quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Natividade : Cantada Natalina Segundo Lucas – Magnificat (Lc. 1.46-55)



Lucas e Mateus são os evangelistas que registram os acontecimentos anteriores ao nascimento de Jesus. Marcos não faz uma única referência a tais acontecimentos, pois inicia com o ministério de João Batista e o subsequente batismo de Jesus e o quarto evangelista João abre sua narrativa nos transportando ao inicio da própria criação onde o Verbo (Jesus) estava com Deus, de maneira que Jesus não somente não é parte da criação, como participa efetivamente do ato criativo.
Ainda que Lucas e Mateus tratem dos mesmos acontecimentos cada um deles elaboram suas respectivas narrativas de forma bem distinta. Ainda que de forma incomum Mateus começa incluindo quatro mulheres na genealogia de Jesus, algo realmente inédito para aquela época em que a mulher nem mesmo era contada para efeito de senso, e faz o devido destaque à Maria, no que concerne à revelação angelical de sua fecundação e sua resposta em fé e submissão à vontade de Deus, a figura central na narrativa acaba sendo a figura de José pelo qual os acontecimentos posteriores vão sendo desenvolvidos. Interessante que no desenvolvimento da história da igreja cristã a figura de José vai desaparecendo e a figura de Maria vai assumindo uma projeção que jamais foi imaginada pelos evangelistas.
De forma distinta de seu colega, o evangelista Lucas desenvolve sua narrativa centrada nas figuras das mulheres - Isabel, Maria, Ana (a profeta). Toda ação é vista sempre pelo prisma destas mulheres que são modelos de genuína fé e submissão à vontade de Deus. Os homens, ainda que desempenhem alguma função narrativa, são deslocados para a periferia dos acontecimentos (Zacarias, José e Simeão).
Outra característica peculiar a Lucas é a sua elaboração da primeira “cantata natalina” da história cristã. Nos dois primeiros capítulos o evangelista inclui ao menos quatro cânticos referentes ao nascimento de Jesus:
O cântico de Maria (1.46-55)
O Cântico de Zacarias (1.67-79)
O cântico dos anjos (2.14)
O cântico de Simeão (2. 28-32)
            O primeiro cântico é o que foi entoado por Maria logo após ela ser comunicada pelo anjo do que Deus haveria de fazer nela e através dela. Esse cântico tem sido denominado de “Magnificat” (1.46-55), por ser o termo utilizado na primeira linha: “Minha alma exalta (ou magnifica) o Senhor” (v. 46), ainda que muitas traduções prefiram traduzir “Minha alma glorifica o Senhor”. Porém o termo “magnifica” (exalta) se aproxima mais do significa original grego. Porque o que Maria está realmente fazendo é falar de quão grande é Deus; quão tremendo é Deus; ela está magnificando a Deus, glorificando-o – isso é louvor em sua essência. E como podemos magnificar a Deus? Nas Escrituras e particularmente no saltério com seu conjunto de cento e cinquenta cânticos, somos ensinados que magnificamos a Deus quando testemunhamos dele; quando proclamamos a respeito dele e de seus poderosos feitos na nossa vida e na história de seu povo (igreja). Neste sentindo tornamos Deus conhecido e grande para aqueles que estejam sentindo falta dele em suas vidas ou estejam ignorantes quanto à realidade Dele. É isso que Maria esta fazendo aqui: ela está dizendo – vejam o que Deus está fazendo em minha vida! Este é o Deus em quem creio! Vou cantar sobre Ele para que todos possam saber que é real.
A expressão “minha alma” e “meu espírito” revela que o cântico prove do mais intimo de seu ser e emanado de seu coração, mas também em plena consciência e/ou inteligência para discernir tudo quanto Deus está e fará nela e através dela. O perfeito louvor amalgama de forma inseparável o coração e a mente – a alma e o espírito – todo cântico que desassocia estas duas fontes tornam-se deficitários e não cumprem plenamente a função para o qual eles devem ser compostos e entoados. Quando plenamente submissos à vontade de Deus a inteligência (razão) e a emoção jamais serão antagônicas, mas irmãs siamesas inseparáveis do perfeito louvor. Um louvor que não sensibiliza o coração torna-se limitado e um louvor destituído de inteligência bíblica torna-se perigoso.
O objetivo de Lucas ao incluir esta série de cânticos não é apenas estético, mas tem uma função muito bem delineada dentro da catequese progressiva que ele se propôs desde sua introdução. É da boca de Maria que temos a primeira referência ao termo “salvador” (soter – v.47) que é um titulo utilizado abundantemente no Primeiro Testamento para se referir as ações de Deus em favor de seu povo, especialmente nos capítulos finais de Isaías (relacionados peculiarmente à vinda do Messias) e nos Salmos. “Meu salvador” – as palavras da jovem Maria expressa o quanto sabia da necessidade de ser salva e de que jamais poderia alcançar essa salvação por si mesma. Sua salvação somente poderia ser provida pelo seu Senhor (Adonai/Yahweh) o Deus da aliança.
Outro arranjo literário de Lucas aparece neste cântico de Maria, onde ela declara que Deus é grande e poderoso, pois “contemplou na humildade da sua serva” (v.47). Quem era Maria? Uma jovem judia que estava fazendo seu enxoval e sonhando com sua festa de casamento? O que ela tinha de especial? Absolutamente nada. E por que Deus a escolheu? Unicamente mediante a graça e misericórdia Dele. E não sou eu que estou falando isso é a própria Maria quem o faz ao longo de todo o cântico descrevendo a si mesma (e a nós) como humilde, faminta e como a mais humilde entre todas as servas (lit. "escravas"). Ela nunca havia orado, imaginado ou sonhado com tão grande privilégio. Ela jamais poderia subir até a glória de Deus, por isso, Deus desceu até a mais humilde dentre todas as mulheres – Deus a escolheu mediante sua graça. O reformador João Calvino sempre se lembrava de como Deus é tão grande que pode Se tornar pequeno e se rebaixar e descer ao nosso nível. De fato, tão grande que Ele pode se tornar pequeno e ser gerado no útero de Maria e nascer dali.[1] A humildade de Maria é exaltada por Deus ao vir sobre ela – esta inversão de situações e valores será uma das características marcantes da “salvação” ao longo de toda esta narrativa evangélica lucana.[2]
Então Maria começa a recordar as maravilhosas intervenções salvífica de Deus na história de Israel, destacando a figura de Abraão (vv. 51-53) . Em seu cântico ela deixa claro que Deus está fazendo algo grande nela, assim como, Ele tem feito ao longo de todas as gerações que lhe antecederam. Deus está se preparando para isso há muito, muito tempo. Então, ainda que seja uma experiência nova para ela, para Deus é o capítulo culminante de uma história muito antiga, como diria Paulo – desde antes da fundação do mundo – desde a primeira promessa de salvação em Gênesis 3.15. A graça de Deus está conectada diretamente à promessa feita a Abraão (cf. Gn 12.3; 13.14-17; 15.5; e Mq 7.20; Lc 1.73)[3]. A promessa era para sempre, o que significa literalmente, até a consumação do século (Ash, 1980, p.45).
Na sequência do cântico Maria vai destacar através de pares de figuras opostas - os orgulhosos e os humildes, os que se elevam e os que se abaixam, assim como os famintos e os abastados – e a extraordinária inversão de valores que Deus fará através do nascimento desta criança: “dispersou os que no coração alimentavam pensamentos soberbos. Derrubou dos seus tronos os poderosos e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos e despediu vazios os ricos” (vv.51-53). O escritor C. S. Lewis chamou esse cântico de: “uma canção terrível”, mas no sentido de sua raiz latina, “terribilis, que significa surpreendente, arrepiante, uma música terrível no sentido de que fala de uma jovem cantando sobre a dispersão dos orgulhosos e o afastamento dos ricos e do transtorno de toda a ordem normal das coisas. É uma revolução total das convenções sociais comuns. Ela fala de uma inversão espiritual e pessoal, onde o crente será elevado (termo para ressurreição) e o que não crer (orgulhoso em sua própria imaginação) será deixado para o juízo final. Se na primeira parte do cântico (v. 46-50) ouvimos o ressoar dos salmos, nessa segunda parte podemos ouvir o eco da mensagem dos profetas. Assim como os profetas (Oséias, Miquéias) Maria está declarando: Olha! Todos prestam atenção nas pessoas bonitas, nos ricos, nos famosos, nos poderosos deste mundo; mas você sabe onde estão de fato os olhos de Deus? Ele coloca seus olhos nos pequeninos como eu. Deus se lembrou de mim, olhou para mim e veio ao meu encontro. É assim que Deus trabalha! Ele está sempre levantando os humildes e confundindo os poderosos, essa temática se tornará importante no restante da narrativa de Lucas. É provável que Jesus tivesse em mente esse cântico de Maria, quando proferiu diante dos prepotentes e arrogantes fariseus e escribas, a parábola de Lazaro e o rico. As palavras de Abraão ao rico em tormentos são enfáticas: “Filho, lembre-se de que durante a sua vida você teve tudo quanto queria [muito dinheiro no bolso, saúde para dar e vender], e Lázaro não teve nada [salário mínimo e aposentadoria aos 70 anos]. Portanto, agora ele está aqui sendo consolado, e você sofrendo tormentos” (Lc 16.25).
Ao incluir este cântico de Maria em sua narrativa evangélica Lucas quer deixar claro que Deus esta no controle completo das situações – somente Ele tem competência e o poder de julgar e revelar os verdadeiros valores, conforme tão precisamente declarou o salmista “Aquele que julga é Deus, abaixando a um, elevando a outro” (Sl 75.8).
Antecipando um pouco é preciso destacar que na figura dos orgulhosos, dos ricos, dos poderosos esta o reflexo dos detentores de um poder político e religioso, não somente do judaísmo, mas em todo o mundo, que serão os opositores contundentes da nova ordem estabelecida por meio de Jesus e seu Evangelho do Reino. Portanto, nosso espanto diante das atrocidades contra os cristãos é o esquecimento desta realidade cantada por Maria, encarnada por Jesus na cruz do calvário e vivenciada pelos cristãos do primeiro século e de todos os tempos até os dias atuais e continuara até o dia final.  
Mas como tão claramente Maria declara, o mesmo Deus que no passado inverteu os valores é o mesmo que haverá de estabelecer os novos valores, conforme o projeto de sua “misericórdia” (elos - vv.50-54).
No final da narrativa, quando as mulheres retornam testemunhando da ressurreição, não ficaria deslocado na boca delas esta parte do cântico de Maria: “Ele derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes”. E assim cantava Paulo junto com seus irmãos e irmãs:
Quando, porém, o que é corruptível se revestir de incorruptibilidade,
e o que é mortal, de imortalidade,
então se cumprirá a palavra que está escrita:
 "A morte foi destruída pela vitória"
"Onde está, ó morte, a sua vitória?”
“Onde está, ó morte, o seu aguilhão?"
O aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a Lei.
Mas graças a Deus, que nos dá a vitória
por meio de nosso Senhor Jesus Cristo.
Portanto, meus amados irmãos, mantenham-se firmes, e que nada os abale. Sejam sempre dedicados à obra do Senhor, pois vocês sabem que, no Senhor, o trabalho de vocês não será inútil.


Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/


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Referências Bibliográficas
ASH, Anthony Lee. O Evangelho Segundo Lucas. Tradução Neyd V. Siqueira. São Paulo: Editora Vida Cristã, 1980.
BETTENCOURT, Estevão. Para Entender os Evangelhos.  Rio de Janeiro: Agir, 1960.
CARSON D. A., DOUGLAS, J. Moo & MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997.
CASALEGNO, Alberto. Lucas – a caminho com Jesus missionário. São Paulo: Edições Loyola, 2003.
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento Interpretado – versículo por versículo, v. II. São Paulo: Millenium, 1987.
________________________. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia, v.3. São Paulo: Candeia, 1995.
LEAL, João. Os Evangelhos e a Crítica Moderna. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1945.
MORRIS, Leon L. Lucas – introdução e comentário. São Paulo: Edições Vida Nova, 2008. [Série Cultura Cristã].
TENNEY, Merrill C. O Novo Testamento - sua origem e análise, 2a ed. São Paulo: Vida Nova, 1972.


[1] Philip Yancey, tratando sobre este ponto, ao comentar o texto de João 1 “A palavra se tornou carne;” ele declara: “Realmente, é incrível pensar em Deus o Filho se tornando um bebê humano, mas antes disso Ele era um zigoto [célula mater do embrião humano]. A Palavra tornou-se microscópica; a Palavra tornou-se invisível para o olho humano, que é o que um zigoto no ventre de Maria teria sido”.
[2] “É semelhante a canção de Ana em I Samuel 2.1-10. Ambos os poemas mostram como Deus ajuda os pobres e humildes em vez dos ricos e poderosos (Sf 2.3; Mt 5.3), e como Deus favoreceu Israel desde as promessas a Abraão (Dt 7.6).” Anthony Lee Ash, O Evangelho Segundo Lucas, ed. Vida Cristã, p.43.
[3] Lucas menciona Abraão em (1.73; 3.8,34; 13.16,28; 16.22-25,29,30; 19.9; 20.37).

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