alienado de Deus.
A vindicação e a vingança são distintas. Ainda que Davi tenha sido muitas vezes fustigado violentamente por seus inimigos, como o rei Saul que em diversas ocasiões tentou matar Davi, esse foi capaz de reagir com generosidade em relação ao inimigo (2 Sm 16.11; 19.16-23). As orações imprecatórias de Davi eram sempre no sentido de que a justiça prevalecesse e que o direito fosse restabelecido e que o injusto e perverso sofresse as consequências de seus atos, de maneira que o pedido de Davi era para uma vindicação – justiça, que encontra ressonância no Segundo Testamento na parábola proferido por Jesus (ex. Lc 18.1-8).
Por fim, podemos perceber nos salmos imprecatórios uma aversão do salmista em relação ao pecado. As diversas manifestações do juízo de Deus contra o pecado registrado nas páginas da Bíblia, que tanto horror produz às mentes cauterizadas, e a descrição do juízo futuro e final registrado em imagens nítidas nas paginas do Apocalipse, com o qual se encerra o cânon bíblico, é o contexto mais amplo em que estão inseridas as orações imprecatórias dos crentes do Primeiro e do Segundo Testamento. O pecado em todas as suas nuanças, em todos os seus tons de cinza, deveriam causar uma aversão no crente ao ponto dele levantar um clamor imprecatório diante de Deus – mas lamentavelmente o evangelicalismo atual está longe de sentir aversão ao pecado, mesmo em suas formas mais espúrias e depravadas. E aqui está a razão pela qual a Sociedade brasileira vive em um estado permanente e crescente de decadência moral. Onde a corrupção e a injustiça estão impregnadas em todas as instâncias dos poderes constituídos. Com toda certeza vivemos os dias pré-apocalíptico – vivemos os últimos dias!

Salmo 55
ESCUTA A MINHA oração, ó Deus! - Não Te escondas quando eu peço a tua ajuda.
Ouve-me com atenção e responde-me! Eu não consigo entender meus problemas e estou muito perturbado.
Meus inimigos gritam ameaças contra mim; os homens maus me rodeiam. Lançam males sobre mim, com ódio e furor.
Dentro do peito, meu coração dispara dolorido, com medo da morte.
Sou dominado pelo medo e pelo pavor, o horror me oprime.
Eu disse: "Quem dera que tivesse asas como uma pomba! Voaria para longe e viveria em paz.
Voaria rápido até os desertos distantes e viveria por lá mesmo.
Assim poderia achar um abrigo para escapar da tempestade.
Senhor; provoca confusão e desentendimento entre os meus inimigos, faz com que sejam destruídos pela sua própria violência.
De dia e de noite, giram pela cidade, andando sobre os muros. Espalharam a maldade e a miséria dentro da Cidade.
Dentro dela existe morte e destruição; nas ruas acontecem assaltos e exploração.
Quem me ofende não é um inimigo. Se fosse, eu ainda poderia aguentar; poderia fugir e me esconder.
Quem está me traindo é você, meu companheiro, meu amigo do peito!
Costumávamos andar juntos, conversando alegremente enquanto íamos para o templo de Deus com o seu povo.
Que a morte apanhe essa gente de surpresa, porque seus corações e seus lares estão imundos de pecado.
Mas eu pedirei ajuda a Deus e o Senhor me salvará.
Farei orações pela manhã, ao meio-dia e à noitinha; contarei a Deus os meus problemas e Ele me ouvirá.
Muita gente me persegue e tenta me destruir, mas Ele me salva e dá paz à minha alma.
Deus - o Rei Eterno - dará aos meus inimigos o que eles merecem, porque não respeitam a Deus, porque não se arrependem.
Este falso amigo atacou quem vivia em paz com ele; não cumpriu os compromissos que tinha feito.
Ele falava macio, mas no coração planejava a morte. Suas palavras pareciam ser doces como mel, mas na verdade eram facas afiadas.
Entregue todas as suas preocupações ao Senhor. Ele levará o peso dos seus problemas. Deus nunca deixa o justo tropeçar e cair.
Senhor, Tu lançarás meus inimigos no mais profundo abismo da destruição. Eles são assassinos e traidores; por isso vão morrer muito cedo; viverão apenas meia vida.
Quanto a mim, confio em Ti para sempre!


Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/


Artigo Relacionado
Salmos: Anatomia da Alma
Classificação dos Salmos
Salmo 119 - Introdução Geral
A Bondade de Deus - Salmo 136
Salmo 23.1 - O Cuidado Pastoral de Deus
Livros Poéticos e de Sabedoria - Introdução Geral
Famosos Cânticos Bíblicos (fora do Saltério)

Referências Bibliográficas
AUGUSTINE, Saint Augustine. Expositions on the Book of Psalms. Trans. H.M. Wilkins. London: Oxford, 1853. v. 5.
BENSON, R. M. War Songs of the Prince of Peace (London, 1901), quoted in John W. Wenham, The Goodness of God (Downers Grove: IVP, 1974) p. 149.
DAY, John N. The Imprecatory Psalms and Christian Ethics. Bibliotheca Sacra 159 (Apr-Jun 2002): 166-86.
GUTHRIE, D. and MOTYER, J.A. The New Bible Commentary, Revised. Grand Rapids: Eerdmans Publishing Co., 1970.
KRAUS, Hans-Juachin. Los Salmos - 1-59, v. 1. Salamanca (España): Ediciones Sígueme, 1993.
LANEY, Carl J. "A Fresh Look at the Imprecatory Psalms," Bibliotheca Sacra 138 (1981).
LEWIS, Clive Staples Lewis. Reflections on the Psalms. New York: Houghton Mifflin Harcourt, 1958.
LOCKYER, Herbert. Psalms: A Devotional Commentary. Grand Rapids: Kregel, 1993.
LUC, Alex T. "Interpreting the Curses in the Psalms," JETS 42 (1999): 395-96.
HARMAN, Allan M. "The Continuity of the Covenant Curses in the Imprecations of the Psalter". The Reformed Theological Review 54 (1995): 66-72.
________________. Comentários do Antigo Testamento - Salmos. Tradução Valter Graciano Martins. São Paulo: Cultura Cristã, 2011.
HOLLADAY, William L. Long Ago God Spoke: How Christians may Hear the Old Testament Today. Minneapolis: Augsburg, 1995.
MARTIN, Chalmers. “Imprecations in the Psalms” in Classical Evangelical Essays in Old Testament Interpretation, ed. Walter C. Kaiser (Grand Rapids: Baker, 1972).
MOWINCKEL, Sigmund. The Psalms in Israel's Worship. Trans. Daffyd R. Ap-Thomas, vol. 2. New York: Abingdon, 1962.
SIMANGO, Daniel. An exegetical study of imprecatory Psalms in the Old Testament. Thesis submitted for the degree Doctor of Philosophy in Old Testament at the Potchefstroom Campus of the North-West University, 2011. Promoter: Prof. P.P. Krüger.
SCHOKEL, Luís Alonso. Salmos I: salmos 1-72. Tradução, João Rezende Gosta; revisão H. Dalbosco e M. Nascimento. São Paulo: Paulus, 1996. (Coleção grande comentário bíblico)
VANGEMEREN, Willem A. "Psalms", vol. 5 of Expositor's Bible Commentary (Grand Rapids: Zondervan, 1991).
VOS, Johannes Geerhardus. "The Ethical Problem of the Imprecatory Psalms." Westminster Theological Journal 4 (1942):123-38.
ZENGER, Erich. A God of vengeance? : understanding the Psalms of divine wrath. Translated by Linda M. Maloney. Louisville: Westminster John Knox, 1996.



[1] A justiça retributiva é uma teoria da punição que, quando um infrator infringe a lei, a justiça exige que ele sofra em troca. Também exige que a resposta a um crime seja proporcional à ofensa. A prevenção de crimes futuros ou a reabilitação do agressor são outros propósitos de punição (Wikipedia inglês).

Nenhum comentário:

Postar um comentário