domingo, 22 de março de 2020

O Peregrino (John Bunyan) Um Guia de Estudo – Parte 1A



O livro [1] começa com a defesa e/ou explicação do autor, escrita em verso, da razão pela qual escreveu o livro e porque utilizou a linguagem alegórica. A razão é   que ele deseja comunicar a mensagem do Evangelho a todos quantos estão interessados. Ele utiliza a linguagem alegórica [2] por dois motivos: primeiro é que é uma linguagem encontrada em partes das Escrituras e elas são incrivelmente importantes para Bunyan, e o leitor pode sentir essa influência ao longo do livro, porque há uma alusão ou citação das Escrituras em quase todas as páginas; e segundo para atrair e despertar a mente apática das pessoas, pois assim como o pescador utiliza as mais variadas iscas para atrair o peixe, ele haverá de utilizar-se das mais variadas linguagens para captar atenção de seus leitores. E conclui sua defesa conclamando o leitor a ler tanto com o coração quanto com a mente.
Começa o sonho do autor
Caminhando pelo deserto deste mundo, parei num sítio onde havia uma caverna; ali me deitei para descansar. Em breve adormeci e tive um sonho.

Nas primeiras linhas Bunyan apresenta ao leitor um homem infeliz e profundamente abalado, lendo um livro. Não é possível identificar de imediato quem é essa pessoa, ou seja, pode ser qualquer um, pois na verdade representa a humanidade sobrecarregada e perdida. Posteriormente se descobre que esse homem chama-se Cristão e o livro que ele está lendo é a Bíblia, enquanto lê toma conhecimento de que é um pecador, mas se sente impotente em mudar por si mesmo essa situação miserável.
 Vi um homem coberto de andrajos, de pé, e com as costas voltadas para a sua habitação, tendo sobre os ombros uma pesada carga e nas mãos um livro (Isaías 64.6; Lucas 14.33; Salmo 38.4; Habacuque 2.2).
Olhei para ele com atenção e vi que abria o livro e o lia; e, à proporção que o ia lendo, chorava e estremecia, até que, não podendo conter-se por mais tempo, soltou um doloroso gemido e exclamou. “Que hei de fazer?” (Atos 2.37 e 16.30; Habacuque 1.2-3).

Deus não planejou que a jornada do cristão fosse fácil, e o primeiro grande obstáculo que o cristão enfrenta é sua família relutante.
Nos dias de Bunyan a Inglaterra passava por uma crise religiosa muito grande e os que defendiam o catolicismo perseguiam os que não eram católicos, especialmente os chamados Puritanos. Mas para seguir o que ele sabe ser verdade, o cristão deve enfrentar a oposição sistemática do mundo, incluindo sua própria família.
Diante da resistência de seus familiares ele haverá de tomar a decisão comovente de iniciar solitariamente sua jornada. Apesar de todos os percalços que ele haverá de enfrentar e muitas vezes da sensação de solidão, o Peregrino nunca se arrepende de sua decisão.
Neste estado voltou para sua casa, diligenciando reprimir-se o mais possível, a fim de que sua mulher e seus filhos não percebessem sua aflição. Como, porém, o seu mal recrudescesse, não pôde por mais tempo dissimulá-lo, e, abrindo-se com os seus, disse por esta forma.
 “Querida esposa, filhos do coração, não posso resistir por mais tempo ao peso deste fardo que me esmaga. Sei com certeza que a cidade em que habitamos vai ser consumida pelo fogo do céu, e todos pereceremos em tão horrível catástrofe se não encontrarmos um meio de escapar. O meu temor aumenta com a ideia de que não encontre esse meio.”
Ao ouvir estas palavras, grande foi o susto que se apoderou daquela família, não porque julgasse que o vaticínio viesse a realizar-se, mas por se persuadir de que o seu chefe não tinha em pleno vigor as suas faculdades mentais.
E, como a noite se avizinhava, fizeram todos com que ele fosse para a cama, na esperança de que o sono e o repouso lhe sossegariam o cérebro. As pálpebras, no entanto, não se lhe cerraram durante toda a noite, que passou em lágrimas e suspiros.
Pela manhã, quando lhe perguntaram se estava melhor, respondeu negativamente, e que a moléstia cada vez mais o afligia.
Continuou a lastimar-se, e a família, em lugar de se compadecer de tanto sofrimento, tratava-o com aspereza. Esperava, sem dúvida, alcançar por este modo o que a doçura não pudera conseguir até ali, algumas vezes zombavam dele; outras o repreendiam; e quase sempre o desprezavam.
Só lhe restava o recurso de se fechar no seu quarto para orar e chorar a sua desgraça, ou o de sair para o campo, procurando na oração e na leitura lenitivo a tão indescritível dor.

Cristão depois de muitos dias de sofrimento, angústia e oração é visto andando nos campos, lendo seu livro (sua Bíblia). Ele está sozinho e grita fazendo a pergunta mais importante que um homem pode fazer: "O que devo fazer para ser salvo"?
Enquanto Cristão pensa o que fazer a seguir, aproxima-se dele um homem chamado Evangelista, pois Deus em sua bondade não deixa o ser humano sem orientação, nem mesmo na hora mais sombria, mas envia seus servos para explicar e apontar o Caminho.
O simbolismo da chegada do evangelista é bastante flagrante, ou pelo menos teria sido para os leitores de Bunyan.
No cristianismo, os autores dos evangelhos são referidos como evangelistas, uma palavra derivada do termo grego para “boas novas”. O evangelista chega para entregar as boas novas ao homem, que foi divinamente chamado para a salvação. O evangelista diz ao cristão (na verdade, a Bíblia diz a ele) como começar no caminho da salvação. Este é o primeiro de muitos exemplos no texto em que Bunyan descreve a maravilhosa graça de Deus em ação. No coração da teologia reformada está uma teologia da graça, e o poder da graça é um tema que impregna todo o texto.
Embora o personagem seja chamado de Evangelista, identificando especialmente a figura pastoral, biblicamente todos os crentes têm um ministério "ensinando e admoestando uns aos outros" (Colossenses 3.16); todos os crentes têm a missão de orientar outros para que sigam a Jesus (Mateus 28.19) e todos nós devemos estar prontos para compartilharmos a razão da esperança que existe em nós (1 Pedro 3.15).

“Senhor, oramos por aqueles que agora estão sobrecarregados, sob o peso e a culpa do pecado. Pai ajude-nos a apontar para Jesus, aqueles que fogem da ira vindoura,
      para que encontrem o portão e a entrada para a cruz, o caminho da salvação”.

"Uma oração para os peregrinos"
Ken Puls

Certo dia, em que ele andava passeando pelos campos, notei que se achava muito abatido de espírito, lendo, como de costume, e ouvindo-o exclamar novamente.
“Que hei de fazer para ser salvo?”
O seu olhar desvairado volvia-se para um e outro lado, como em busca de um caminho para fugir; mas, não o encontrando de pronto, permanecia imóvel, sem saber para onde se dirigir.
Vi, então, aproximar-se dele um homem chamado Evangelista (Atos 16.30-31; Jó 33.23) que lhe dirigiu a palavra, travando-se entre ambos o seguinte diálogo.
Evangelista – Por que choras?
Cristão – (Assim se chamava ele). – Porque este livro me diz que eu estou condenado à morte, e que depois de morrer, serei julgado (Hebreus 9.27), e eu não quero morrer (Jó 16.21-22), nem estou preparado para comparecer em juízo! (Ezeq. 22.14).
Evangelista – E por que não queres morrer, se a tua vida é cheia de tantos males?
Cristão – Porque temo que este pesado fardo que tenho sobre os ombros, me faça enterrar ainda mais do que o sepulcro, e eu venha a cair em Tofete (Isaías 30.33). E, se não estou disposto a ir para este tremendo cárcere, muito menos para comparecer em juízo ou para esse suplício.
Eis a razão do meu pranto.
Evangelista – Então, por que esperas, agora que chegaste a esse estado?
Cristão – Nem sei para onde me dirigir.
Evangelista – Toma e lê. (E apresentou-lhe um pergaminho no qual estavam escritas estas palavras. “Fugi da ira vindoura” - Mateus 3.7).
Cristão – (Depois de ter lido). E para onde hei de fugir?
Evangelista – (Indicando-lhe um campo muito vasto). Vês aquela porta estreita? (Mateus 7.13-14).
                       Cristão – Não vejo.
Evangelista – Não avistas além brilhar uma luz? (Salmo 119.105; II Pedro 1.19).
                       Cristão – Parece-me avistá-la.
Evangelista – Pois não a percas de vista; vai direito a ela, e encontrarás uma porta; bate, e lá te dirão o que hás de fazer.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/

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Referências Bibliográficas
Brown, John. John Bunyan, His Life, Times and Works. Ed. Frank Mott Harrison. London: The Banner of Truth Trust, 1964.
BUNYAN, John. O peregrino: com notas de estudo e ilustrações. Trad. Hope Gordon Silva. São Paulo: Editora Fiel, 2005.
______________. Grace abounding to the chief of sinners. Disponível em
<http://acacia.pair.com/Acacia.John.Bunyan/Sermons.Allegories/Grace.Abounding/Account.Ministry.html>. Acesso em abril de 2017.
 FOXE, John. O livro dos mártires. Traduzido por Almiro Pizetta. São Paulo: Mundo Cristão, 2003.
GREAVES, Robert L. John Bunyan. Grand Rapids: William B. Eerdmans Publishing Company, 1969.
HARRISON, G. B. John Bunyan, A Study in Personality. London: J.M. Dent and Sons, 1928
MARGUTTI, Vivian Bernardes. Peregrinos em busca: alegoria, utopia e distopia em Paul Auster, Nathaniel Hawthorne e John Bunyan. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2010. (Tese Doutorado em Letras: Estudos Literários, Orientador: Prof. Dr. Luis Alberto Ferreira Brandão
Santos).
 SANTOS, Tiago. A Peregrinação cristã: sofrimento e vida de John Bunyan. http://voltemosaoevangelho.com/blog/2014/03/a-peregrinacao-crista-sofrimento-e-vida-de-john-bunyan-tiago-santos/ 



[1] Depois da Bíblia esse livro é o mais vendido em todos os tempos.
[2] Uma alegoria (do grego αλλος, allos, "outro", e αγορευειν, agoreuein, "falar em público", pelo latim allegoria) é uma figura de linguagem, mais especificamente de uso retórico, que produz a virtualização do significado, ou seja, sua expressão transmite um ou mais sentidos além do literal.

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