terça-feira, 30 de julho de 2024

Conhecendo os Diferentes Tipos de Comentários Bíblicos

 


A Bíblia é um texto atemporal e fascinante. Seu conteúdo vem sendo estudado e analisado há séculos. Como todos os ramos do conhecimento é necessário a utilização de ferramentas capacitadora para os que dela queiram usufruir com coerência e profundidade. Como se trata de um livro elaborado ao longo de séculos em épocas e culturas distintas e atualmente pouco conhecidas da maioria dos leitores torna-se importante a utilização dos chamados comentários bíblicos que tem sido produzidos ao longo do tempo através de pessoas que por muitos anos tem se debruçado sobre eles e extraído o máximo de sua mensagem e ensino.

Evidente, que a produção de milhares de comentários que foram e continuam sendo produzidos há a necessidade de compreendermos que tipo são e para que tipo de leitores eles são mais efetivamente adequados. Os comentários fornecem insights, explicações e interpretações do texto bíblico, ajudando os leitores a navegar por passagens complexas e descobrir significados ocultos. Desta forma, neste diminuto artigo veremos os diferentes tipos de comentários sobre a Bíblia e sua biblioteca de livros e como podem serem utilizados para lhe proporcionar uma compreensão mais eficiente e abrangente deste precioso e amado livro.

Comentários Históricos

Os comentários históricos têm como propósito primário fornecer o contexto histórico em que cada livro da Bíblia foi escrito. Como dito acima muitos deles foram produzidos em épocas muito distintas e até mesmo em culturas distintas. Desta forma, esses comentários procuram enfatizarem os aspectos políticos, sociais, culturais e religiosos do período em que cada escritor bíblico viveu. Ao entender o contexto histórico, os leitores podem obter uma imagem mais clara do que influenciou os escritos dos autores.

Como exemplo iremos usar um comentário histórico sobre o Livro do Êxodo em que se faz necessário um conhecimento mínimo da sociedade egípcia antiga, explorando temas como escravidão, governo dos faraós e práticas religiosas durante aquela época. Bem como, em que fase está a formação da nação israelitas em seu nascedouro. Esse tipo de comentário ajuda os leitores a entender por que certos eventos ou instruções foram significativos para as pessoas que viviam naquela época e como podem ser transpostos para os dias atuais.

Comentários Expositivos

Os comentários expositivos visam explicar o significado de cada versículo ou passagem de maneira sistemática e detalhada. Esses comentários geralmente dividem conceitos teológicos complexos em explicações facilmente compreensíveis para leitores em vários níveis de conhecimento bíblico.

Um comentário expositivo pode explorar temas como redenção ou perdão em diferentes livros da Bíblia. Ele também pode analisar palavras-chave ou frases-chave de seus idiomas hebraicos ou gregos originais para fornecer informações mais profundas sobre os significados pretendidos.

Esses comentários são particularmente úteis para pastores que preparam sermões ou indivíduos que buscam uma compreensão abrangente de versículos ou capítulos específicos das Escrituras.

Comentários devocionais

Os comentários devocionais são projetados para reflexão pessoal e crescimento espiritual. Ao contrário de outros tipos de comentários que se concentram na análise acadêmica, os comentários devocionais visam inspirar e encorajar os leitores em sua jornada de fé.

Os comentários devocionais geralmente incluem exemplos da vida real e aplicações práticas dos ensinamentos bíblicos. Eles ajudam os leitores a se conectarem com o texto em um nível mais pessoal e significativo, promovendo o crescimento espiritual e fornecendo orientação para a vida cotidiana.

Esses comentários são populares entre as pessoas que buscam devocionais diários ou aqueles que procuram aprofundar sua fé por meio de uma compreensão mais íntima das Escrituras.

Comentários comparativos

Extremamente útil para aqueles estudantes bíblicos que desejam obter uma visão mais ampla de um determinado texto e suas aplicações. Ainda que o escritor tenha sua preferência exegética-hermenêutica e teológica ele oferece aos leitores as interpretações e conclusões até mesmo divergentes, a fim de que o leitor possa elaborar sua própria conclusão sobre a interpretação textual. Esses comentários mostram diversos pontos de vista, permitindo que os leitores considerem vários ângulos ao interpretar os textos bíblicos. É preciso que os leitores tenham plena convicções e maturidade cristã a fim de não ficarem chocados ou confusos com as diversas abordagens oferecidas para um mesmo texto bíblico.

Por exemplo, um comentário comparativo sobre o Livro do Apocalipse pode apresentar interpretações de pais da igreja primitiva, teólogos medievais e estudiosos modernos, bem como as diversas e até mesmo conflitantes linhas escatológicas interpretativas. Todavia, essa abordagem ajuda os leitores a apreciarem a riqueza e a complexidade da interpretação bíblica ao longo da história e do tempo atual. É muito interessante, pois se demonstrara que muitas afirmativas e conclusões atuais, na verdade são roupagens novas para antigos ensinos.

Concluindo, os comentários devem ser instrumentos preciosos que ajudam a aprofundar o significado dos ensinos fundamentados na Bíblia. Cada um deles tem seus objetivos próprios, mas também se complementam e contribuem para o crescimento e maturidade da vida cristã de seus respectivos leitores, que desta forma aplicar sua sabedoria atemporal em seu contexto vivencial contemporâneo.

 

Guedes, Ivan Pereira

Mestre em Ciências da Religião.

Universidade Presbiteriana Mackenzie

me.ivanguedes@gmail.com

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Referências Bibliográficas

ALTER, Robert; KERMODE, Frank. Guia Literário da Bíblia. São Paulo: Fundação editora da UNESP, 1997.

BRUGGEN, Jacob Van. Para ler a Bíblia: uma introdução à leitura da Bíblia. Traduzido por Theodoro J. Havinga. São Paulo: Cultura Cristã, 1998.  

DOCKERY, S. David. Hermenêutica Contemporânea à luz da Igreja Primitiva. Traduzido por Álvaro Hattnher. São Paulo: Vida, 2005.

FEE, Gordon D. & Douglas Stuart. Entendes o que lês? Traduzido por Gordon Chown. São Paulo: Vida Nova, 2002.

SIFOLELI, Israel. Manual de Hermenêutica bíblica. São Paulo, Fonte Editorial, 2016.


sexta-feira, 19 de julho de 2024

ATOS – Antioquia Nova Base Missionária (13.1-3)

 



O capítulo 13 é um divisor de águas na narrativa lucana da expansão da Igreja Cristã. A partir deste ponto ele deixa Jerusalém e a toda Palestina para trás[1] e começa a descortinar diante de nós os avanços significativos que aquela primeira geração de cristãos deu em direção aos confins da terra.

O verso final de Atos 12 retoma a história da viagem de Barnabé e Saulo/Paulo a Jerusalém para entregar o fundo de socorro, que é mencionado em 11.30. Lucas não fornece detalhes sobre o que aconteceu nestes dias em que estiveram na cidade. Em 12.25, Lucas simplesmente observa que Paulo e Barnabé retornam a Antioquia após a visita de socorro.

Um detalhe interessante é a inserção do jovem João Marcos que retorna com eles de Jerusalém. Este jovem é sobrinho (alguns preferem primo) de Barnabé e tudo indica que ele presenciou muitos dos acontecimentos narrados no final dos evangelhos e no início de Atos. O tio deve ter lhe falado sobre tudo que o Espírito Santo estava fazendo em Antioquia o que certamente despertou o interesse do jovem a ir com eles. Ele fará parte da primeira equipe missionária a partir de Antioquia.

Outro detalhe é que a viagem de Saulo e Barnabé a Jerusalém provavelmente ocorre após a morte de Herodes, o que torna a viagem deles segura e viável. (Herodes ordenando a morte de Tiago e prendendo Pedro agradou as lideranças religiosas judaicas, certamente colocando Saulo (Paulo) na prisão cairia definitivamente no gosto deles).

Após aproximadamente dez anos uma nova base se estabelece. Uma pungente comunidade cristã surge em Antioquia, capital da província romana da Síria, com seus mais de trezentos mil habitantes e quatrocentos e cinquenta quilômetros ao norte de Jerusalém. Ali também se encontra um forte contingente de judeus e muitos deles haverão de participar da Igreja. Provavelmente está igreja foi fundada pelos cristãos que fugiram de Jerusalém logo após a morte de Estevão (11.19-21). Barnabé é enviado pelos apóstolos para verificar se a comunidade cristã em Antioquia está dentro dos parâmetros pré-estabelecidos e percebendo a grande oportunidade que está diante dele vai buscar Saulo de Tarso (futuro Paulo missionário dos gentios), que havia sido convertido na estrada para Damasco (11.22-26) e ali permanecem por mais de um ano. A roda da Providência de Deus continuamente em movimento, de maneira que, sem qualquer alarde se inicia um dos movimentos missionários mais profícuos e extraordinários de toda a história da Igreja Cristã em todos os tempos.

Entre tantos outros núcleos de avanço do cristianismo Lucas optou por acompanhar as chamadas viagens missionárias realizadas a partir da igreja em Antioquia, que desta forma se constituirá em uma nova sede da expansão da Igreja Cristã iniciante. Faz todo o sentido, pois o historiador tendo nos capítulos anteriores registrados os avanços na Palestina judaica, bem como Samaria e adjacências, agora deseja mostrar como o Evangelho foi se expandindo pelo restante do Império Romano e como os não judeus (gentios) foram tomando conhecimento da mensagem evangélica e crendo, estabelecendo desta forma igrejas cada vez mais gentílica e menos judaicas.

Até agora, Jerusalém e a Judeia tinha sido o centro de sua narrativa. Pedro foi o personagem mais proeminente na narrativa. Agora, Lucas muda seu foco para a igreja em Antioquia e o personagem proeminente será Paulo (Saulo).

Os primeiros versos do capítulo treze nos possibilitam ver que o Espírito continua sendo o estrategista e condutor do movimento missionário cristão. É o Espírito quem separa (escolhe) Barnabé e Saulo (Paulo) e os envia para uma obra missionária expansionista. Evidentemente que a sensibilidade espiritual da liderança de Antioquia e a pronta disponibilidade dos convocados não podem ser minimizadas de forma alguma.

Posteriormente, em suas correspondências, Paulo vai ensinar que profetizar e ensinar são dons de Deus, dados pelo Espírito Santo para o bom funcionamento da igreja (Rm 12.4-8). No esboço das funções na igreja que Paulo descreve aos Coríntios, profetas e mestres são mencionados logo após os apóstolos (1Co 12.28). Em outra epístola, Paulo insere o papel de evangelista entre o de profeta e mestre (Ef 4.11).

Sendo uma característica peculiar de Barnabé, acaba por incluir o jovem João Marcos, seu sobrinho (ou primo) que havia vindo junto com eles de Jerusalém após a entrega da oferta aos necessitados, para compor a pequena equipe missionária. O termo grego usado para ele indica que é um ajudante, um aprendiz, na nossa linguagem um seminarista iniciando seu treinamento prático. Aparentemente o jovem fracassa em seu teste prático, todavia, posteriormente o veremos sendo extremamente importante para o trabalho realizado neste período inicial da Igreja, inclusive sendo ele o escritor de uma de nossas narrativas evangélicas, provavelmente decorrente das memórias do apostolo Pedro. O Espírito Santo trabalha prepara seus instrumentos a partir de suas limitações. Quando fracassamos, e vamos fracassar em algum momento, não significa que nunca teremos sucesso, apenas que vai demorar um pouco mais.

Lucas nomeia cinco profetas e mestres em Antioquia. Barnabé, Simeão chamado Níger, Lúcio de Cirene, Manaém (que havia sido criado com Herodes) e Saulo. Seus nomes mostram que eles vêm de uma ampla variedade de origens sociais e étnicas.

Barnabé é mencionado primeiro por Lucas, pois ele é o delegado apostólico e uma figura importante na igreja de Jerusalém (9.27; 11.22-30). Já o conhecemos como um levita de Chipre que viveu em Jerusalém (4.36-37). Ainda mais, o conhecemos como "um homem bom, cheio do Espírito Santo e da fé" (11.24).

Simeão tem o apelido latino de Níger, ou "o negro". Seu nome é judeu, então é improvável que ele seja africano, embora possa ter tido a pele escura. O apelido pode distingui-lo de outros Simões na igreja, como Simão Pedro.

Lúcio tem um nome latino (romano). É possível, embora não seja certo, que ele seja um gentio, porque ele é de Cirene no norte da África. Talvez ele tenha feito parte do grupo cirênio (os de Cirene) que primeiro pregou o evangelho da salvação aos gentios de Antioquia (11.20).

Manaém é a forma grega do hebraico Menahem, que significa "consolador". Ele foi "criado com Herodes, o tetrarca (13.1). Este é o Herodes dos Evangelhos, a quem Jesus certa vez chamou de "aquela raposa" (Lc 13.32). Este Herodes foi responsável pela prisão e morte de João Batista (Mc 6.14-28). Se Manaém cresceu com ele, é possível que ele tenha sido levado para a corte real para ser um companheiro do príncipe; Esses meninos eram então chamados de "irmãos adotivos".

Que destinos tão diferentes tomaram esses dois rapazes - um alcança a honra como líder cristão, enquanto o outro é lembrado por seu comportamento inglório no assassinato de João Batista e no julgamento de Jesus!

Saulo é mencionado por último por Lucas, e ele continua a usar a forma judaica de seu nome, e não Paulo nome romano. Ele é o último porque é um recém-chegado a Antioquia (11.25). Mas ele logo assumirá o centro do palco no relato de Lucas, enquanto os outros, com exceção de Barnabé, não farão mais parte da história.

Esses homens são diferentes, cada um tem sua própria história, mas o Espírito Santo os trouxe e os colocou na mesma igreja e os capacitou com dons espirituais, para que pudessem conduzir o processo da expansão missionária.

Estamos por volta do ano 47 d.C. quando eles iniciam esta primeira viagem missionária (13.4-14.28)[2]. Nos próximos artigos acompanharemos passo a passo esta fascinante jornada e seus desdobramentos na expansão do cristianismo mundial.

 

Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
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Referência Bibliográfica

BAXTER, J. Sidlow. Examinai as Escrituras, v.6. São Paulo: Vida Nova, 1989.

FITZMYER, Joseph A. Los Hechos de los apóstoles, v. 1. Salamanca (Espanha): Ediciones Sígueme, 2003.

MARSHALL, I. Howard. Atos – introdução e comentário. Tradução Gordon Chown. São Paulo: Vida Nova, 1982 (2008).

STAGG, Frank. O Livro de Atos – a luta primitiva em prol de um Evangelho vencedor. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1958.

SMITH, T. C. Comentário Bíblico Broadman, v.10, JUERP, Rio de Janeiro, 1984.

WILLIAMS, David J. Atos - Novo Comentário Bíblico Contemporâneo. São Paulo: Editora Vida, 1996.



[1] Jerusalém somente reaparecera no capítulo 15 (realização do primeiro Concílio da Igreja Cristã) e esporadicamente até à prisão de Paulo e seu encaminhamento para Roma.

[2] Este é o primeiro de três blocos narrativos que compõem os registros das viagens missionárias de [Paulo] Saulo. O primeiro deles estabelece o modelo dos três. É importante, sem embargo, ter em conta que nem o apóstolo e nem Lucas numeraram estas viagens. A numeração é obra dos comentaristas modernos de Atos, que dividem os episódios em três blocos". Fitzmyer, Joseph A. Los Hechos de los Apóstoles, v.2, Ediciones Sígueme, Salamanca, 2003, p. 122. 

sábado, 13 de julho de 2024

Samaritanos e Sua História

 

Samaria tornou-se o nome do reino do norte de Israel depois que o rei Omri comprou a colina de Samaria de Shemer por dois talentos de prata (1 Rs 16.24). Omri construiu aqui a Terceira capital do Reino do Norte. Tão importante tornou-se esta cidade que seu nome se fez uma metonímia para todo o reino do norte (Isaías 9.9-12; Oseias 8.5; Amós 3.9). O Antigo Testamento nomina os habitantes pré-exílicos do reino do norte de “hashomronim” ("Samaritanos"; "Pessoas de Samaria"), em referência à sua capital, Samaria.[1]

Uma referência especifica aos samaritanos nas Escrituras é após o retorno dos judeus do exílio babilônico. Inicialmente, os samaritanos tentaram se associar na reconstrução do templo em Jerusalém e posteriormente nos muros. Mas os líderes judeus perceberam suas reais intenções e os rejeitaram.

A reação samaritana foi imediata e como retaliação empreenderam todos os esforços para interromper a reconstrução:  zombarias (Ne 4.1-3), ameaças (Esdras 4.4; Ne 4.11-13), e fizeram pressões diplomáticas junto às autoridades persas governantes (Esdras 4.7-24). Esse início é apenas um reflexo da relação histórica desses dois povos vizinhos no transcorrer dos anos até o fim de suas respectivas nações.   

No registro bíblico de Segundo Reis 17 encontramos algumas pistas sobre a origem da população de Samaria naquela época. Em 722 a.C., o reino setentrional de Samaria caiu nas mãos dos exércitos assírios. A política assíria para evitar a rebelião entre seus povos conquistados era realocar populações inteiras de maneira que quebrava o espírito nacionalista. Temos esse registro em Segundo Reis 17.24:

O rei da Assíria trouxe pessoas da Babilônia, Cuta, Ava, Hamate e Sefarvaim e os estabeleceu nas cidades dos samaritanos".

Juntamente com esses povos vieram seus deuses e seus cultos, pois eles desconheciam o Deus de Israel. O Senhor, aparentemente ainda ciumento de sua terra, enviou leões para atacá-los. Temendo uma revolta entre os samaritanos restantes e os novos moradores, o rei da Assíria ordenou que um sacerdote fosse enviado para ensiná-los "o costume do deus da terra" (2 Reis 17.27). Infelizmente, o ensinamento do sacerdote enviado teve pouco impacto. Os povos continuaram a adorar seus próprios deuses:

No entanto, cada etnia fez seus próprios deuses nas diversas cidades em que moravam e os puseram nos altares idólatras que o povo de Samaria havia feito.

Os de Babilônia fizeram Sucote-Benote, os de Cuta fizeram Nergal e os de Hamate fizeram Asima; os aveus fizeram Nibaz e Tartaque; os sefarvitas queimavam seus filhos em sacrifício a Adrameleque e Anameleque, deuses de Sefarvaim (2 Reis 17:29-31).

Ainda com medo da ira do Deus samaritano, as novas populações passaram a servirem o Deus de Israel ao lado de seus próprios deuses. Eles até designaram sacerdotes entre si para oferecer sacrifícios nos lugares altos. Assim, eles continuaram seguindo os costumes religiosos de suas terras (2 Reis 17.29-33).

Mesmo sabendo que esse sincretismo era inaceitável diante do ensino da Torah, os samaritanos se adaptaram à ao “novo normal” e esse era o contexto do diálogo de Jesus com a mulher Samaritana.[2]

O registro de 2 Reis é muito enfático: “Eles não quiseram, no entanto, mas persistiram em suas práticas anteriores. Mesmo enquanto essas pessoas estavam adorando o Senhor, elas estavam servindo seus ídolos. Até hoje filhos e netos continuam a fazer como seus antepassados (17.34, 40-41).

Esse foi o argumento de Esdras e Neemias, para rejeitarem a proposta de associação com os samaritanos no período da reconstrução do templo e muros de Jerusalém. Esta disputa sobre a pureza teológica levou à animosidade política entre os judeus de Judá e os habitantes de Samaria que permaneceu durante o período Inter testamental e até os dias de Jesus.

Relações Samaritanas/Judaicas no Período Inter Testamentário.

Neste período antecedente ao contexto neotestamentário a inimizade entre eles somente cresceu. No período do reinado de Antíoco III (o Grande) os samaritanos chegaram a vender judeus como escravos. Os samaritanos também interferiram com os fogos de sinal que anunciavam a lua nova para os habitantes judeus fora da Judeia. No período da infância de Jesus, os samaritanos contaminaram o templo de Jerusalém espalhando ossos de homens mortos no pátio do templo, o que era algo abominável para os judeus.

Mas os atos de animosidade eram mútuos: os judeus no reinado de João Hircano reduziram as dimensões da cidade samaritana de Siquém e conquistaram a cidade de Samaria, vendendo seus habitantes como escravos. Hircano também cometeu a profanação final contra a religião samaritana, destruindo seu templo no Monte Gerizim."

De acordo com Yehoshua M. Grintz,[3] "os samaritanos consideravam este templo como seu local mais sagrado, e sua tradição atribui quase todo o relato bíblico dos feitos dos patriarcas e os lugares associados a eles (a terra de Moriá, Beth-El, etc.) ao Monte Gerizim. Apesar da destruição do templo, o Monte Gerizim continuou como o local de culto samaritano (a questão levantada pela mulher samaritana no diálogo com Jesus).

Relação de Cristo e os primeiros Cristãos com os Samaritanos

Quando lemos as narrativas evangélicas, os samaritanos, ao menos inicialmente, viam em Jesus apenas mais um judeu, e, desta forma, manifestavam a mesma hostilidade e aversão que teriam por qualquer judeu (cf. Lc 9.51-56; Jo 4.9). Todavia, a atitude de Jesus era justamente o oposto dos judeus em geral, Ele não possuía ou demonstrava hostilidade, rivalidade, ódio ou sentimento de exclusão para com os habitantes de Siquém, Samaria e região.

       Jesus nunca teve qualquer dificuldade em se relacionar com os samaritanos (João 4.1-42). Cristo não marginalizou esse povo em relação à Sua pregação, pregando a eles sem distinção quando tinha oportunidade, e quando de sua ascensão aos céus incluiu-os nominalmente em sua ordem de evangelização, deixando claro que os samaritanos não poderiam ser negligenciados, e mais, eles fazem parte daqueles que deveriam ouvir a mensagem de salvação em primazia, ao lado de Jerusalém e Judeia (At 1.8).

       A narrativa de Lucas (gentio) em Atos revela que a antiga aversão judaica não predominou no espírito dos apóstolos. Lucas registra que eles lhes faziam o bem e pregavam a eles, batizando-os e os aceitando como membros da comunidade de fé (At 8.4-8, 14-17). Evidente que dois fatores propiciaram essa mudança radical de atitude: o exemplo das palavras, ações e posição de Jesus em relação aos samaritanos, incluindo-os na ordem da grande comissão (Atos 1.8) e a descida do Espírito Santo/Pentecostes (Atos 2.1-4).

       Pode se identificar essa nova perspectiva em Atos quando da conversão dos samaritanos e seus batismos, incluindo o recebimento do Espírito Santo que não trouxe quaisquer reações negativas em relação à Igreja apostólica em Jerusalém. O que não ocorreu com o ingresso dos gentios que causou a convocação do primeiro Concilio cristão.

       Como tão bem enfatiza o apostolo Paulo em suas diversas correspondências na Igreja de Cristo não pode haver nenhuma distinção étnica. Mas em amor deve-se buscar sempre a harmonia e comunhão.

 

Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
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Referências Bibliográficas

ARCHER JR., G. L. Merece Confiança o Antigo Testamento? 3. ed. São Paulo, SP: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 2008.

BRUCE, F. F. João: Introdução e Comentário. São Paulo, SP: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova e Mundo Cristão, 1988.

BRIGHT, J. História de Israel. 3. ed. São Paulo, SP: Paulinas, 1985. v. 7.

CHAMPLIN, R. N. O Antigo Testamento Interpretado: versículo por versículo. Dicionário M-Z. São Paulo, SP: Hagnos, 2001. v. 7.

DAVIDSON, F. O Novo Comentário da Bíblia. São Paulo, SP: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1995.

DODD, C. H. A Interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo SP: Paulus, 2003.

FOHRER, G. História da Religião de Israel. São Paulo, SP: Academia Cristã, 2006.

JEREMIAS, J. Jerusalém no Tempo de Jesus: pesquisas de história econômico-social no período neotestamentário. Santo André, SP: Academia Cristã Paulus, 2010.

JOSEFO, F. História dos Hebreus: obra completa. 6. ed. Rio de Janeiro, RJ: CPAD, 2002.

SCHULTZ, S. J. A História de Israel no Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo, SP: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 2009.

SILVA, E. R. Os samaritanos: quem eram e o que criam. Kerygma, v. 5, n. 1, p. 102-120, 2009.

BEITZEL, Barry J. (General Editor). Lexham Geographic Commentary on the Gospel. (p. 96-98).

 


[1] Mais tarde, o termo "samaritano" se restringiu a diferenciar um grupo de habitantes considerados estrangeiros para os judeus. (Jesus faz distinção entre os samaritanos, os gentios e os judeus (Mt 10.5, 6).

[2] Na Bíblia, o termo "samaritanos" aparece pela primeira vez em Mateus 10:5. Em Jesus dia, o termo "samaritano" se referia a um que vivia na província romana de Samaria, não necessariamente da cidade de Samaria. A mulher, sem dúvida, originou-se de Sicar, pois a cidade de Samaria ficaria a cerca de duas horas a pé do poço.

 [3] Grintz, Yehoshua M., and Shimon Gibson. “Gerizim, Mount.” EJ 7:507-9.

domingo, 7 de julho de 2024

ATOS – A IMPORTÂNCIA DA HERMENEUTICA CORRETA


É um fato reconhecido que o livro de Atos é de importância fundamental na arquitetura do NT. Sua importância para a história do movimento cristão, pois nos apresenta os momentos cruciais que marcaram o inicio deste movimento.

Este livro tem sido utilizado, muitas vezes fora de um contexto hermenêutico correto, por vários grupos cristãos para dar sustentação aos seus ensinos, sua fé, sua doutrina e sua ética. Por exemplo, a Igreja Católica Romana, segundo suas regras de interpretação, o usa como uma das bases bíblicas o estabelecimento da hierarquia clerical. Os grupos carismáticos que, segundo suas interpretações o citam para defender suas doutrinas e práticas relacionadas com o Espírito Santo. Quem também se utiliza abundantemente deste livro são os defensores da chamada teologia da libertação, que segundo suas regras de interpretação, o empregam para subsidiar seu conceito da missão verdadeira da Igreja. Deste modo, a forma como se lê e interpreta o livro de Atos vai determinar o fim ou propósito de sua utilização. Ainda que possa ser utilizado com a maior e melhor das boas intenções Atos, como qualquer outro livro bíblico, tem que ser estudado e interpretado segundo as normas estabelecidas pela hermenêutica bíblica. Quando isto não é feito corre-se o risco de se chegar à conclusões precipitadas ou mesmo intencionalmente distorcidas do sentido original do texto bíblico.

Hermenêutica vem do grego ermeneúo (explicar) como podemos ver em Mateus 1.23 “... e chamarás seu nome Emanuel, que traduzido [ermeneúo] quer dizer: Deus conosco”. Ela tem sido definida como a ciência e a arte da interpretação. É uma ciência porque se baseia em certas normas e princípios e é arte porque exige destreza e habilidade que soment se adquire com a prática. Interpretar, aplicado à linguagem, significa encontrar e explicar o significado original de uma composição literária, uma expressão verbal ou qualquer outro meio de comunicação que se empregue. A responsabilidade do interprete é captar e expressar com o máximo de exatidão o significado daquilo que o autor original desejou expressar.

É de vital importância, portanto, que o interprete utilize o principio ou princípios que com maior segurança lhe possibilitará a expressar com clareza o significado original do que esta a interpretar. Nestes últimos tempos tem se multiplicado sem limites os sistemas hermenêuticos, trazendo em seu bojo muito mais confusão do que clareza. O que se percebe é que cada grupo sectário acaba por criar regras próprias de hermenêutica para dar sustentabilidade às sua idéias e conceitos pré-concebidos. Assim sendo, o cristão que deseja estudar, aplicar a sua vida e proclamar a outros o conteúdo da Palavra de Deus, deve fundamentar-se em um método ou principio de interpretação que o ajude a alacançar seus objetivos.

O interprete deve lembrar sempre que a Bíblia é uma unidade, ainda que conste de um total de sessenta e seis livros. Isto significa que o interprete tem a responsabilidade de integrar harmoniosamente os ensinos extraídos de cada um destes livros. Ele precisa ter uma percepção teológica, pois, se a Bíblia é um todo e tem apenas um Autor Divino  (o Espírito Santo), isto implica em que não pode haver contradições reais em seu conteúdo. Deste modo, a grande tarefa do interprete é indubitavelmente a de harmonizar os ensinos contidosde Gêneses ao Apocalipse.

Os princípios de interpretação são as ferramentas para todo aquele que pretende estudar e expor as Escrituras. Para ser um bom pregador e professor bíblico é necessário que aprenda e utilize estas preciosas ferramentas. O bom sermão e a boa aula é aquela em que o texto bíblico foi respeitado e interpretado com fidelidade e não aqueles em que a pessoa expõe sua próprias idéias e conceitos.

O que se chama de nova hermenêutica é apenas uma desculpa para distorcer osentido original do texto bíblico. Por exemplo, a hermenêutica política é a pretensão de se interpretar a Bíblia à luz das situações sócio-políticas existentes. O que ocorre é que não se produz uma interpretação, mas sim, uma reinterpretação das situações sócio-políticas que são confrontadas com as condições sociais contemporâneas. A Bíblia não deve ser interpretada à luz das condições sociais mas que as condições sociais devem ser interpretadas à luz da Bíblia.

As Escrituras, que foram dirigidas à necessidades especificas, devem ser interpretadas e aplicadas às necessidades de situações atuais. A tarefa do interprete é tomar a essência dinâmica da revelação de Deus e, debaixo da direção do Espírito Santo, fazer a aplicação pertinente às questões contemporâneas. Mas isto somente poderá ser feito com a aplicação de uma hermenêutica sadia.

Meu desejo é que o material disponibilizado possa ser usado por Deus e possa alcançar três objetivos: 1) Despertar o interesse e o valor do livro de Atos; 2) guiar aqueles que o utilizam a uma melhor compreensão do mesmo; e finalmente (3) prover aos leitores uma hermenêutica mais sadia com a qual pode ser alcançadas as primeiras metas.

Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
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Referências Bibliográficas

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FEE, Gordon D. & Douglas Stuart. Entendes o que lês? Traduzido por Gordon Chown. São Paulo: Vida Nova, 2002.

MARSHALL, I. Howard. Atos – introdução e comentário. Tradução Gordon Chown. São Paulo: Vida Nova, 1982 (2008).

SIFOLELI, Israel. Manual de Hermenêutica bíblica. São Paulo, Fonte Editorial, 2016.

WILLIAMS, David J. Novo Comentário Bíblico Contemporâneo – Atos. São Paulo: Vida, 1996.